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CONTAR SER GREGOS – CONTRÁRIOS, SEGREDOS E RESPOSTAS QUE CRUZAM A
HISTÓRIA PARA POUSAR NOS NOSSOS DIAS
Os meandros literários não fogem a regra: o mais difícil,
mais do que terminar, seja lá o que for, será sempre, sem sombra de
dúvidas, começa-lo. A indecisão, o medo, o receio e, quem sabe, a
humildade e a modéstia são aqui ingredientes que nos acompanham como
sombras vivas (talvez mortas), sendo-nos por conseguinte difícil que a
eles nos dissociemos. No entanto vale a pena dizer-se que quando somos
verdadeiramente tocados por autênticas obras de arte tal muda de figura:
terminar, mais do que começar, torna-se a coisa mais difícil de se
fazer.
Contudo, começo este breve sulcar crítico literário nas
entranhas fundas de Contar Ser
Gregos, obra poética de Emmy Xyx, pseudónimo de Manuela Xavier,
rebuscando uma célebre frase de um grande poeta alemão, Rainer Maria
Rilke, que viveu no século XX, um dos mais representativos de sua época.
Dizia ele, numa das várias cartas que, em resposta a um jovem poeta do
seu tempo, Franz Xaver Kappus, ele escrevera: «Não
há nada que toque menos uma obra de arte do que palavras de crítica:
elas não passam de mal-entendidos mais ou menos afortunados» (RILKE,
2009:9). Pois, como já afirmava Montaigne, «É
mais difícil interpretar as interpretações do que interpretar as coisas,
e há mais livros sobre os livros do que sobre outro assunto.»
Por isso mesmo, penso que seja importante que se coloque
esta questão, antes mesmo de seguirmos os passos em frente nestas
palavras que se casam para criticar este palmilhar poético: Se alguém,
sabiamente, já disse que «A
critica literária é uma actividade que exige toda uma vida.», o que
pode-se dizer destes principiante (na vida e na literatura) que de
modéstia não têm nada ao dizer-se «principiantes», quando ousa escrever uma crítica literária sobre um
livro que, somente pelo título que ostenta, já se vislumbra um autêntico
arrojo por parte de quem o faça?
Se o livro Contar
Ser Gregos, já de partida, através do seu título, nos remete a
Antiguidade Clássica, mais exactamente à Grécia Antiga, permitam-nos
então que chamemos a este «olhar
crítico» o filósofo Pré-socrático
Heraclito (540-480 a. C.), ele que disse algo que tem-se
revalidado no correr dos séculos, desde
os primórdios da humanidade até aos nossos dias: «A
vida é feita de contrários. Se nunca estivéssemos doentes, não
compreenderíamos o que é saúde. Se nunca tivéssemos fome, não
gostaríamos de comer. Se nunca houvesse guerra, não saberíamos apreciar
a paz.» (GAARDER, 2012:37). Voltando a esta parte da história da
humanidade, aos Filósofos da
Natureza, estes que desacorrentaram os homens da concepção mítica do
mundo, tida a partir dos poetas Homero e Hesíodo através de obras-primas
como Odisseia
e
Ilíada, que ensinavam e transmitiam complexas narrações e
doutrinas sobre os deuses e os homens, sobre forças que intervêm
activamente nos acontecimentos cósmicos e humanos, o primeiro poema em
Contar Ser Gregos,
A Letra da palavra (in:
XYX, 2012: 7), já nos traz essa ideia de contínua contrariedade, a
ideia de que não pode existir o pleno
entendimento de seja lá do que for, sem que igualmente se conheça o seu
contrário:
Procura esclarecer
o escurecer das madrugadas
com o raiar do sol
(...)
Ou ainda nestas duas estrofes de três e de quatro versos,
respectivamente, retirados do poema
Quanto tempo (in:
XYX, 2012: 57) no qual o entendimento do amor passa necessariamente pelo
ódio que dele se possa deixar transparecer:
Quanto tempo
Precisas
Para dizer que me ama?
quantas horas malditas
rezas
para conhecer o sepulcro
átomo do teu viver?
