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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
nova série | número 47 |
agosto-setembro | 2014
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MARIA TOSCANO
Replicação
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Maria Toscano [Campo Maior, Maio/1963]:
membro da APE; socióloga [ISCTE: Doutora (2010) e Lic. (1986); Univ.
Nova de Lisboa: Mestre, 1993]; tem formação informal em Música
(1968/70), Canto (1983) e Teatro (1978/83). Publicou 1 Romance; 9
Livros e 2 E-books de Poesia, e em Colectâneas poéticas. Outros
projectos: Cafés-concerto e Leituras Encenadas (d. anos 80); Fado
Branco (d. Fev.º/ 2012), com Ricardo Silva [Guitarra Portuguesa];
Poemas do Sul em 5 Cantos: edição de autora de 21 inéditos
(2014/15).
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EDITOR |
TRIPLOV |
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ISSN 2182-147X |
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Contacto: revista@triplov.com |
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Dir. Maria Estela Guedes |
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estou só.
vejo
os pratos de velhoses
outros de broas, travessas
à espera do bacalhau
copos para água para branco
outros para o tinto
e tantos mais para espumante
bruto
estou só.
vejo
milhões de velas
centros vermelhos enlaçados em pinhas
fitas douradas
recobros de humanas vidas, duras vidas
pérolas douradas, pelas toalhas
espalham o brilho que os dias de hoje não têm.
estou só.
vejo pendurar enfeites anjos,
luzes, faixas e esperança
cuidadosamente
pendentes
nestes dias.
estou só no mundo
das maravilhas feitas em série
estou só na vereda
dos mercados do roubo anónimo
estou só no outono
onde a neve se vende em pó
porque trenó e renas
ficaram retidas no aeroporto.
estou só
sozinho neste mundo
só
eu e os meus.
Salvé o burrinho, a vaquinha
José, os Pastores!
Salvé Maria! Avé Maria
que me acompanham
desde sempre
no meu nascer
neste acre mundo
onde
ainda
continuo só.
Coimbra, Pastelaria Flor da Conchada. 22
Dezembro 2010.
de “Primeiro Andamento. Dos Musgos.” In
Poemas do Sul em Cinco Cantos. Canto I — Da Terra.
edições SulMoura. Maio/2014, p. 24.
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quando o ruído é ensurdecedor
de tão calado
refracta-se o silêncio
por entre as pedritas de areia original
e ouve-se, ao longe,
de mansinho,
o líquido andamento das marés.
os espelhos , falam.
crepitam sílabas de espuma
branca
verde na moldura
dourada no ponto de fuga
de teus olhos cor de mel.
os espelhos, falam.
ditam, solenes,
passos de mulheres pela beira-mar
passadas do teu desespero errante
conchas e algas / férteis
— memórias de tempos sem espelhos.
os espelhos, falam.
limpos de pontuação
rimas erros populares
os espelhos resistem.
falam de maresia brava
da aurora de mão dadas
do meu tronco repousado em teu peito.
falam, os espelhos.
ilesos de parágrafos e meneios
estendem-se a toda a lonjura
do desejo / e aguardam
que faça efeito a sua cantata.
podem aguardar, assim,
meses, anos, tempos emersos.
são espelhos:
nada os move nem fere
nenhuma frase
ou evasiva os perturba.
hieráticos .erigidos contra o passante tempo / aguardam
orando a cantata das marés.
e só quando maresia e algas
se reconhecem
fundindo-se
começam a repousar
- os espelhos -
baixando as armas:
deixam que o pó os abrace
consentem em amarelar-se
libertam casquinhas e retornam
solenemente
à vida saudosa dos areais
saudosos dos passos enamorados de mulheres
à beira de água e sal.
Coimbra, Café Santa Cruz. 25 Jan 2006.
de “Segundo Andamento. Poema de 6 Raízes. RAIZ IV — dos Espelhos” In
Poemas do Sul em Cinco Cantos. Canto I — Da Terra.
edições SulMoura. Maio/2014, p. 76. |
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cegonhas depenicam a lagoa.
a lagoa espelha o olival.
o olival acolhe o horizonte
o amor braçal, esforçado gesto.
o horizonte estende a confiança
abertura no medo e no aqui.
sabe-se do barco a navegar lá longe
pelas ondas que vai rasgando ao céu.
o horizonte confirma a esperança.
a esperança ressoa no bater de asas.
asas aplanam rugosidades
um ou outro penedo, a cobiça.
nas rugas rezam alegrias e dores.
a alegria serena-se aprofunda-se
até ser bonomia e simples calma.
ah às vezes o vento traz latidos
birras de galo, perus assustados
pachorrentos badalos e bocejos
— timbres baixo deste coro de paz.
e tudo o mais que é o Alentejo a ser.
