REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 49 | dezembro-janeiro | 2014-15

 
 

 

 

FERNANDO SORRENTINO

O Conde


Tradução de Ana Flores

 

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
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Sem dúvida, esta história aconteceu antes de 1956 e após 1950.

A cidade era Buenos Aires, a rua era a Costa Rica, e a quadra, a que fica entre Fitz Roy e Bonpland. Hoje, esse exato ponto é conhecido como o coração pulsante do chamado Palermo Hollywood. Mas, à época, era um bairro acinzentado e pobre. Não havia jardins, não havia restaurantes, não havia casas da moda. Na esquina sudoeste da Fitz Roy, localizava-se o armazém de Dom Amado, um galego de poucos sorrisos; na esquina noroeste de Bonpland, ficava o do extravagante Victorio Castronuovo, louco, simpático e – como eu – torcedor do Racing.

Os meninos do bairro passávamos a maior parte do tempo não escolar na rua. Não acho que fôssemos acinzentados, mas, sim, pobres, sem o acesso quase sem limites que temos hoje a tantas coisas...

Por exemplo, empregávamos grande parte de nosso tempo jogando futebol com bola de borracha. Se nos acontecesse a desgraça de a bola deixar de existir – fosse por furo, estouro, cobrança dos vizinhos ou sequestro policial – desencadeava-se uma tragédia: não havia jeito de organizar uma coleta para poder comprar uma segunda bola: achávamos tão caro – e era - naqueles anos!

Ao cair da tarde e após umas tantas horas de chutar a bola entre paralelepípedos, pedras e águas servidas das valetas, costumávamos ficar suados, malcheirosos, sujos, descabelados, com as roupas manchadas e padecendo de uma indignidade geral.

E, por essa hora, infalivelmente, aparecia “O Conde”.

Juro que – apesar de certa facilidade que tenho para criar apelidos – não fui eu quem lhe deu esse nome;  diria que surgiu como consequência natural de seu aspecto.

O Conde era um menino da nossa idade. Vinha do sul, pela Rua Costa Rica; nunca soubemos de onde, mas tínhamos certeza de que entrava em nossa rua, não pela Fitz Roy, que era a primeira, mas pela Humboldt, ou pela Juan B. Justo ou – o mistério ainda maior – talvez viesse do outro lado da Estrada de Ferro San Martín, talvez viesse da Godoy Cruz ou da Oro, ou da...

À época, não sabíamos, e continuamos sem saber até hoje.

O Conde dava a impressão de estar recém-banhado e perfumado, com o cabelo castanho ainda úmido e cuidadosamente alisado sobre a cabeça. O rosto era delicado e muito branco, mas com um reflexo de rubor nas maçãs do rosto. A roupa parecia sempre nova, acabada de estrear, e lhe caía um pouco folgada. Usava, como se costumava então, calças curtas; cobria suas panturrilhas com meias três quartos e repicava nos paralelepípedos sapatos marrons muito, muito lustrosos.

Enfim, o Conde tinha uma expressão simpática e alegre, com um leve sorriso afável que lhe iluminava todo o rosto. Era reconhecido de longe, porque – como o resto dos mortais – tinha uma maneira própria de caminhar: no seu caso, flexionava pouco os joelhos e virava para os dois lados as pontas dos pés.

Quando se aproximava de nós, estendia as duas mãos para frente, com as palmas para baixo, como uma maneira de pedir, ao mesmo tempo, licença para passar e desculpas por fazê-lo. E, depois de passar por nós, voltava a sorrir timidamente, agradecendo não sei que indulgência de nossa parte.

Assim como não sabíamos de onde vinha, também não conseguimos determinar para onde ia. Sim, nós o víamos atravessar a Bonpland, mas não sabíamos se ia além da Carranza, da Ravignani, da Arévalo. Pegaria o ônibus 39? Ou o 407?

Ou, mais alucinante ainda, penetraria ele nos imensos terrenos baldios (“o campinho”) que, entre trilhos abandonados de trem, campos de futebol, ovelhas, galinhas, cachorros, cavalos, ratazanas, sapos, ratos, rãs, se espalhavam, à época, entre as ruas Concepción Arenal e Jorge Newbery...?

Essa hipótese me parecia – e continua parecendo-me – totalmente absurda: havia uma  completa incompatibilidade entre o aspecto e a personalidade do Conde e sua impossível entrada naqueles ermos de lama e mato.

Outro enigma a ser resolvido era decifrar por que o Conde nunca voltava do norte em direção ao sul. Jamais o víamos regressar e, sem dúvida, em algum momento ele o fazia, já que, ao entardecer do dia seguinte, ele voltava a aparecer vindo do sul e a perder-se rumo ao norte.

Havia duas hipóteses: que ele voltasse por uma rua paralela (El Salvador e Nicaragua eram itinerários plausíveis) ou que retornasse pela Rua Costa Rica, mas em horas incomuns, quando todos já estivéssemos dormindo em nossas casas; também era difícil associar o aspecto diurno e límpido do Conde com a lugubridade noturna de nossa rua às três ou quatro horas da madrugada.

Por que nunca tivemos coragem de deter o Conde e perguntar-lhe... tantas coisas!?

“Conde, qual é o seu nome, quantos anos você tem, onde mora, para onde vai todos os dias por volta das seis horas, por onde volta e a que horas? Você tem irmãos, seus pais são vivos, que escola você frequenta, em que série, como se chama sua professora, gosta de futebol, qual é o seu time?”

Nunca soubemos nada sobre o Conde.