Se os gregos sempre buscaram por respostas, da mais
elementar até o sentido da vida, a mais complexa de todas a questões, a
autora de Contar ser Gregos
deixa igualmente evidente no poema
Quantas Noites (in: XYX,
2012:56) que assim como desde o surgimento da filosofia (aproximadamente
nos começos do Séc. VI) os gregos tentaram pensar o seu tempo, nós
devemos desmistificar os sentidos homéricos do nosso tempo, ao
questionar, em apenas uma estrofe de quatro versos, o tempo do seu tempo
vs as amarras e os escuros que o seu tempo transmite:
Cada dia que passa
por trás das grades estremeço
quantas noites faltam
para o que não mereço?
Já disse alguém, o qual não me ocorre o nome no momento,
que «o poeta não diz, o poeta
sugere». Disso talvez me justifico dizendo que a Xyx, analisando o
título da obra em análise, traz-nos essa busca por uma sociedade cada
vez melhor, o mesmo que os gregos sempre buscaram, de Homero aos
filósofos de Mileto, de Sócrates ao Aristóteles, resvalando, por
conseguinte, fora dos tentáculos da idade das trevas. Não será talvez
por isso que no poema Contar Ser
Gregos (in: XYX, 2012:29)
a autor questione no primeiro verso da terceira estrofe: «Ser grego quem conta sem medo?»? Ou esse mundo repleto de segredos
por serem contados ao questionar no segundo verso da mesma estrofe: «Conta
em que canto a saia curta?»?
Talvez os ingredientes necessários neste caldeirão social
sejam mesmo estes sugeridos pela autora de
Contar Ser Gregos, «Crer
segredos/ impor degredos/ (…) desencontrar medos/ desapontar dedos/
segregar toledos/ contar cem gregos» (XYX, 2012:29).
Pensamos que vale a pena igualmente dar relevo a ideia
sublinhada pelo escritor e crítico
literário R. Fernandes, a quem coube a
nota introdutória, em jeito de prefácio, deste
Contar Ser Gregos, este que,
aliás, apartou os afazeres da sua vida atribulada para presenciar
in loco, nas instalações do
Auditório da Rádio Moçambique, o lançamento de “Espelhos” (2011), a
estreia em livro de Manuela Xavier, ou seja, Emmy Xyx, quando nos traz
ao de cima esta irreversível vontade a nós intrínseca de nos impormos ao
destino, de lutarmos pela luz no escuro dos dias, de buscarmos por
significações de um viver pleno embora de contrários, num mundo
infestado de antagonismos, convulsões e
estabilidades, medos e coragens, começos e fins, vidas e mortes,
ao dizer:
«A odisseia
literária da Emmy Xyx, em “Contar Ser Gregos”, ao longo dos seus 53
poemas e 91 estrofes, configura vocábulos de um lirismo inusitado, onde
predomina o sentido de escuridão e marasmo da vida, para onde se imporia
a ressurreição vitalícia do direito natural de viver, sem obstáculos,
nem temores, nem discriminação, e nem desamor.»
Portanto, embora seja verdade que «o relógio da vida/ anda parado na hora presente/ o tempo da partida/
sobra calado/ e se faz de ausente.» (XYX, 2012:58), devemos
ressalvar este sentido esperançoso que deve acompanhar o homem em cada
passo seu, pois de contrário, a bem da verdade, é melhor que se diga,
seremos apenas
(…)
a andorinha [que] voou
[e] enterrou a sua viagem
na escola que não estudou.
(XYX, 2012:65).
Talvez fosse prudente que nos perguntemos agora: quem
afinal de contas vem a ser a autora deste
Contar Ser Gregos, ela que nos
chega com este escancarar da «dor da alma, do amor, do abando, do gozo e do desejo», imbuído
plasticidade poética que, como sugere o Dejair Dionísio, a quem coube o
comentário à apresentação do livro em análise, é um «leitoso» e «ejaculoso»
encontro com Elise Lucinda?
