|  | Um recente livro de José Emílio-Nelson,
		Como falsa porta, dá-nos 
		entrada 
		para uma das líricas mais desconfortáveis, digamos mesmo que atrozes, da 
		literatura portuguesa. Quem o tem estudado refere como única a sua obra, 
		e não há motivos para discordar. Luís Adriano Carlos, autor dos textos 
		de badana, define algumas das constantes de José Emílio-Nelson, que logo 
		nos permitiriam rotulá-lo como surrealista abjecionista. Ninguém aprecia 
		os rótulos, eles limitam, são portas que se fecham, mas sem portas não é 
		fácil definir o espaço da casa poética. Assunção do feio como feio e não de algo como o belo horrível 
		do romantismo, primeira porta da casa, segundo Luís Adriano; amplitude 
		polifónica, segunda.  O que é feio? – pergunta-se. Não se trata tanto do 
		feio numa perspetiva estética, visto que ela soube agregá-lo a si, 
		justamente como estética do feio, sim do que, desde a infância e da 
		catequese, nos ensinaram que não deve fazer-se, por motivos de saúde ou 
		de bom comportamento social e moral. Se 
		redigirmos uma lista das más ações, de certeza as encontramos todas, como 
		práticas poéticas habituais, em José Emílio-Nelson. Desde coisas 
		francamente execráveis como a coprofagia até uma teologia negativa a 
		visualizar-se como profanação e desrespeito por Maria, tudo lemos neste poeta, cujo 
		espaço de intervenção política, manifesto no assédio constante à moral 
		burguesa, coincide assim com o abjecionismo. José Emílio-Nelson escreve contra a moral comum, 
		essa que nos leva a emitir juízos de valor a propósito de tudo, incluído o que 
		depende da biologia e não da vontade e em especial sobre aquilo que nem 
		sequer conhecemos.  Sim, José Emílio-Nelson, cujos primeiros livros me 
		recordo de ter recenseado, é uma voz singular na nossa literatura. Essa 
		singularidade vem-lhe da coragem com que enfrenta todos os nossos mais 
		comuns preconceitos a respeito do belo, da linguagem, da vida e da 
		morte, da doença, em suma, do que se pode e não pode dizer, do que se 
		deve e não deve mostrar, e já ia escapando nestas linhas o mais forte 
		motor da obra e da nossa repreensão moral, apesar de o ter escolhido 
		para título deste artigo, a sexualidade, que não podemos desligar da 
		cultura clássica: se Bacchanalia é um termo fortemente 
		dionisíaco, o Banquete, tão presente no livro, é um termo 
		fortemente platónico; por cima de tudo isto, a referência sádica não é 
		de somenos. Poder-se-ia alegar que a 
		dimensão orgânica, o corpo, é mais ampla que o sexo, mas não: se 
		filtrássemos os milhões de livros que a ciência já escreveu sobre o 
		corpo e os corpos, desde os animais aos vegetais, ficaríamos com algo 
		como uma biologia da sexualidade, a esclarecer as dezenas de modalidades 
		da reprodução, pois é isso o que importa ao ser vivo: a permanência da 
		espécie mediante a reprodução. Para o caso de José Emílio-Nelson, quem 
		fala é Hesíodo, e a reprodução toma o nome de teogonia: “A noite negra, a Deusa. Cresce na obscuridade O vasto Céu. Daí nasce o pássaro alcião, E a luz rasteira amaina. Faz o ninho na penumbra. A emasculação de Urano. Aí se mostra. Adensa-se, sombrio, o olhar dum moribundo. O mar alto é estéril. Do que há-de vir. Ar e Noite. Mesclam-se./”    Quanto à polifonia, aliás polimorfismo, “Como falsa 
		porta”, último bloco de poemas do livro, é disso uma ilustração feliz, apesar 
		de a felicidade contrastar com a tonalidade geral mais negra; os poemas 
		desenvolvem-se a partir de um mote de um ou mais versos: “Um céu rente ao chão/ A branca 
		tibieza/ Da pedra parada./” – e isto é estranho, pois cola-se um ritmo 
		popular a cenários gregos e a recursos provocatórios da modernidade. 
		Esta 
		espelha-se num experimentalismo visual que agrega a si sinaléticas 
		de transcrição e comentário (barra oblíqua), e estes dispisitivos congregam por seu turno as alusões à 
		pintura, em especial o dramático Goya. Nada neste bloco, a não ser 
		eventualmente aquilo que refere, é classificável como feio. O poeta dispõe de 
		discurso poderoso, de uma beleza recortada na noite a que o poema 
		recolhe, noite áspera, profunda, aquela que cria e a criação concede. A 
		repetição reina como em ritual e tudo ascende à cúpula da Noite, Nix, 
		deusa da criação cantada por Hesíodo. O núcleo do poema é a emasculação 
		de Urano, mutilação paralela da mastectomia da primeira parte do livro, 
		Bacchanalia, em que o feio aparece na figuração do cancro da mama. Num caso 
		e noutro, os órgãos atingidos dizem respeito à reprodução, ao pavor da 
		impotência de criar. Nem sempre o feio prevalece, em José 
		Emílio-Nelson. Já se sabe que a repetição é encantatória, quando boa a 
		técnica e a execução, e a ela se deve em parte a beleza cantabile 
		do 
		grupo de poemas “Como falsa porta”. Desenvolve, como já vimos, o 
		tema cosmogónico, com a emasculação de Urano por seu filho Cronos em 
		lugar central. Urano era 
		filho de Gea, a  Terra, hoje 
		mais conhecida como Gaia, por ter emprestado o nome à bem conhecida 
		teoria de ser a Terra um organismo vivo que se autorregula. O aspeto 
		criador do mito surge em José Emílio-Nelson na figura do “pássaro 
		alcião” (Alcedo sp.;
		Halcyon sp.),  
		guarda-rios ou pica-peixe, ave de dorso azul, bico forte e longo que faz 
		ninho nas margens de planos de água. O antigo nome Halcyon da 
		espécie remete para a mitologia grega, em especial para o deus Ceix 
		e sua esposa Alcione. Zangado com eles, 
		Zeus puniu-os, transformando-os em aves: Alcione em pica-peixe e Ceix em
		ganso-patola.  A esta teogonia alia-se a "Teologia culposa", 
		parte central do livro, que reage violentamente contra os preceitos 
		morais da religião católica. 
		Rico em achados formais - sinalética de localização, com versículos 
		numerados, sinalética de transcrição - o livro apresenta uma falsa porta 
		como principal diversão, que é a de o título de capa não corresponder ao 
		da ficha técnica. Por estes motivos, à proximidade do classicismo e do 
		abjecionismo há motivos para acrescentar o pendor barroco deste 
		excelente poeta, único, sim, na nossa literatura, apesar de lembrar um 
		pouco o seu contemporâneo Alberto Pimenta, que também é um génio da 
		aliança entre a erudição e a modernidade. 
		Maria Estela GuedesCasa dos Banhos, 05.08.2014
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