Com meus estudos no Ensino Médio e minha entrada na adolescência, meus hábitos mudaram. Deixei de brincar na rua e, consequentemente, deixei de ver o Conde e, pior ainda, sinto uma certa vergonha em confessar que me esqueci por completo dele e de seus enigmas: afinal, digo a mim mesmo, eram apenas fantasias dos meninos da nossa quadra.

Por fim, muitíssimos anos se passaram, minha vida tomou outros rumos, deixei de ser menino e adolescente, não morava mais na Rua Costa Rica, casei-me, tive filhos, escrevi contos, publiquei livros...

Num certo entardecer do ano de 2012, viajando no ônibus 111 em direção ao Centro, o Conde surgiu subitamente em minha memória, sem que houvesse nenhum motivo (aparente) para que tal ocorresse.

Um impulso irracional e irresistível me fez descer do ônibus na esquina da Bonpland com Costa Rica e comecei a caminhar pela quadra de minha infância em direção à Fitz Roy. Detive-me diante da que havia sido minha casa, ou seja, na metade do lado ímpar da Rua Costa Rica.

Inclinei a cabeça e me perguntei: “O que aconteceria se neste momento, vindo por seu caminho habitual, aparecesse diante de mim o Conde, imutável, tal como havia sido sessenta anos atrás, com sua mesma pele de porcelana, seu cabelo alisado, seus sapatos lustrosos, sua expressão simpática, afável e correta, e tendo sempre dez ou doze anos de idade...? Acho que poderia escrever um conto sobre esse menino que, apesar do desgaste e da corrosão que chegam com o passar das décadas e o peso do tempo, se mantivesse sempre igual a si mesmo...”

E senti uma suave alegria, como me acontece sempre que encontro uma ideia que considero agradavelmente literária.

E então, produziu-se a materialização do pensamento. Caminhando com o mesmo ritmo correto de seis décadas atrás, apareceu o Conde: mais uma vez, com a aparência de recém-banhado, perfumado, com roupas finas, impecáveis e um pouco folgadas, mal flexionando os joelhos, com os sapatos marrons lustrosíssimos cujas pontas se voltavam para os dois lados.

Já não usava meias três quartos nem calças curtas. O Conde aparentava agora uns setenta anos, cabelos grisalhos, rugas no rosto;  perdera o rubor nas maçãs do rosto, caminhava mais devagar, usava óculos, ainda não estava calvo, mas já perdera muito cabelo, sua expressão continuava sendo  simpática, porém com certa moderação de amargura ou desgaste.

Quando chegou a alguns metros de onde eu estava, no meio da calçada, entre a árvore e o muro, estendeu um pouco suas mãos, com as palmas para baixo, como se pedisse, ao mesmo tempo, licença para passar e desculpas por fazê-lo. Afastei-me mais ou menos meio metro, e o Conde sorriu timidamente, agradecendo-me a gentileza.

E então passou na minha frente e, ao dar-me as costas, esbocei um gesto para saudá-lo, mas não o fiz, possivelmente por pensar que era tarde demais para conhecer o Conde.

E o Conde atravessou a Bonpland e continuou pela Costa Rica até a Carranza, até a Ravignani? Até a Arévalo...?

Até onde...?

Imediatamente senti uma inexplicável angústia, uma obscura contrariedade... E me perguntei: “Teria sido sensato fazer ao Conde algumas perguntas?”

Por exemplo, “Conde, qual é o seu nome, quantos anos o senhor tem, onde mora, para onde vai todos os dias por volta das seis horas da tarde, por onde volta e a que horas? O senhor tem irmãos? Imagino que seus pais já tenham morrido, que escola o senhor frequentou, entrou em alguma universidade, gosta de futebol, é torcedor de algum time?”

Passei a mão pelo peito e meus olhos se umedeceram. E mais uma vez me perguntei: “Teria sido sensato fazer ao Conde algumas perguntas?”

 

Martínez (Bs. As.), dezembro de 2013

Tradução: Ana Flores
aflores.rj@gmail.com

 

  Fernando Sorrentino (Argentina)
Nasci em Buenos Aires em 8 de novembro de 1942. A maior parte de minha infância e de minha adolescência transcorreu no cinzento quadrilátero formado pelas avenidas Santa Fe, Juan B. Justo, Córdoba e Dorrego. Em épocas muito juvenis, fui um simples funcionário de escritório. Em épocas não tão juvenis, e durante muito tempo, fui professor de língua e literatura em diversos colégios secundários; em geral, recebi o afeto de meus alunos e de meus colegas, o que me diz que sou um cara legal. Nos interstícios laborais, tento ler e tento escrever. Tenho sensibilidade para gostar da beleza poética, mas me falta um mínimo de talento para escrever um poema com algum mérito. Destruí sem culpa minhas poesias juvenis, pois não achei sensato acrescentar mais fealdade ao mundo. Por outro lado, estou bastante satisfeito com minhas invencionices narrativas. Como dizem os homens dignos de fé, em minha literatura de ficção há uma curiosa mistura de fantasia e humor que conduz a um estilo às vezes grotesco e razoavelmente verossímil. Em geral, sinto-me muito à vontade comigo mesmo. Não tenho nenhuma vocação para fazer parte de nenhum grupo literário, de nenhum comitê de inabilidades afins, de nenhum clube de elogios recíprocos. Mas confesso, isto sim, que milito nas perseverantes hostes do Racing Club de Avellaneda. Gosto mais de ler do que de escrever, e na verdade escrevo muito pouco. Ao longo de quase quarenta anos, não tenho muita bibliografia para exibir. Como todo o mundo, em maior ou menor medida, ganhei alguns prêmios literários. Em resumo, sou relativamente feliz. F. S. (Tradução de Ana Flores)
http://www.fernandosorrentino.com.ar
 

 

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