|  | Eis-me aqui, exposto ao vosso opróbrio, o mais 
		ocioso de todos os seres, a mais ignóbil de todas as criaturas. Riam-se 
		de mim à vossa vontade, castiguem impiamente minhas carnes descarnadas, 
		maceradas por infinitas bordoadas e outros suplícios que, decerto 
		justamente, me foram infligidos. Eu mereço. Prostrado, diante vós, nesta praça tão 
		ampla, podeis-me ver de todos os ângulos, sanguinolento caleidoscópio, 
		para que não escape nenhum pormenor à vossa avidez. Nem roupas me 
		cobrem, eis-me como sou, sem inúteis atavios já que, para alguém da 
		minha condição, qualquer roupagem seria demasiada, qualquer agasalho 
		seria obsceno. Em minha nudez não há vergonha pois estou além do pudor. 
		Dir-vos-ei, ademais sem qualquer exagero, que não há pudor, nem sequer 
		nudez quando me cobre e recobre a sombra de meus crimes. Eles, os 
		crimes, comeram-me a alma, como os algozes desfiguraram a carne e, 
		assim, aqui me têm, o autor dos pecados, exposto – e desafiador, ainda – 
		ao vosso olhar. Para quê falar deles, dos crimes, se todos os conhecem 
		se, mesmo nos lugares mais recônditos desta terra, chegou deles a 
		notícia, se de tal monta eles soam que as gentes se calam, estarrecidas, 
		com o som do meu nome? E, no entanto, aqui estou falando convosco, ainda 
		agitando o pulmão, não para me defender, não para pedir clemência, não, 
		enfim, para me explicar, arrependido, pois arrependimento é emoção que 
		me não toca e, se tocasse, nem por isso pediria o vosso perdão. Não vos 
		peço ou pediria, não só porque não mo poderíeis dar – que não está em 
		vosso fraco poder perdoar e nem sequer o Altíssimo o lograria, que os 
		meus defeitos estão muito além do perdão – mas, sobretudo, porque não 
		quero deixar escapar o orgulho, ou melhor, o pecado do orgulho ao 
		interminável rol da minha acusação. Compreendam, não estaria completo se 
		não incorresse também na desdita do orgulho ao permanecer ímpio, 
		impermeável à própria culpa. Quem se arrepende renega o que foi, abjura, 
		de certa forma, o que é e eu fui, sou e serei, a exacta soma de meus 
		crimes. Se me arrepender até isso desaparecerá, como a doce ilusão da 
		liberdade, como o sono e o  
		sonho, como a calma de uma manhã de Estio, e eu, despojado de tudo, 
		retenho ainda, como único e último bem nesta terra, a memória de meus 
		feitos, criminosos é certo, mas feitos, isto é, actos que perduram, 
		tanto mais que todos nós sabemos que nunca serão esquecidos. E, por 
		isso, me mostro, me exponho inteiro e inteiramente perante vós, como 
		também o fiz com todos os que me quiseram ver. Para que não esqueçam, 
		para que aprendam o que é estar inteira e inteiramente exposto perante o 
		olhar inclemente do outro que muito justamente condena, que muito 
		sabiamente reprova, que muito humanamente maltrata.  Podeis, contudo, argumentar que desta função 
		pedagógica do espectáculo cruento da minha desgraça ainda emana algo de 
		bom, sobretudo se com isso impedir que, de futuro, outros percorram a 
		senda da minha loucura. Ora, estaríeis certos em tal objectar e, por 
		consequência, é também certo que, dessa forma, ainda presto um beneficio 
		à humanidade, o que é o mesmo que dizer que, mesmo em meio de tanto mal, 
		algo de bom subsiste por meu intermédio e que esse inadvertido e útil 
		sacrifício por mim, a contragosto, prestado se manterá após o meu 
		anunciado prestes fim por quanto tempo a minha memória restar na mente 
		dos homens e o meu nome ressoar, terrível, nos mais incríveis pesadelos 
		e ecoar asperamente nas mais esconsas vielas. A isto responderia de 
		muitas maneiras distintas, se bem que tema não poder anular totalmente a 
		impertinente objecção. Primeiramente, diria, em defesa da minha maldade, 
		que nas mãos de um escolástico competente um mal se pode facilmente 
		transformar num bem e vice-versa e que todas as questões são relativas e 
		que, mesmo a mais inocente das actuações não deixa de ter consequências, 
		boas, funestas ou ambas, com total independência do seu autor. Diria, 
		também, que todo o mal contém em si o bem do seu exemplo, como uma 
		realidade às avessas, que tem o inegável mérito de avisar o incauto para 
		arrepiar caminho e entrar na senda do bem, do belo e do bom. 
		Acrescentaria, do mesmo fôlego, que o mal total é impossível e que só um 
		deus seria capaz, por radical sortilégio, de apagar qualquer 
		consequência positiva da sua maldição, mesmo que essa fosse remota ou, 
		já o dissemos, desenganado fruto de um estudioso que se afadigue a 
		procurar o que de bom possa existir no emaranhado dos pecados. Mas, 
		sei-o bem, todas estas respostas são fúteis e não conseguem diminuir a 
		incómoda sensação de que, por mais que mostre os meus infortúnios, para 
		assim mais vertiginosamente padecer de vosso desdém, mais me torno e 
		transformo em exemplo edificante e, dessa laia, um inverso benfeitor. 
