REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 48 | outubro-novembro | 2014

 
 

 

JOÃO PEREIRA DE MATOS

O Sol do Meia-Noite

João Pereira de Matos (Lisboa, 1973). Publicou A Machina Circunspecular, Fumar Mata (ilustração), Requiem par'Imortais, Ônfalo, Ciência Vaga, Cancioneiro d'Érebo, Scherzi, Visões do Vazio em um Livro Autógrafo e Ossa et Cineres, todos pela Editora Apenas Livros. Colaborou em vários números das revistas Seara Nova, Big Ode, Callema, Minguante, Piolho, Nova Águia, Côdeas e na Revista Cultura.  

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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Dir. Maria Estela Guedes  
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Dai-me, cara senhora, a bênção de vossa companhia; a est’alma cansada, desiludida com a vida e com as gentes, acredite que sua beleza é raro bálsamo; corro, claro é, apenas o risco de me ver ofuscado por vossa opalina lindeza; questão não despicienda, como não vos custará acreditar, de cegar em olhando para vós, pois, como o Sol, que alumia esta aprazível manhã, o belo coruscante queima a pupila e vós, d’incomparável frescura e juventude, tendes em altíssimo grau essas qualidades que s’apreciam numa jovem; tanto que, se para vós olhar em demasia, tal a vossa graça, que temo não poder conservar por muito tempo o uso da visão; decalcada na retina a vossa imagem seria, para todo o sempre, supérflua a condição de olhar, que nada que vislumbrasse estaria a par da vossa figura; ademais, precavido como sou, contentar-me-ei, em me leixando aqui ficar, a olhar para aquele botão, espelho imperfeito da vossa beatífica visão; de qualquer forma, estou em crer, pelo pouco que, ainda assim, conheço de vós, que as qualidades do vosso espírito não ficam, de modo algum, atrás da refulgente e gentil presença com que alegrais a Criação; de vossa canora voz, muito me têm dito, num respeitoso e suave murmúrio, todos quantos tiveram o bonançoso privilégio de convosco privar;  nem sequer, aliás, tive de interpelar essas maravilhadas almas; assim que souberam que rumava para esta região, de semblante jubiloso mas nostálgico, logo m’avisaram da possibilidade de convosco topar; bastaria procurar a mais luminosa criatura, na mais luminosa clareira, em dia de luz, no mais fresco e agradável jardim; por isso, cara senhora, sei que sois vós aquela que buscava; aquela que, sem o saber, sempre busquei, por entre todas as aventuras e desventuras, cuja exacta soma, desafortunadamente compõe a minha vida; não vos maçarei, podeis estar descansada, com o minucioso relato de tais agruras, porquanto, mesmo que, estou em crer, não seja totalmente fastidioso, poderia chocar a vossa doce e suave disposição; e perturbar vossa paz com memórias cruentas, acredite, é a última coisa que desejo; por outro lado, julguei perceber, pela vossa primeira reacção, que estais ciente de quem sou, que a fama de meus péssimos feitos, de algum modo, me precedeu; assim tem, de resto, acontecido pelos muitos lugares por onde passei, desagradável situação que não logrei, ainda, anular; porém, muito evoluí no sentido de tornar discreta a minha presença, de me confundir por entre as turbas, tornando-me amigo das sombras, de passos desprovidos de pegada e escolhendo uma indumentária tão incaracterística que, quem comigo estiver, não poderá dizer de que mester me ocupo, pois todos poderia, assim ataviado, executar, ou, sequer, de que extracção provenho, pois não pareço nem rico nem pobre, nem nobre nem gentio; podendo até ser, pelos olhos de quem me vê, tanto uma coisa como outra; conterrâneo ou estrangeiro; cristão ou nem por isso; contudo, nunca pretendi ocultar-vos quem sou, pois nunca imaginei que tal fosse possível, tendo em consideração, o vosso esclarecido, penetrante, entendimento; antes, é por essa invulgar perspicácia que tão avidamente procurei a vossa companhia e por isso mesmo não tendes de temer o falatório que poderia advir da minha indigna presença perto de vós; para o incauto curioso que, nesta direcção perscrute, mais não verá que o halo da vossa luz levemente embaçado por um perfil incaracterístico que, por tão grande contraste, não poderá estar convosco falando; por isso, caríssima - se permitis que eu assim vos trate - estamos totalmente ao abrigo dos boatos, rumores e maledicências que tão prodigamente foram distribuídos à humanidade, que, nesse ponto particular, consegue tão desumana ser; creia-me, é vasta a minha experiência dos males deste mundo, larga a quota de horror que me foi dado suportar; acredito, aliás, que poucos viventes passaram por tamanhos abismos de terror e, ainda assim, sobreviveram, mas não incólumes pois ninguém o logra conseguir depois de tanta provação; é assim, que a má-fama se cola à nossa presença, transformando-se, mesmo, pelas artes negras da má-língua, numa segunda e incómoda pele, camada finíssima que nos recobre, mas que, espantosamente elástica como é, tem a peculiar propriedade de se adiantar, em muitas léguas, à nossa vinda, encarregando-se de minar qualquer possibilidade de recepção amistosa, de alegre hospedagem em qualquer lugar que o nosso corpo visite; isso mesmo aconteceu aqui, hoje, connosco e quase ia deitando tudo a perder; não fora a vossa suprema bondade e o recato de tal paciência, que acedeu desviar o rumo da vossa atenção para as palavras modestas deste  humílimo e devoto criado; não fora assim, e o escândalo da vossa indignação, perante a desfaçatez do meu impertinente apelo, desferiria o mais cruel golpe nas minhas pouco esperançosas expectativas de poder de vós m’aproxegar para dizer da mais terna expressão do meu afecto e admiração e, dess’arte, poder usufruir da derradeira alegria que esta gasta e ignóbil carcaça terá neste tão estranho mundo; que alberga, em sua vastidão, o mais doce anjo e, ao mesmo tempo, os mais vis algozes, que ao contrário de vós soem perverter tudo o que é belo, tudo o que é puro, tudo o que é bom.

   
 
  Desenho de João Pereira de Matos
 

 

© Maria Estela Guedes
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