REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 47 | agosto-setembro | 2014

 
 

 

CELLES LETA

Contar ser Gregos

 

Celles Leta, escritor moçambicano, nascido em Maputo.

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
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CONTAR SER GREGOS – CONTRÁRIOS, SEGREDOS E RESPOSTAS QUE CRUZAM A HISTÓRIA PARA POUSAR NOS NOSSOS DIAS

 

Os meandros literários não fogem a regra: o mais difícil, mais do que terminar, seja lá o que for, será sempre, sem sombra de dúvidas, começa-lo. A indecisão, o medo, o receio e, quem sabe, a humildade e a modéstia são aqui ingredientes que nos acompanham como sombras vivas (talvez mortas), sendo-nos por conseguinte difícil que a eles nos dissociemos. No entanto vale a pena dizer-se que quando somos verdadeiramente tocados por autênticas obras de arte tal muda de figura: terminar, mais do que começar, torna-se a coisa mais difícil de se fazer.  

Contudo, começo este breve sulcar crítico literário nas entranhas fundas de Contar Ser Gregos, obra poética de Emmy Xyx, pseudónimo de Manuela Xavier, rebuscando uma célebre frase de um grande poeta alemão, Rainer Maria Rilke, que viveu no século XX, um dos mais representativos de sua época. Dizia ele, numa das várias cartas que, em resposta a um jovem poeta do seu tempo, Franz Xaver Kappus, ele escrevera: «Não há nada que toque menos uma obra de arte do que palavras de crítica: elas não passam de mal-entendidos mais ou menos afortunados» (RILKE, 2009:9). Pois, como já afirmava Montaigne, «É mais difícil interpretar as interpretações do que interpretar as coisas, e há mais livros sobre os livros do que sobre outro assunto 

Por isso mesmo, penso que seja importante que se coloque esta questão, antes mesmo de seguirmos os passos em frente nestas palavras que se casam para criticar este palmilhar poético: Se alguém, sabiamente, já disse que «A critica literária é uma actividade que exige toda uma vida.», o que pode-se dizer destes principiante (na vida e na literatura) que de modéstia não têm nada ao dizer-se «principiantes», quando ousa escrever uma crítica literária sobre um livro que, somente pelo título que ostenta, já se vislumbra um autêntico arrojo por parte de quem o faça?  

Se o livro Contar Ser Gregos, já de partida, através do seu título, nos remete a Antiguidade Clássica, mais exactamente à Grécia Antiga, permitam-nos então que chamemos a este «olhar crítico» o filósofo Pré-socrático Heraclito (540-480 a. C.), ele que disse algo que tem-se revalidado no correr dos séculos, desde os primórdios da humanidade até aos nossos dias: «A vida é feita de contrários. Se nunca estivéssemos doentes, não compreenderíamos o que é saúde. Se nunca tivéssemos fome, não gostaríamos de comer. Se nunca houvesse guerra, não saberíamos apreciar a paz.» (GAARDER, 2012:37). Voltando a esta parte da história da humanidade, aos Filósofos da Natureza, estes que desacorrentaram os homens da concepção mítica do mundo, tida a partir dos poetas Homero e Hesíodo através de obras-primas como Odisseia e Ilíada, que ensinavam e transmitiam complexas narrações e doutrinas sobre os deuses e os homens, sobre forças que intervêm activamente nos acontecimentos cósmicos e humanos, o primeiro poema em Contar Ser Gregos, A Letra da palavra (in: XYX, 2012: 7), já nos traz essa ideia de contínua contrariedade, a ideia de que não pode existir o pleno entendimento de seja lá do que for, sem que igualmente se conheça o seu contrário:  

Procura esclarecer

o escurecer das madrugadas

com o raiar do sol

(...) 

Ou ainda nestas duas estrofes de três e de quatro versos, respectivamente, retirados do poema Quanto tempo (in: XYX, 2012: 57) no qual o entendimento do amor passa necessariamente pelo ódio que dele se possa deixar transparecer: 

Quanto tempo

Precisas

Para dizer que me ama?

 

quantas horas malditas

rezas

para conhecer o sepulcro

átomo do teu viver? 

