REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 48 | outubro-novembro | 2014

 
 

 

 

 

A.M. GALOPIM DE CARVALHO

Terrae adquae Solis filiae

A.M. Galopim de Carvalho (Portugal). Geólogo e ficcionista. Professor jubilado da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.   

 

EDITOR | TRIPLOV

 
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Se não erro, a expressão latina, Terrae adquae Solis filiae, quer dizer “as filhas da Terra e do Sol”, uma maneira alegórica de referir as rochas sedimentares, cujo estudo atingiu níveis de especialização que justificaram o aparecimento de uma nova disciplina a que, em 1932, o sueco Hakon Adolph Wadell (1895-1962), deu o nome de Sedimentologia, Nesta visão alegórica, pode dizer-se que, fecundada pela radiação solar, indutora dos processos geológicos e biológicos próprios da sua capa externa, a mãe Terra dá nascimento a esta outra categoria das suas criações. Estas rochas trazem consigo, não só as marcas dos seus progenitores, mas também as das condições ambientais em que foram geradas e, muitas delas, ainda, a data do seu nascimento. Armazéns ou arquivos de vultuosa informação, o seu estudo têm-nos permitido conhecer grande parte das histórias da Terra e da Vida.

A Sedimentologia, como a definiu o autor do termo, consiste no estudo científico dos sedimentos, quer dos que se mantêm em trânsito (arrastados pelas águas fluviais e marinhas, pelos glaciares ou pelo vento) quer dos que, ainda soltos ou incoesos, se encontram em deposição temporária, quer, ainda, dos litificados, ou seja, dos já transformados em pedra e, portanto, coesos. Rejeitada pela Comissão de Sedimentação dos Estados Unidos da América, por ser “a ugly hibrid innapropriate word”, a expressão Sedimentologia acabou por se impor a partir da década de 40 do século passado, afirmando-se como uma das mais importantes disciplinas das Ciências da Terra, desenvolvendo metodologias e tecnologias adequadas ao estudo das rochas sedimentares, desde a sua origem e eventuais transformações (diagénese), à respectiva localização no espaço e no tempo, em estreita associação com a Mineralogia, a Paleontologia, a Estratigrafia, a Geocronologia, a Química, a Física (em especial a Mecânica) e Estatística, sendo grande o seu interesse não só em Geologia, como ciência que investiga o nosso planeta, mas também na procura de um vasto conjunto de importantes georrecursos. “A Sedimentologia justifica-se pelo leque de aplicações práticas em que pode ser envolvida”, escreveu, em 2003, Gaspar Soares de Carvalho, sedimentólogo pioneiro, em Portugal, nos idos anos de 1940. Basta pensar, no interesse posto na prospecção, exploração e usos dos combustíveis-fósseis e das múltiplas matérias-primas minerais, para nos darmos conta da oportunidade da afirmação deste professor jubilado da Universidade do Minho. A estes motivos de importância da Sedimentologia, acrescem, ainda, as suas aplicações em Hidrogeologia, Geologia de Engenharia e Geologia do Ambiente.

Sedimentologia é o modo de dizer, numa só palavra, Petrologia Sedimentar, no sentido que lhe deu o petrólogo inglês, George Walter Tyrrell (1883-1961), no seu pioneiro Principles of Petrology (1926), expressão que se não deve confundir com Petrografia Sedimentar, uma vez que, como este autor bem lembrou, petrografia é o estudo das rochas, visando a sua descrição, identificação e classificação, e petrologia, mais abrangente, é a ciência das rochas, na sua globalidade, incluindo a pesquisa das respectivas géneses, idades, transformações e significado no estudo do nosso planeta.

O progresso e a expansão da Sedimentologia, à escala internacional, muito antes da sua inclusão nos curricula universitários[1], contou com a criação e regular manutenção de duas importantes revistas científicas: A primeira, surgida em 1931, Journal of Sedimentary Petrology, foi substituída, a partir de 1995, pelo Journal of Sedimentary Research, da Society for Sedimentary Geology (antiga Society of Economic Paleontologists and Mineralogists – SEPM). A outra, sua congénere, Sedimentology, iniciada em 1952, é a expressão escrita nascida da influência da International Association of Sedimentologists (IAS), promotora dos Congressos Internacionais de Sedimentologia, cuja última reunião, a 19ª, teve lugar em 2014, em Genebra. Esta mesma associação promove, ainda, entre congressos, os chamados IAS Meetings of Sedimentology, cujo último, o 30º, decorreu em 2013, em Manchester, no Reino Unido.

As rochas sedimentares no seu todo, desde as mais recentes, no geral, incoesas e móveis, como as areias, às mais antigas, compactadas e consolidadas, são consequência de um conjunto de condições próprias da superfície do nosso planeta:

- existência de uma atmosfera oxidante (a partir de há cerca de 2600 Ma) com algum dióxido de carbono e, em grande parte, húmida, particularmente agressiva para os minerais das rochas aflorantes;

- existência de uma hidrosfera promotora, não só de solubilização e hidrólise, mas também de erosão, transporte e sedimentação;

- existência de uma biosfera actuante nos mais variados ambientes da sua superfície, possibilitada pela distância a que se encontra do Sol;

- exposição ao Sol, imensa fonte de energia radiante.

Sem atmosfera, hidrosfera e biosfera e sem a luz e o calor que recebemos do Sol, não se teriam formado os sedimentos e as rochas sedimentares que, por todo o lado, nos rodeiam. Na ausência destas entidades, a superfície terrestre estaria, à semelhança da da Lua, reduzida a uma capa de rególito, isto é, de poeiras e fragmentos rochosos, resultante dos impactes meteoríticos ocorridos ao longo de milhares de milhões de anos.