Arronches, Hotel Rural S.to António. 12
Fevereiro 2012.
de “Terceiro Andamento. e tudo o mais que é o Alentejo a ser.” In
Poemas do Sul em Cinco Cantos. Canto I — Da Terra.
edições SulMoura. Maio/2014, p. 93. |
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olhai os lírios da cidade
com o fascínio dos lírios me comovo
e escuto-lhes a fina sinfonia.
andam dispersos mas firmes pelas
cidades
os lírios do campo verdes e amarelos.
por decisão deles emigraram
para destinos improváveis onde
ao que os ignora e humilha no chão de terra
eles conquistam, de surpresa, no vazio urbano.
hoje. aqui. em toda a parte a tecer
a tecer a fluir a vida a esperança
por onde o brilho de cada lírio comum
vai encantar e seduzir os transeuntes.
amai, olhai os lírios das cidades
porque deles será o reino dos seus
amantes e cuidadores indignados.
Coimbra, Pastelaria Vénus. 20 Setembro 2012;
12 Abril 2013.
de “Quarto Andamento. Nesse magnífico tempo de habitar o Amor. In
Poemas do Sul em Cinco Cantos. Canto I — Da Terra.
edições SulMoura. Maio/2014, p.129. |
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“A palavra é o desejo do espaço
e o espaço do desejo.”
António Ramos Rosa.
As Palavras. Campo das Letras, 2001: 30.
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“A palavra e a pele
em uníssono pedem
que lhes peguem.”
David Mourão-Ferreira. Entre a sombra e o corpo.
Moraes Editores,1980: 43. |
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guardo as palavras como a uma coroa de flores
a um medalhão de pérolas na fronte aceso.
guardo as palavras aos ombros.
zelo por elas na voz. ao peito.
devagar, escorrem-me pelos braços
até às mãos as recolherem entre
as linhas do amor e da vida.
guardo-as pelos caracóis cor da cereja
volumosos no ensejo do desejo.
guardo as palavras no umbigo do cosmos
e cuido-as ao centro das pétalas
onde vibra a rosácea de mim
sempre virgem ante teu poema.
guardo-as, vibrantes e suaves. insinuantes
escoam-se nas águas adentro do corpo
seja húmus saliva seiva leites sangues
ou o éter luminoso da fala.
guardo as palavras na planta dos pés
no calo dos passos no lastro da busca
e, assim, a busca encaminha-me até.
até às marés doces marés de
lumes e brisa acesos.
acolhidas nos meus gestos transitórios
guardadas em meus universais sentidos
até drenarem para o meu corpo universal
cuido as palavras, espaço cósmico do desejo
fala a rechear o espaço onde não há vazios.
fundo-me no desejo da palavra, no ensejo da fala
comoventes comoções de gestos e sentidos
à medida que aprendemos, de lumes e brisa,
o doce ondear das marés vivas, reais.
Praia da Barra. Restaurante 7.º ano de praia. 14 Agosto 2013.
de “Sétimo Andamento. Ser farol é ser só. -
VI. o espaço do desejo”
In Poemas do Sul em Cinco Cantos. Canto II — Das Marés.
no prelo [edições SulMoura. Novembro/2014]. |
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"eu voo com as árvores "
— inédito © maria toscano.
1.
são breves as horas da eternidade.
breves são os tempos de todo o sempre.
pudesse o presente ser tão fugaz.
mas, às vezes, a roda vivente troca as voltas:
enraíza-se o que é suposto voar
e, sem contar, levanta voo um ramo
seguido pela árvore possante. inteira.
breves os tempos desta eternidade,
aqui.
por isso, eu voo com as árvores
— animais, de grande porte, voadores.
2.
de madrugada, altas horas.
antes de a passarada acordar.
antes do rebuliço de asas bicos e ar.
pela margem calada da noitinha
aconchego da margem diurna vivaça.
ao crepúsculo. em locais especiais
para ninguém vir atrás a correr/ aos berros
/ nem os avós taparem os olhos aos netos
/ enquanto — os avós — transpiram /
atónitos e transfigurados.
— por essas horas escusas
e nos sítios onde se pousam
acontecem manobras clandestinas
desde a raiz à copa volumosa.
por fim entregue ao ansiado colo
eu voo com as árvores.
Coimbra. Café Teatro TAGV, 6 e 9 Junho/ 2014.
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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