Se os gregos sempre buscaram por respostas, da mais elementar até o sentido da vida, a mais complexa de todas a questões, a autora de Contar ser Gregos deixa igualmente evidente no poema Quantas Noites (in: XYX, 2012:56) que assim como desde o surgimento da filosofia (aproximadamente nos começos do Séc. VI) os gregos tentaram pensar o seu tempo, nós devemos desmistificar os sentidos homéricos do nosso tempo, ao questionar, em apenas uma estrofe de quatro versos, o tempo do seu tempo vs as amarras e os escuros que o seu tempo transmite:  

Cada dia que passa

por trás das grades estremeço

quantas noites faltam

para o que não mereço? 

Já disse alguém, o qual não me ocorre o nome no momento, que «o poeta não diz, o poeta sugere». Disso talvez me justifico dizendo que a Xyx, analisando o título da obra em análise, traz-nos essa busca por uma sociedade cada vez melhor, o mesmo que os gregos sempre buscaram, de Homero aos filósofos de Mileto, de Sócrates ao Aristóteles, resvalando, por conseguinte, fora dos tentáculos da idade das trevas. Não será talvez por isso que no poema Contar Ser Gregos (in: XYX, 2012:29) a autor questione no primeiro verso da terceira estrofe: «Ser grego quem conta sem medo?»? Ou esse mundo repleto de segredos por serem contados ao questionar no segundo verso da mesma estrofe: «Conta em que canto a saia curta?»? 

Talvez os ingredientes necessários neste caldeirão social sejam mesmo estes sugeridos pela autora de Contar Ser Gregos, «Crer segredos/ impor degredos/ (…) desencontrar medos/ desapontar dedos/ segregar toledos/ contar cem gregos» (XYX, 2012:29). 

Pensamos que vale a pena igualmente dar relevo a ideia sublinhada pelo escritor e crítico literário R. Fernandes, a quem coube a nota introdutória, em jeito de prefácio, deste Contar Ser Gregos, este que, aliás, apartou os afazeres da sua vida atribulada para presenciar in loco, nas instalações do Auditório da Rádio Moçambique, o lançamento de “Espelhos” (2011), a estreia em livro de Manuela Xavier, ou seja, Emmy Xyx, quando nos traz ao de cima esta irreversível vontade a nós intrínseca de nos impormos ao destino, de lutarmos pela luz no escuro dos dias, de buscarmos por significações de um viver pleno embora de contrários, num mundo infestado de antagonismos, convulsões e estabilidades, medos e coragens, começos e fins, vidas e mortes, ao dizer:  

«A odisseia literária da Emmy Xyx, em “Contar Ser Gregos”, ao longo dos seus 53 poemas e 91 estrofes, configura vocábulos de um lirismo inusitado, onde predomina o sentido de escuridão e marasmo da vida, para onde se imporia a ressurreição vitalícia do direito natural de viver, sem obstáculos, nem temores, nem discriminação, e nem desamor.» 

Portanto, embora seja verdade que «o relógio da vida/ anda parado na hora presente/ o tempo da partida/ sobra calado/ e se faz de ausente.» (XYX, 2012:58), devemos ressalvar este sentido esperançoso que deve acompanhar o homem em cada passo seu, pois de contrário, a bem da verdade, é melhor que se diga, seremos apenas  

(…)

a andorinha [que] voou

[e] enterrou a sua viagem

na escola que não estudou.

(XYX, 2012:65). 

Talvez fosse prudente que nos perguntemos agora: quem afinal de contas vem a ser a autora deste Contar Ser Gregos, ela que nos chega com este escancarar da «dor da alma, do amor, do abando, do gozo e do desejo», imbuído plasticidade poética que, como sugere o Dejair Dionísio, a quem coube o comentário à apresentação do livro em análise, é um «leitoso» e «ejaculoso» encontro com Elise Lucinda?  