Emmy Xyx, pseudónimo literário de Manuela Xavier é um nome
que seguramente não pode passar despercebido, quando se fala de artes e
letras. Tendo cursado jornalismo em 1974/1975 no então Lourenço Marques,
hoje Maputo, colaborado nos semanários
Embondeiro e
Zambeze com a sua coluna
Kunyola-nyola, em 2008
apresentado a sua primeira exposição individual como designer retratando
trabalhos feitos com base na casca do fruto do embondeiro, e publicados
dois livros, Espelhos (2011) e
Contar Ser gregos (2012), mostra-se como sendo, mais do que uma
mulher, alguém que sempre buscou dar um contributo a sociedade onde
encontra-se inserida, se não questionando e respondendo questões vitais
do país, através das artes e letras, sendo Licenciada em Gestão, pela
Universidade Eduardo Mondlane (1991), através do desempenho das funções
a que lhe são atribuídas no seu sector de trabalho.
Mais do que calcular
o valor ou quantidade, narrar algo, ter a intenção, medir, marcar,
incluir num todo, como a palavra
«Contar» seria definida nos
dicionários, o contar de Contar
Ser Gregos é a valsa eterna de palavras que se amam e portanto desnudas se dão ao himeneu
dançando paradas no papel que já foi só branco, para chegar ao leitor
como um rodopio de sentimentos, de emoções, de amores, de verdades e,
talvez de ódios e espasmos e mentiras. O que pode ser o poema intitulado
Adormecer de estrelas (in:
XYX, 2012:8), se não uma «valsa de
palavras»?
Barbitúricos, remédios
De curas
Objectivas advertem
Partidas acabam
Estrelas adormecem…
Contar Ser Gregos constitui-se por «versos
livres que ora se apresentam, ora se representam e não represam o que
vai no desejo de singularidade, de subjectividade da poetisa, mas que
dialoga também com a sua comunidade.» (Dejair Dionísio).
Esta obra poética, de um eu-lírico do tamanho dos séculos,
de forma irreversível leva-nos a esse mundo plurisignificado por
convergências e divergências, epistemologias históricas que, ao
molharmos o corpo nas águas no passado que nos compete visitar como um
rio que nunca parou de correr as suas águas, dela podemos entender, ou
talvez muito mais, compreender o porquê dos nossos corpos jamais puderem
secar por completo esta relação que o tempo de hoje tem com o tempo de
ontem e com o tempo de amanhã.
Não se podendo esgotar os volumes da História (ou estórias
que contam a nossa História) na qual esta obra constituída por «53
poemas e 91 estrofes» – como bem o sublinhou
escritor e crítico literário R.
Fernandes – nos remete, nestas dúzias de palavras que nos atrevemos a
aduzi-las nesta singela apreciação crítica da obra
Contar Ser Gregos, antes de
terminar perguntaria: Se os homens foram feitos para andarem de mãos
dadas, o que dizer das palavras que se casam neste
Contar Ser Gregos que da vida,
ou de um canto dela apenas parece nos contar segredos que responderiam a
muitos dos mistérios que advenham dos questionamentos que o nosso tempo
nos impõe que os façamos?
Se Emmy Xyx diz que «O
espelho reflecte uma imagem diferente daquilo que somos.» (XYX,
2011), não será manifestação de sensatez que de antemão sejamos
perdoados por pousar os pés num terreno movediço como a poesia o é, ao
ousar escrever uma crítica literária sobre uma obra cuja sua autora ousa
Contar Ser Gregos?
Contudo, Heraclito, citado por Jostein Gaarder em seu
romance O Mundo de Sofia,
disse: «não podemos tomar banho
duas vezes nas águas do mesmo rio.» (GAARDER, 2011:36), pois ao
entrarmos no rio pela segunda vez, tanto nós como o rio estamos mudados.
E eu digo: leiam Contar Ser Gregos,
que jamais serão os mesmos.
Referências Bibliográficas
XYX, Emmy. Espelhos. (2011). 1ª Edição. Maputo: Fundac.
__________. Contar Ser Gregos. (2012). 1ª Edição Maputo:
Minerva.
GAARDER, Jostein. O Mundo de Sofia. (2011) 30a
Edição. Lisboa: Editorial Presença.
RILKE, Rainer Maria. Cartas a um Jovem Poeta. (2009).
Porto Alegre: Colecção L&PM Pocket Plus.
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