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Leia-se a tese de
mestrado de Rui Sousa, apresentada em 2009 à Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, A presença do abjeto no surrealismo
em Portugal,
à falta da documentação primária – de Pedro Oom, por exemplo, criador do
conceito e determinativo «abjecionismo» para caracterizar e identificar
o surrealismo português – e logo se alcança uma bagagem teórica
suficiente que permite arrancar da turbamulta de poetas um genuíno
abjecionista: Luís Filipe Coelho.
Antes de avançar,
uma pausa para se digerir a informação. O mais habitual, entre os
surrealistas portugueses, é aceitarmos como tal quem o líder congregou
para a sua árvore genealógica, o que não tem sido razão menor para
cisões, revoltas, e rebelde criação de novos grupos surrealistas. O que
acabo de fazer é considerar surrealista aquele cuja obra manifesta
características importantes do movimento, quer do ponto de vista das
ideias quer das práticas artísticas, e não quem foi indicado como tal
por Mário Cesariny ou Luiz Pacheco. Tanto quanto sei, é a primeira vez
que Luís Filipe Coelho é chamado à colação surrealista, e mais
especificamente abjecionista.
Da geração do café Monte Carlo, amigo ou
companheiro dos frequentadores - Luiz Pacheco, Nicolau Saião, Herberto
Helder, António Barahona da Fonseca, entre mais autores da área
surrealista que, tarde ou mais cedo, irão parar à mesa da disseção
literária - Luís Filipe Coelho tem-se mantido em lugar discreto, a
despeito de viver profissionalmente entre editoras e escritores, e da
sua às vezes transbordante veia satírica, aliada ao que surrealistas
como Cesariny quiseram que fosse abjecionista: a crítica, a militância
contra a ditadura, aquilo que, do ponto de vista dos mentores do
surrealismo em Portugal se identifica até com o neo-realismo. É assim
que, num gesto provocatório de gosto aliás duvidoso, na sua antologia
Surrealismo-Abjeccionismo, Mário Cesariny de Vasconcelos escolhe
para prefácio um artigo de Afonso Cautela sobre o neo-realismo. Pode o
abjecionismo corresponder à militância neo-realista, porém as práticas
artísticas do surrealismo são de tal modo distintas que nem sequer
deixam tomar a sério o epíteto “abjecionista”, se sinónimo de
“neo-realista”.
Verdadeiramente
curioso, entretanto, é assistirmos, cem anos volvidos sobre o dealbar do
movimento, a uma espécie de revitalização, em que se arranca da terra
tudo quanto é paleografia ou letra viva e atuante de teor surrealista.
Refira-se, a título de exemplo o mais casual possível, a exposição de
fotografias intitulada «Surrealismo», de André Boto, patente ao público
até fim de junho no setor de exposições temporárias do Museu do Côa,
dedicado prioritariamente às gravuras paleolíticas e só marginalmente
aos artistas contemporâneos.
O abjecionismo é o surrealismo português,
declaram então os criadores da expressão. Aceitemo-la só enquanto a
provocação nela contida der fruto que alimente o debate. Ao teor crítico
e militante do abjecionismo acrescentemos linguagem condizente e ficamos
com ferramenta muito útil para aceder às subtilezas do discurso dos
artistas integráveis no perímetro surrealista, caso de Luís Filipe
Coelho, cujo léxico e temário recorda, v.g., quer Rabelais quer o Mestre
Gil de “samicas de caganeira”, como documenta texto próximo de outro
mais musiquiante, em ‘Da-se!!! (17
Anaisfabetos), atribuído a P. Esse Lopes, Lopes S que lembra
sant’Ana, vejamos (lembrais-vos?) –
Ao cair do pano
Às tantas da manhã
Baila, nas cordas de um piano,
O Garízio, uma valsa de Chopin.
A primeira marca surrealista de um autor é o seu
hibridismo: poeta e pintor, dupla personalidade que pode ter mais
componentes ainda, na música, na dança, no circo. Este é um dos suportes
em que assentamos a declaração de que Luís Filipe Coelho é surrealista e
artista, quer dizer, o que lhe sai das mãos pertence em especial ao
reino do artista, mais do que ao do poeta em sentido estrito: é mais
amplo, inclui os versos, apesar de o maior volume das suas obras ter
sido publicado em suporte de papel, numa coleção de poesia,
«Literatralhas nobelizáveis», que Luís Filipe Coelho dirige na editora
Apenas Livros de Cordel. Luís Coelho recorre aos versos e ao papel
porque estão à mão de semear e a arte das letras sobre papel é
económica. De outro modo, mesmo o que escreve enquadra-se melhor nas
artes plásticas, com a visualidade do epigrama, do neologismo e das
peregrinações dos buracos, pontos pretos,
Fragmentos de uma narrativa adiada
e ausências de Aníbal Silva ST. Insunities (Insolaridades), de Alberth John (Garden?), p.ex., são
palavras para observar, e com atenção, mais do que para ouvir/ler. Se
bem que a natureza do objeto seja inteiramente deixada à imaginação do
leitor, é bem mais para contemplar, plasticamente, do que para ler,
aquele a que se alude em notável declaração de outra obra de Aníbal
Silva St, Gosto das mulheres que
gostam deles grandes. Já O Caralho, de Rodrigues Baptista, escapa à regra do ver,
tratando-se, como se trata, de poemas para ler, de fácies minimal,
dedicados a temas políticos candentes, como no exemplo, a que ao
político acrescem o poético e o religioso:
Salmon Rushdie
Is
an igNOBEL peixdie
De
espetada expinha má
Nas almofadas de Alá.