Emmy Xyx, pseudónimo literário de Manuela Xavier é um nome que seguramente não pode passar despercebido, quando se fala de artes e letras. Tendo cursado jornalismo em 1974/1975 no então Lourenço Marques, hoje Maputo, colaborado nos semanários Embondeiro e Zambeze com a sua coluna Kunyola-nyola, em 2008 apresentado a sua primeira exposição individual como designer retratando trabalhos feitos com base na casca do fruto do embondeiro, e publicados dois livros, Espelhos (2011) e Contar Ser gregos (2012), mostra-se como sendo, mais do que uma mulher, alguém que sempre buscou dar um contributo a sociedade onde encontra-se inserida, se não questionando e respondendo questões vitais do país, através das artes e letras, sendo Licenciada em Gestão, pela Universidade Eduardo Mondlane (1991), através do desempenho das funções a que lhe são atribuídas no seu sector de trabalho. 

Mais do que calcular o valor ou quantidade, narrar algo, ter a intenção, medir, marcar, incluir num todo, como a palavra «Contar» seria definida nos dicionários, o contar de Contar Ser Gregos é a valsa eterna de palavras que se amam e portanto desnudas se dão ao himeneu dançando paradas no papel que já foi só branco, para chegar ao leitor como um rodopio de sentimentos, de emoções, de amores, de verdades e, talvez de ódios e espasmos e mentiras. O que pode ser o poema intitulado Adormecer de estrelas (in: XYX, 2012:8), se não uma «valsa de palavras»? 

Barbitúricos, remédios

De curas

Objectivas advertem

Partidas acabam

Estrelas adormecem… 

Contar Ser Gregos constitui-se por «versos livres que ora se apresentam, ora se representam e não represam o que vai no desejo de singularidade, de subjectividade da poetisa, mas que dialoga também com a sua comunidade.» (Dejair Dionísio).  

Esta obra poética, de um eu-lírico do tamanho dos séculos, de forma irreversível leva-nos a esse mundo plurisignificado por convergências e divergências, epistemologias históricas que, ao molharmos o corpo nas águas no passado que nos compete visitar como um rio que nunca parou de correr as suas águas, dela podemos entender, ou talvez muito mais, compreender o porquê dos nossos corpos jamais puderem secar por completo esta relação que o tempo de hoje tem com o tempo de ontem e com o tempo de amanhã. 

Não se podendo esgotar os volumes da História (ou estórias que contam a nossa História) na qual esta obra constituída por «53 poemas e 91 estrofes» – como bem o sublinhou escritor e crítico literário R. Fernandes – nos remete, nestas dúzias de palavras que nos atrevemos a aduzi-las nesta singela apreciação crítica da obra Contar Ser Gregos, antes de terminar perguntaria: Se os homens foram feitos para andarem de mãos dadas, o que dizer das palavras que se casam neste Contar Ser Gregos que da vida, ou de um canto dela apenas parece nos contar segredos que responderiam a muitos dos mistérios que advenham dos questionamentos que o nosso tempo nos impõe que os façamos?  

Se Emmy Xyx diz que «O espelho reflecte uma imagem diferente daquilo que somos.» (XYX, 2011), não será manifestação de sensatez que de antemão sejamos perdoados por pousar os pés num terreno movediço como a poesia o é, ao ousar escrever uma crítica literária sobre uma obra cuja sua autora ousa Contar Ser Gregos? 

Contudo, Heraclito, citado por Jostein Gaarder em seu romance O Mundo de Sofia, disse: «não podemos tomar banho duas vezes nas águas do mesmo rio.» (GAARDER, 2011:36), pois ao entrarmos no rio pela segunda vez, tanto nós como o rio estamos mudados. E eu digo: leiam Contar Ser Gregos, que jamais serão os mesmos. 

 

Referências Bibliográficas 

XYX, Emmy. Espelhos. (2011). 1ª Edição. Maputo: Fundac.

__________. Contar Ser Gregos. (2012). 1ª Edição Maputo: Minerva. 

GAARDER, Jostein. O Mundo de Sofia. (2011) 30a Edição. Lisboa: Editorial Presença.

RILKE, Rainer Maria. Cartas a um Jovem Poeta. (2009). Porto Alegre: Colecção L&PM Pocket Plus.

 

 

© Maria Estela Guedes
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