REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 49 | dezembro-janeiro | 2014-15

 
 

 

 

ANTÓNIO BARROS

Guardar a alma

Túlia Saldanha 35 anos depois

 

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
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  Foi preciso aguardar mais de três décadas para reunir, e apresentar publicamente (1), e de modo conjugado, a obra de uma das artistas plásticas que para a cidade de Coimbra, e para o país mais atento (2), fez gerar maior perplexidade e surpresa narrativa.

São múltiplas as contaminações sinalizáveis no discurso, pretensamente conceptualista, de Túlia. Da arte de situação (referenciada na cultura belga) aos corolários de Maciunas no Fluxus – referentes reforçados pela proxémica com Vostell –, há, na verdade, uma cumplicidade constante com as sinergias geradas a partir de Ernesto de Sousa que procura, de modo convulsivo, construir uma constelação de sintonizadores na razão nacional da “escultura social” de Beuys, e onde Túlia, numa arte do comportamento, parece também querer inscrever-se.

Os ambientes construídos em espaços habitáveis, vivenciáveis, convocam não só o mergulho na condição do espaço, como nos seus envolventes matéricos de compromisso com a condição antropológica e cultural em cadastro, como ainda, e não menos, nas razões autobiográficas e étnicas. As de um lugar cicatrizado pela convulsiva ruralidade nacional onde Túlia, sem complexos, formula novos e nevrálgicos retratos de condição e surpresa. Condição também, a sua. Genomática e de experienciação de vida em arte. Na arte. Para a arte sentida. Vivida. Numa tenacidade vivenciada.

Vale enunciar a particularidade galvânica do espaço laboratorial - ou mais concretamente oficinal – onde os diferentes estudos, e a arquitectura de obra, a de Túlia, sofreram ensaio, ou seja, o Círculo [o CAP, o Círculo de Artes Plásticas, em Coimbra; de Coimbra - CAPC]. A colegialidade constante, e o regime de partilha, sinergizaram múltiplas das construções geradas. Toda uma arte do objecto, e do objecto residente no lugar, desígnios que procuravam contemplar o auditório circulante com o gesto – modo que a palavra, aqui, em Túlia, dificilmente cumpriria.

Diagramando múltiplos lugares comprometidos no, e do, território agente, são muitos os vultos gregários que na sua obra formulam um retrato social do social vigente. O da, e na, cidade; e o de um país que transitou do esmagamento salazarista para a soltura, então em busca de uma definição de liberdade, no pós abril de 1974.

Num estudo aturado de narrativa de género, e residente neste arco temporal politicamente envergonhado, encontramos o singular contributo de Túlia Saldanha com matérias sensíveis à semiologia do objecto que merecem estudo maior. Todo um lugar sinistro onde o objecto se obriga a uma prótese mnésica de vida contida, e a pessoa residual, como objecto real, surge cansada na agonia de si.

A mulher portuguesa no Estado Novo é, já no seu ser próprio, e pela própria sinalização que aufere, um tema nevrálgico e ainda pouco estudado. Tudo por defesa e prolixa cautela da causa investigadora. Mas é um desafio que vem sendo, repetidamente, solicitado pela cultura plástica, também, nas últimas décadas, e a pulso, por múltiplos olhares sensíveis.

Em 2000 Fernando Calhau desafiou-me no sentido de Coimbra, mormente o Círculo, organizar uma leitura pública expositiva, e de modo antológico, da obra de Túlia Saldanha. Mas, na realidade, nesta data eu já não inscrevia a directoria da instituição CAPC. E havia uma outra razão – era demasiada a minha cumplicidade com a autora não permitindo, assim, deste modo, distância analítica suficiente, nem estava, então, cumprida a legítima “resolução do luto”. Tudo severamente doloroso numa moldura onde, de modo primeiro, diagnostiquei a patologia que rapidamente a levaria à morte (3).

Túlia gostaria de ter assistido, numa fruição directa, à (re)visitação desta constelação de obras que, aqui, se plasmam distribuídas no desenho do tempo. No seu tempo vivenciado e partilhado.

A conjugação deste verbo, o sempre convulsivo “partilhar”, resulta distintivo da sua identidade de obra, mas aí não a esgota. Há uma biografia de cidadania a enunciar-se, e carregada de múltiplas singularidades elegíveis.

Túlia, na sua obra mais exótica, e exotérica, procura gerar um fado pictórico como razão de nacionalidade e identidade de lugar. Uma não pintura que, autofagicamente, se diz pela negação. Tudo por um rebentamento guestáltico de quem clama. De quem exclama perdas plurais e cansaço. Bandeira de lugar comprometido. De lugar castigado por um fogo invisível que incendeia o íntimo recanto. De ideias presas à negritude cáustica de um país aprisionado. Esse que só a negritude, bem negra, veste simbolicamente a dor contida. E, na colheita, Túlia joga com duas balizas geográficas fundamentais para o desenho do drama. Do fado enfado: a órbita académica de Coimbra – o politizado tecido sociológico afogado nas suas conTradições; e a vertical razão transmontana do território profundo – o sensorial do lúdico gerador. Toda uma portugalidade convulsiva que aqui se relata, e se resolve na não cor do gesto. Do lugar magoado ... magoando até à alma. Mas uma alma que se liberta e procurava, teimosamente, fazer renovar.