E com isto chegamos à moderna questão da
alteridade: nem sempre o autor assina com o seu nome, não se tratando
entretanto de pseudónimos nem de heterónimos os outros nomes que
suportam a carga autoral: trata-se antes de atribuições felizes, nem
todas reconhecíveis por mim, mas assinaláveis todas como gestos de
cândida generosidade. Generosidade abjecionista, precisemos, quando
Aníbal (Cavaco) Silva ST (? – não garanto o acerto absoluto das minhas
exegeses dos signos autorais) assina «Ausências», livro cuja essência se
manifesta na quase total ausência de palavras, ou quando P. Esse Lopes
(Pedro Santana Lopes?) recebe de graça a obra
Sincocilos de quacaína e Uma
hefemérdide, com o pedido de desculpas do revisor (Luís Filipe
Coelho) pela gralha constante do primeiro título, uma gralha tão rara
que nem deve pertencer à vulgar família Corvidae, é por certo
representante de espécie nova. Alberto João Jardim e Manuela Ferreira
Leite são personalidades da política honradas igualmente com autorias,
em especial amostragem exemplar daquilo de que foram autoras.
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OBRAS DE LUÍS FILIPE COELHO
Luís Filipe
Coelho - Epígrafes, Lisboa, Barca Nova, 1982.
Luís Filipe
Coelho - Faustos dispersos de Príapo, Lisboa, Marginália, 1985.
Luís Filipe
Coelho - Paleo-realismos. Lisboa, Moraes Editores, 1987.
La Lica – Puerilidades.
Lisboa, Apenas Livros Editora, coleção Literatralhas nobelizáveis,
2003.
Garizio D.B. – A punheta do canhoto, 25 diatribes a 1 vazio
epistémico. Lisboa, Apenas
Livros Editora, coleção Literatralhas nobelizáveis,
2004.
L.F.BaCo – Fragmentos de uma narrativa adiada (quase romance).
Lisboa, Apenas Livros Editora,
coleção Literatralhas nobelizáveis,
2ª edição, 2004.
L.F. BaCo – Peregrinações de um ponto preto – divagações sobre o
mito do eterno retorno (quase romance).
Lisboa, Apenas Livros Editora, coleção
Literatralhas nobelizáveis,
2ª edição,
2004.
P. Esse Lopes – ‘Da-se!!! (17 Anaisfabetos).
Lisboa, Apenas Livros Editora, coleção
Literatralhas nobelizáveis,
2005.
Garizio D.B. – O pintelho da maltrapilha.
Lisboa, Apenas Livros Editora, coleção
Literatralhas nobelizáveis,
2005.
Rodrigues Baptista – O caralho!.
Lisboa, Apenas Livros Editora, coleção
Literatralhas nobelizáveis,
2005.
Aníbal Silva St – Gosto das mulheres que gostam deles grandes.
Lisboa, Apenas Livros Editora,
coleção Literatralhas nobelizáveis,
2005.
Diego Frestas – Os cus-de-cristo.
Lisboa, Apenas Livros Editora, coleção
Literatralhas nobelizáveis,
2005.
Alberth John – Insunities (Insolaridades). Edição bilingue,
Lisboa, Apenas Livros Editora, coleção Literatralhas nobelizáveis,
2005.
Aníbal Silva St – Ausências.
Lisboa, Apenas Livros Editora, coleção
Literatralhas nobelizáveis,
2005.
P. Esse Lopes – Sincocilos de quacaína e uma hefemérdide.
Lisboa, Apenas Livros Editora,
coleção Literatralhas nobelizáveis,
2005.
M.F. deLeite – Copulativa e/ou copulatória, a mesma história.
Lisboa, Apenas Livros Editora,
coleção Literatralhas nobelizáveis,
2009.
Luis Filipe Coelho – Minha rua, ruaminha.
Lisboa, Apenas Livros Editora, coleção
Literatralhas nobelizáveis,
2012.
Serpins Verde – Quatro odes ao furo. Divagações sobre o nada
relativo. Lisboa, Apenas
Livros Editora, coleção Literatralhas nobelizáveis,
2014.
Pedro Janelas – Anatomia do buraco. Divagações sobre o nada absoluto.
Lisboa, Apenas Livros Editora,
coleção Literatralhas nobelizáveis,
2014.
Deus - O inexistente existe, da autoria de Deus.
Lisboa, Apenas Livros Editora, coleção
Literatralhas nobelizáveis,
2014.
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