REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 47 | agosto-setembro | 2014

 
 
PAULO PEGO

Nos Açores e na Andaluzia

PAULO PEGO (1967, Barcelos/Portugal). É Doutor em Direito, Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e Jurista-Linguista do Conselho da União Europeia, em Bruxelas. Publicou poemas em Portugal, no Brasil, na Bélgica, na Ucrânia e no Luxemburgo; entre esses poemas, alguns estão traduzidos para francês, inglês, russo e espanhol. É autor dos livros de poesia  À Senoite (2009), A Lógica dos Corais (2013), Le Sel (2013) e Livro das Pedras (2014), todos publicados pela Orfeu (Bruxelas).

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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Dir. Maria Estela Guedes  
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  NOS AÇORES
 
 

INTERROGAÇÃO

Nos Açores, o tempo é cénico, movido a óleo desregrado de vento. Inconstante, brutal, belo. As iúcas, aparentemente impassíveis, vivem estado que o não é, ataraxia traída a choro. Os motivos do barroco, crença no que perdura, são largados às cores e aos punhos laminados das arenas. Não bastasse a vontade de Deus e dos humanos que negam o correr da terra, há o chá, semeando cizânia e vontades que não coincidem. Perante tanto desencontro e pêndulos de sal, que lugar para o amor?

 
 

IMPÉRIOS NA ILHA TERCEIRA 

Cor que viaja

fermenta

pão

funde-se

no vinho

 

Cor que desfila

celebra

 

Cor que ceifa

viagem

 

Pendular

hino

ao santo espírito

 
 

FAIAL 

No mar, tonitruaram os modos do golfinho de risso. A cicatriz foi vento, discórdia adulada pelo aplauso batismal da cor branca. 

Ante olhar crédulo de pescador convencido do crime dos pais, o fumo emanou da metade larvar do corpo e a cratera abriu. 

Vergastada a cor negra, nasceu o primeiro calor, grau máximo da infidelidade. 

Apesar das sevícias das rocas e dos jogos pírricos das criptomérias, as hortênsias ficaram a nu. Nesta torção de serpente se fez a prova final.

 
 

DO SANGUE 

Do sangue

preto

nas veias

dos picarotos

 

ao sangue

presente

da baleia

 

a traição

 

em cálice

 
 

SÃO MIGUEL 

as lagoas

natureza ventríloqua

da ilha

 

o cagarro

natureza ventríloqua

do ilhéu

 
 

TRILHOS 

Na Rocha da Relva, descemos cores quentes entre as casas e a oclusão que os pulmões glaucos do mar levantam. Os canaviais são pontos de mira da boca presa de sal. Depois, a fajã, terra tomada de cio. Não foi o planar do milhafre que te penteou, antes o canavial, insepulto após cada casa. 

De novo, o mar. No Atalho dos Vermelhos, ele demora, tergiversa no canto do pintassilgo e na sede do tentilhão. Aqui abriram os deuses a suprema composição da flora e tu sabes que, na ablepsia da urze e do tamujo, a natureza é certa para retomar o voo que a libelinha esqueceu no teu halo.

 
 

RABO DE PEIXE

 

Os dragoeiros e as malvas cederam ao crivo da calçada. Nó fecundo, renovam-se os movimentos do lábio venusto que emudece a faina. Entre o milhafre e o oceano, todo o apuro do pão e o monólogo sóbrio do lírio que antecede a noite. Nas casas, as gomas são a massa frugal do riso e das conversas serôdias das mulheres. Falam do peixe, da fábrica, do ar macilento do favor. Nada mais. O modo noturno é uma espécie de prisão, de mistério aferrado à proa dos barcos. Desse açaime nascem a figura tardia de mãe, o abcesso do futuro e as formas. E justamente nas formas se achata o hálito do basalto, pretexto para a pergunta do pescador e, afinal, para vozes varadas pela resposta.

 
 

 NA ANDALUZIA

 
 

ANDALUZIA 

 

O orvalho humedeceu a cegueira imediata dos ninhos. Com ela, prostrou a águia. Mas foi uma palavra que lancetou as crias, assim calcinando a serra. 

Esquecidas as máximas, fica o lençol branco e vermelho. Não se antecipam flores, bisturis, espigas, sobra a aldeia dessangrada. 

Não é joio batido por visita. Somente o orifício andaluz, ponto suturado de castelo e igreja. 

Sete vezes nada: um rio que não vacilou nem sabia cortar as sombras.

 
 

POR BAEZA 

 

buscando antonio

machado caminho

 

o passo

é a hora

 

mas a hora

é o sol

 

porque o passo

é a cor

 

ocre

da pedra

 
 

POR RONDA 

 

No início,

o efeito de oclusão.

 

Imaginava o rio

cântico de batalhas e matrimónios.

 

Ante os rascunhos:

pontes, palácios e talha da terra.

 

A Ronda apliquei

lentes para poema míope.

 

Por uma banda:

magias, carpidos e vapores árabes.

 

Por outra:

apenas a metamorfose da oração.

 
 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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