REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 47 | agosto-setembro | 2014

 
 

 

 

JOÃO PEREIRA DE MATOS

O Réprobo

João Pereira de Matos (Lisboa, 1973). Publicou A Machina Circunspecular, Fumar Mata (ilustração), Requiem par'Imortais, Ônfalo, Ciência Vaga, Cancioneiro d'Érebo, Scherzi, Visões do Vazio em um Livro Autógrafo e Ossa et Cineres, todos pela Editora Apenas Livros. Colaborou em vários números das revistas Seara Nova, Big Ode, Callema, Minguante, Piolho, Nova Águia, Côdeas e na Revista Cultura.   

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
Página Principal  
Índice de Autores  
Série Anterior  
SÍTIOS ALIADOS  
Revista InComunidade  
Apenas Livros Editora  

Arte - Livros Editora

 
Jornal de Poesia  
Domador de Sonhos  
Agulha - Revista de Cultura  
   
 
 

Eis-me aqui, exposto ao vosso opróbrio, o mais ocioso de todos os seres, a mais ignóbil de todas as criaturas. Riam-se de mim à vossa vontade, castiguem impiamente minhas carnes descarnadas, maceradas por infinitas bordoadas e outros suplícios que, decerto justamente, me foram infligidos.

Eu mereço. Prostrado, diante vós, nesta praça tão ampla, podeis-me ver de todos os ângulos, sanguinolento caleidoscópio, para que não escape nenhum pormenor à vossa avidez. Nem roupas me cobrem, eis-me como sou, sem inúteis atavios já que, para alguém da minha condição, qualquer roupagem seria demasiada, qualquer agasalho seria obsceno. Em minha nudez não há vergonha pois estou além do pudor. Dir-vos-ei, ademais sem qualquer exagero, que não há pudor, nem sequer nudez quando me cobre e recobre a sombra de meus crimes. Eles, os crimes, comeram-me a alma, como os algozes desfiguraram a carne e, assim, aqui me têm, o autor dos pecados, exposto – e desafiador, ainda – ao vosso olhar. Para quê falar deles, dos crimes, se todos os conhecem se, mesmo nos lugares mais recônditos desta terra, chegou deles a notícia, se de tal monta eles soam que as gentes se calam, estarrecidas, com o som do meu nome?

E, no entanto, aqui estou falando convosco, ainda agitando o pulmão, não para me defender, não para pedir clemência, não, enfim, para me explicar, arrependido, pois arrependimento é emoção que me não toca e, se tocasse, nem por isso pediria o vosso perdão. Não vos peço ou pediria, não só porque não mo poderíeis dar – que não está em vosso fraco poder perdoar e nem sequer o Altíssimo o lograria, que os meus defeitos estão muito além do perdão – mas, sobretudo, porque não quero deixar escapar o orgulho, ou melhor, o pecado do orgulho ao interminável rol da minha acusação. Compreendam, não estaria completo se não incorresse também na desdita do orgulho ao permanecer ímpio, impermeável à própria culpa. Quem se arrepende renega o que foi, abjura, de certa forma, o que é e eu fui, sou e serei, a exacta soma de meus crimes. Se me arrepender até isso desaparecerá, como a doce ilusão da liberdade, como o sono e o  sonho, como a calma de uma manhã de Estio, e eu, despojado de tudo, retenho ainda, como único e último bem nesta terra, a memória de meus feitos, criminosos é certo, mas feitos, isto é, actos que perduram, tanto mais que todos nós sabemos que nunca serão esquecidos. E, por isso, me mostro, me exponho inteiro e inteiramente perante vós, como também o fiz com todos os que me quiseram ver. Para que não esqueçam, para que aprendam o que é estar inteira e inteiramente exposto perante o olhar inclemente do outro que muito justamente condena, que muito sabiamente reprova, que muito humanamente maltrata.

Podeis, contudo, argumentar que desta função pedagógica do espectáculo cruento da minha desgraça ainda emana algo de bom, sobretudo se com isso impedir que, de futuro, outros percorram a senda da minha loucura. Ora, estaríeis certos em tal objectar e, por consequência, é também certo que, dessa forma, ainda presto um beneficio à humanidade, o que é o mesmo que dizer que, mesmo em meio de tanto mal, algo de bom subsiste por meu intermédio e que esse inadvertido e útil sacrifício por mim, a contragosto, prestado se manterá após o meu anunciado prestes fim por quanto tempo a minha memória restar na mente dos homens e o meu nome ressoar, terrível, nos mais incríveis pesadelos e ecoar asperamente nas mais esconsas vielas. A isto responderia de muitas maneiras distintas, se bem que tema não poder anular totalmente a impertinente objecção. Primeiramente, diria, em defesa da minha maldade, que nas mãos de um escolástico competente um mal se pode facilmente transformar num bem e vice-versa e que todas as questões são relativas e que, mesmo a mais inocente das actuações não deixa de ter consequências, boas, funestas ou ambas, com total independência do seu autor. Diria, também, que todo o mal contém em si o bem do seu exemplo, como uma realidade às avessas, que tem o inegável mérito de avisar o incauto para arrepiar caminho e entrar na senda do bem, do belo e do bom. Acrescentaria, do mesmo fôlego, que o mal total é impossível e que só um deus seria capaz, por radical sortilégio, de apagar qualquer consequência positiva da sua maldição, mesmo que essa fosse remota ou, já o dissemos, desenganado fruto de um estudioso que se afadigue a procurar o que de bom possa existir no emaranhado dos pecados. Mas, sei-o bem, todas estas respostas são fúteis e não conseguem diminuir a incómoda sensação de que, por mais que mostre os meus infortúnios, para assim mais vertiginosamente padecer de vosso desdém, mais me torno e transformo em exemplo edificante e, dessa laia, um inverso benfeitor. Tal pensamento é, a seu modo, insuportável, se bem que tenha a vantagem de aumentar minhas penas se, tal como calculais, ainda maior sofrimento que o actual for possível, apesar do meritório denodo dos carrascos que não poupam os músculos nem os ardis da imaginação.