Vale agora uma leitura atenta da publicação que acompanhou a mostra. Entre outros textos, um estudo empenhado de Rita Macedo em “As partes e o todo, o todo e as partes”.

Vale também sublinhar a importância de um devir da circulação, assaz abrangente, do trabalho que de modo meritório já se fez conjugar nesta mostra primeira. O Museo Vostell Malpartida – que em 1979 partilhei (expositivamente) com Túlia – é um dos suportes plausíveis de elevada sintonização ... Tudo enquanto não abre a público o Centro de Congressos, em Coimbra, para uma difusão na régua do lugar gerador. Lugar já com condições de eleição definidas para uma exposição desta escala e oportunidade. Legítima. Há muito legitimada e creditada. Fica então já o desafio. Este, entre tantos outros, de que a personalidade: Túlia Saldanha, e para além de toda uma razão simbólica do tempo e lugar, é merecedora, e como gratidão da cidade que tanto lhe deve – e para além da sua obra plástica – o lugar; o lugar deve-lhe, e deve fazer-se operar em vénia. Vénias múltiplas e em formatos múltiplos.

António Barros, Coimbra, outubro 2014.
   
  (1) Túlia Saldanha, Centro de Arte Moderna, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 5 de junho a 28 de setembro, 2014.

(2) Alternativa Zero, Galeria Nacional de Arte Moderna, Lisboa, 1977.

(3) “Um voo em círculo antes da morte”, António Barros, Rua Larga - Revista da Reitoria da Universidade de Coimbra, número 10, 2005.
   
 
 
Capa do livro: Túlia Saldanha, CAM-FCG, 2014
   
   
 
  "Do Nordeste a Coimbra", 1978. Túlia Saldanha, CAM-FCG, 2014
   
 
 

Em primeiro plano, de costas, Ernesto de Sousa. De pé, ao fundo, Wolf Vostell e Túlia Saldanha. Museo Vostell Malpartida. SACOM2, 1979. Malparida, Cáceres, Espanha. Foto: Monteiro Gil.

   
   
 
 

Assunção Pestana, Túlia Saldanha, António Barros - Museo Vostell Malpartida, SACOM2, "Comidas Olvidadas", 1979, Malpartida, Cáceres, Espanha. Fotografia: Monteiro Gil.

   
 

  António Barros • Nasceu em 1953 - Funchal, Ilha da Madeira.
Estudos: Facultat de Belles Arts, Universitat de Barcelona; Universidade de Coimbra. Vive e trabalha em Coimbra.
Em "Artistas Portugueses na Colecção da Fundação de Serralves", é o director do Museu, João Fernandes, quem enuncia: "António Barros é dos nomes relevantes do contexto da poesia experimental e das artes performativas em Portugal. A obra de António Barros objectualiza e espacializa o texto, explorando novas polissemias originadas pelo cruzamento da textualidade com uma visualidade iconoclasta e irreverente".
De sensibilidade fluxista, a sua obra convoca não só uma arte de situação debordiana, como ainda a Escultura Social de Joseph Beuys, tendo também trabalhado com Wolf Vostell no Vostell Fluxus Zug, Das Mobile Museum Kunst Akademie em Leverkusen.
Se as suas artitudes convocam o situacionismo de Guy Debord ao visitar a poésie directe francesa, Lawrence Ferlinghetti, pioneiro do Movimento da Beat Generation para a poesia - quando destaca a obra performativa "Revolução" em Cogolin, 1986 -, e Julien Blaine - ao publicar "Tradição" e "Escravos" na revista Doc(k)s -, são quem primeiro internacionaliza a arte de António Barros.
Esta última atitude em objecto-texto, é a que em 1984 um júri - integrando Sophia de Mello Breyner Andresen, David Mourão Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues, José Carlos de Vasconcelos, Maria Velho da Costa e Manuel Alegre -, destacou no Concurso Nacional de Poesia 10 Anos do 25 de Abril, resultando este texto num elemento identitário do seu percurso "visualista" - onde o objecto e a palavra sinergicamente se insinuam.
A resiliência com que sinaliza os seus gestos de escrita [progestos], leva-o ainda à territorialidade do objecto escultural, vindo a criar, e para além dos seus múltiplos environments  como "Algias, NostAlgias" e "Amant Alterna Camenae", o Prémio de Estudos Fílmicos Universidade de Coimbra, com que foram laureados Alain Resnais, Manoel Oliveira e João Bénard da Costa.

http://barrosantonio.wordpress.com
 

 

© Maria Estela Guedes
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