As rochas sedimentares representam um conjunto particular de produtos litosféricos gerados na parte mais externa da crosta terrestre e, portanto, nas condições de pressão, temperatura e quimismo próprias da superfície, ocupando uma posição bem delimitada no ciclo petrogenético. Consumindo, sobretudo, energia solar, a sedimentogénese é aceite como uma das expressões da geodinâmica externa, a par da erosão do relevo, da formação dos solos e do aparecimento e manutenção da vida.

Geradas na interface da litosfera com as atmosfera, hidrosfera e biosfera, as rochas sedimentares são essencialmente constituídas por um, dois ou três dos seguintes componentes fundamentais:

- terrígenos[2], herdados por via detrítica de outras rochas preexistentes;

- quimiogénicos, resultantes da precipitação de substâncias dissolvidas nas águas;

- biogénicos, quer edificados por alguns organismos em vida, como, por exemplo, os corais, quer acumulados detriticamente a partir de restos esqueléticos (conchas, carapaças, ossos e outros), após a morte dos respectivos seres.

À semelhança de nós, humanos, e de toda a biodiversidade, estas rochas formam-se à superfície da Terra sob a acção da radiação que, ininterruptamente, recebem do Astro Rei, desde que a primeira crosta se formou e lhe ficou exposta, há mais de quatro mil milhões de anos, na perspectiva de alguns autores.

Em termos de volume, as rochas sedimentares representam apenas 5% da crosta terrestre (contra 95% das ígneas e metamórficas), tal é devido ao conceito implícito no respectivo qualificativo. Porém, tendo em conta que a grande maioria das rochas metamórficas (como xistos, grauvaques, gnaisses, mármores e quartzitos) são materiais litológicos transformados a partir de rochas sedimentares preexistentes, aquela cifra aumenta substancialmente. Aumenta ainda mais se nos lembrarmos que a maior parte dos granitos e rochas afins resultaram da fusão parcial (anatexia) de rochas sedimentares e metamórficas delas derivadas.

Em termos de área exposta, as rochas sedimentares perfazem cerca de 75% das terras emersas e cobrem a maior parte dos fundos marinhos, embora neste domínio a sua espessura seja pequena se comparada aos milhares de metros de algumas acumulações integradas na arquitectura da crosta continental, com particular evidência nas grandes cadeias de montanhas.

Em finais do século XIX, a expressão rocha sedimentar ainda não figurava no vocabulário de geólogos e petrógrafos. Em 1875, o alemão Arnold von Lasaulx (1839-1886) adjectivou-as de deuterogénicas[3], com base na secundariedade destas rochas relativamente às preexistentes, de onde provêm os seus constituintes. Ao propor, na sua classificação petrográfica, a classe “sedimentos puros”, na qual incluiu materiais não consolidados (cascalheiras, areias e Löss[4]), este professor de Petrografia da Universidade de Bona atribuiu ao termo sedimento o significado de elemento detrítico, clástico ou terrígeno. Foi nesta medida e tendo em conta a abundância relativa das rochas terrígenas (80 a 85%, contra 20 a 15% das rochas biogénicas e quimiogénicas), que surgiu, mais tarde, a designação de rocha sedimentar que, assim, acabou por abarcar, não só as terrígenas, como também as biogénicas e as quimiogénicas.

Em 1947, no Meeting da Geological Society of America, o geólogo inglês Herbert Harold Read (1889-1970), figura grada do Imperial College, propôs o nome de rochas neptúnicas (em alusão a Neptuno, deus do mar, na mitologia romana) para o conjunto das rochas sedimentares. Esta proposta, que não fez vencimento, assentava no facto de a grande maioria das rochas sedimentares terem génese no meio marinho.

A Sedimentologia abriu caminho à investigação, tão aprofundada (quanto quiseram os propósitos e puderam os meios) de aspectos importantes, como proveniência dos materiais, agentes que os transportaram e sedimentaram, ambientes de deposição final, transformações subsequentes (diagénese), posição estratigráfica, paleogeografia correlativa e, ainda, utilidade como importantes georrecursos económicos que são. Neste último aspecto vale a pena recordar os combustíveis fósseis[5] (carvão, petróleo, asfalto, gás natural), os calcários e dolomitos como pedras industriais e ornamentais, as margas no fabrico do cimento, as areias nas indústrias do vidro, as argilas na cerâmica (barro vermelho, faiança e porcelana), o bauxito e os minérios de ferro sedimentares nas metalurgias, respectivamente, do alumínio e do ferro, o sal-gema e os fosforitos na indústria química, entre outros, numa gama muito mais abundante e diversificada do que a facultada pelas rochas ígneas e metamórficas.

   
 
 

[1] - Em Portugal, a disciplina de Sedimentologia, nas Universidades, surge na sequência da reforma do Ensino Superior, de 1964.

[2] - Porque são oriundos das terras emersas (do latim terra), em oposição aos mares.

[3] - De deuterós, secundário, ulterior.

[4] - Termo popular alemão (de lose, friável, móvel) adoptado por geólogos e geógrafos para um material detrítico, muito fino (silto-argiloso e, por vezes, carbonatado) não consolidado, transportado e acumulado por acção do vento, sob clima frio, periglaciário. Frequentemente apresentado com a grafia loess.

[5] - Parte significativa dos progressos científico e tecnológico na área da Sedimentologia fica a dever-se aos grandes interesses económicos subjacentes à indústria petrolífera.

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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