		Tal pensamento é, a seu modo, insuportável, se bem que tenha a vantagem 
		de aumentar minhas penas se, tal como calculais, ainda maior sofrimento 
		que o actual for possível, apesar do meritório denodo dos carrascos que 
		não poupam os músculos nem os ardis da imaginação. O que é, de vero, um crime sem a vontade suprema de 
		ultrapassar a regra que impõe um limite? Que é um crime senão o desejo 
		irrestrito de liberdade? Que é um crime quando lhe falta a fúria cega, 
		por vezes fria, outras ao sabor do momento? Que é um crime sem esse
		quantum de excesso que 
		ridiculariza e destrói toda a medida, essa humana, essoutra divina? Que 
		é um crime sem a vertigem da pena, o furor da punição e da tortura da 
		espera dela? Que é um crime sem a justa medida, o espelho dele mas 
		distorcido, um abismo que encontrará o seu eco na água-rasa da razão? 
		Que é um crime sem uma consciência demenciada e desperta, lúcido inverso 
		das coisas sãs? Todo o tormento é luz fenecida, ocaso de uma ditosa paz 
		para, em carne viva, o turbilhão te endoudecer o espírito. É este o mais 
		belo caminho, este feito de treva e ter podido moldá-la a meu bel-prazer 
		foi a maior alegria, feroz e áspera, é certo mas por isso também a mais 
		viva e não sem certa doçura.  
		 O que é o criminoso sem o seu crime? Se é isso 
		mesmo que o define, que lhe dá a força necessária para se saber íntegro 
		na desdita, tanto mais que ao enveredar pela senda desses pecados todas 
		as demais veredas existenciais se precludem? Se se fecha um caminho o 
		teu horizonte será mais e mais adentrar nas selvas do infortúnio 
		adensando a teia das malfeitorias, tomar para si as dores das vítimas, 
		experimentar na carne a dor que se inflige aos outros. E depois do crime 
		vem a descida aos calabouços, os julgamentos, a condenação, a exposição 
		pública para que todos possam estar informados do exemplo temerário e, 
		finalmente, o momento do cadafalso e aquilo que é mais difícil, a saber, 
		a resistência à quase inevitabilidade da expiação. Pois é aqui que 
		muitos soçobram. São corajosos e com decisão e vigor conseguem engendrar 
		a falta mais tenebrosa, ultrapassam com mérito as fronteiras do 
		permitido. Estoicamente, ainda, suportam os horrores da tortura, do 
		escárnio das gentes, do longo cárcere. Porém, eis que soçobram quando se 
		deixam seduzir pela doce palavra redentora, abjuram da sua vida passada 
		e mesmo que o seu futuro seja pleno do horror da pena, mesmo aquela, 
		capital, que custará o seu pescoço se deixam enredar pela possibilidade 
		de expiar os seus crimes, renegando o que antes foram. Tornar inútil 
		aquilo por que tanto se esforçaram parece-me indigno de um verdadeiro 
		criminoso, daquele que irá cumprir-se em todas as dimensões da sua 
		existência. Se quisesse ser um santo jamais cometeria a mais pequena 
		falta, tentaria estar eximido da mais pequena mácula, para que nada 
		manchasse a perfeita obra da vida, para que pudesse ultrapassar, em 
		beatitude, tudo quanto os homens fracos imaginassem que fosse próprio de 
		uma santa pessoa. Como escolhi o caminho inverso, sei que devo fazer o 
		contrário do que bondade recomenda e ter um instante de arrependimento 
		que seja é destruir esse negro edifício de horrores que muito custou a 
		erigir. Não, nem um momento de dúvida, nem uma vacilação, sem tréguas 
		nem medo. Serei total-desumano, cruel até para mim próprio e jamais 
		cederei à tentação de me fazer de bom. Aliás, é isso mesmo que querem os 
		meus carrascos, habituados que estão aos infelizes de outra cepa que à 
		primeira vergastada negam por inteiro a natureza dos seus crimes e 
		maldizem a hora em que vieram ao mundo. Não eu, permanecerei igual a mim 
		próprio, só me definindo por aquilo que fiz, suportarei todas as 
		torturas mudo e calado mas com o sorriso nos lábios. Querem que desista. 
		A cada nova dor só renovam as minhas forças. 
		 Depois de muito cogitar sobre este assunto cheguei, 
		enfim, à conclusão que o mais que posso fazer é permanecer fiel a esta 
		odiosa doutrina até ao último estertor e tentar captar para a minha 
		banda – seduzindo as almas frágeis e desafiando as valentes – o maior 
		número de seguidores. E assim, incessantemente, o tenho feito, apesar do 
		garrote, apesar de me terem queimado a língua, nunca me calei nem 
		conseguiram calar. Sempre que possível, quando surge a mais fugaz 
		oportunidade, tenho propalado a virtude dos meus crimes recorrendo à 
		falácia da coragem, da total abnegação por um objectivo, mesmo que 
		tenebroso, mas avisando também que estou usando de subterfúgios pois, 
		meticuloso como sou, não quero que venham a dizer que tive virtuosa 
		palavra embora professando o exacto contrário daquilo que, comummente, 
		se considera o bem. Não. O segredo está em confundir os espíritos para 
		que, enganadamente mas ainda com intencional lucidez, sigam os meus 
		passos.  Dest'ínvia arte, mesmo sabendo que não conseguirei 
		– como vos disse – debelar por completo os aspectos positivos que o 
		exemplo da minha desdita possa conter, tenho a doce esperança de 
		multiplicar os meus pecados por quantos lograr seduzir. E conquanto 
		paire sobre mim esse fantasma de aziaga virtude não é 
		sinal de colossal impiedade tentar tão afincadamente o caminho do 
		mal na sua abissal totalidade, ao ponto de nem por mim demonstrar a 
		mínima compaixão, mostrando-me assim como sou, expondo-me, em opróbrio, 
		ao vosso escárnio como a mais cruel, ociosa e ignóbil de quantas 
		criaturas jamais caminharam debaixo do Sol?    
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