O que é, de vero, um crime sem a vontade suprema de ultrapassar a regra que impõe um limite? Que é um crime senão o desejo irrestrito de liberdade? Que é um crime quando lhe falta a fúria cega, por vezes fria, outras ao sabor do momento? Que é um crime sem esse quantum de excesso que ridiculariza e destrói toda a medida, essa humana, essoutra divina? Que é um crime sem a vertigem da pena, o furor da punição e da tortura da espera dela? Que é um crime sem a justa medida, o espelho dele mas distorcido, um abismo que encontrará o seu eco na água-rasa da razão? Que é um crime sem uma consciência demenciada e desperta, lúcido inverso das coisas sãs? Todo o tormento é luz fenecida, ocaso de uma ditosa paz para, em carne viva, o turbilhão te endoudecer o espírito. É este o mais belo caminho, este feito de treva e ter podido moldá-la a meu bel-prazer foi a maior alegria, feroz e áspera, é certo mas por isso também a mais viva e não sem certa doçura. 

O que é o criminoso sem o seu crime? Se é isso mesmo que o define, que lhe dá a força necessária para se saber íntegro na desdita, tanto mais que ao enveredar pela senda desses pecados todas as demais veredas existenciais se precludem? Se se fecha um caminho o teu horizonte será mais e mais adentrar nas selvas do infortúnio adensando a teia das malfeitorias, tomar para si as dores das vítimas, experimentar na carne a dor que se inflige aos outros. E depois do crime vem a descida aos calabouços, os julgamentos, a condenação, a exposição pública para que todos possam estar informados do exemplo temerário e, finalmente, o momento do cadafalso e aquilo que é mais difícil, a saber, a resistência à quase inevitabilidade da expiação. Pois é aqui que muitos soçobram. São corajosos e com decisão e vigor conseguem engendrar a falta mais tenebrosa, ultrapassam com mérito as fronteiras do permitido. Estoicamente, ainda, suportam os horrores da tortura, do escárnio das gentes, do longo cárcere. Porém, eis que soçobram quando se deixam seduzir pela doce palavra redentora, abjuram da sua vida passada e mesmo que o seu futuro seja pleno do horror da pena, mesmo aquela, capital, que custará o seu pescoço se deixam enredar pela possibilidade de expiar os seus crimes, renegando o que antes foram. Tornar inútil aquilo por que tanto se esforçaram parece-me indigno de um verdadeiro criminoso, daquele que irá cumprir-se em todas as dimensões da sua existência. Se quisesse ser um santo jamais cometeria a mais pequena falta, tentaria estar eximido da mais pequena mácula, para que nada manchasse a perfeita obra da vida, para que pudesse ultrapassar, em beatitude, tudo quanto os homens fracos imaginassem que fosse próprio de uma santa pessoa. Como escolhi o caminho inverso, sei que devo fazer o contrário do que bondade recomenda e ter um instante de arrependimento que seja é destruir esse negro edifício de horrores que muito custou a erigir. Não, nem um momento de dúvida, nem uma vacilação, sem tréguas nem medo. Serei total-desumano, cruel até para mim próprio e jamais cederei à tentação de me fazer de bom. Aliás, é isso mesmo que querem os meus carrascos, habituados que estão aos infelizes de outra cepa que à primeira vergastada negam por inteiro a natureza dos seus crimes e maldizem a hora em que vieram ao mundo. Não eu, permanecerei igual a mim próprio, só me definindo por aquilo que fiz, suportarei todas as torturas mudo e calado mas com o sorriso nos lábios. Querem que desista. A cada nova dor só renovam as minhas forças. 

Depois de muito cogitar sobre este assunto cheguei, enfim, à conclusão que o mais que posso fazer é permanecer fiel a esta odiosa doutrina até ao último estertor e tentar captar para a minha banda – seduzindo as almas frágeis e desafiando as valentes – o maior número de seguidores. E assim, incessantemente, o tenho feito, apesar do garrote, apesar de me terem queimado a língua, nunca me calei nem conseguiram calar. Sempre que possível, quando surge a mais fugaz oportunidade, tenho propalado a virtude dos meus crimes recorrendo à falácia da coragem, da total abnegação por um objectivo, mesmo que tenebroso, mas avisando também que estou usando de subterfúgios pois, meticuloso como sou, não quero que venham a dizer que tive virtuosa palavra embora professando o exacto contrário daquilo que, comummente, se considera o bem. Não. O segredo está em confundir os espíritos para que, enganadamente mas ainda com intencional lucidez, sigam os meus passos.

Dest'ínvia arte, mesmo sabendo que não conseguirei – como vos disse – debelar por completo os aspectos positivos que o exemplo da minha desdita possa conter, tenho a doce esperança de multiplicar os meus pecados por quantos lograr seduzir. E conquanto paire sobre mim esse fantasma de aziaga virtude não é  sinal de colossal impiedade tentar tão afincadamente o caminho do mal na sua abissal totalidade, ao ponto de nem por mim demonstrar a mínima compaixão, mostrando-me assim como sou, expondo-me, em opróbrio, ao vosso escárnio como a mais cruel, ociosa e ignóbil de quantas criaturas jamais caminharam debaixo do Sol?    

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL