REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 46 | junho-julho | 2014

 
 

 

 

 

 

MARIA ESTELA GUEDES

LUÍS FILIPE COELHO

artista surrealista-abjecionista

 

Foto: Ed. Guimarães    

Maria Estela Guedes. Poeta, ficcionista, cronista, dramaturga, historiadora da História Natural e da Maçonaria Florestal Carbonária. Tem umas dezenas de títulos publicados.                   

 

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Leia-se a tese de mestrado de Rui Sousa, apresentada em 2009 à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, A presença do abjeto no surrealismo em Portugal, à falta da documentação primária – de Pedro Oom, por exemplo, criador do conceito e determinativo «abjecionismo» para caracterizar e identificar o surrealismo português – e logo se alcança uma bagagem teórica suficiente que permite arrancar da turbamulta de poetas um genuíno abjecionista: Luís Filipe Coelho.

Antes de avançar, uma pausa para se digerir a informação. O mais habitual, entre os surrealistas portugueses, é aceitarmos como tal quem o líder congregou para a sua árvore genealógica, o que não tem sido razão menor para cisões, revoltas, e rebelde criação de novos grupos surrealistas. O que acabo de fazer é considerar surrealista aquele cuja obra manifesta características importantes do movimento, quer do ponto de vista das ideias quer das práticas artísticas, e não quem foi indicado como tal por Mário Cesariny ou Luiz Pacheco. Tanto quanto sei, é a primeira vez que Luís Filipe Coelho é chamado à colação surrealista, e mais especificamente abjecionista.

Da geração do café Monte Carlo, amigo ou companheiro dos frequentadores - Luiz Pacheco, Nicolau Saião, Herberto Helder, António Barahona da Fonseca, entre mais autores da área surrealista que, tarde ou mais cedo, irão parar à mesa da disseção literária - Luís Filipe Coelho tem-se mantido em lugar discreto, a despeito de viver profissionalmente entre editoras e escritores, e da sua às vezes transbordante veia satírica, aliada ao que surrealistas como Cesariny quiseram que fosse abjecionista: a crítica, a militância contra a ditadura, aquilo que, do ponto de vista dos mentores do surrealismo em Portugal se identifica até com o neo-realismo. É assim que, num gesto provocatório de gosto aliás duvidoso, na sua antologia Surrealismo-Abjeccionismo, Mário Cesariny de Vasconcelos escolhe para prefácio um artigo de Afonso Cautela sobre o neo-realismo. Pode o abjecionismo corresponder à militância neo-realista, porém as práticas artísticas do surrealismo são de tal modo distintas que nem sequer deixam tomar a sério o epíteto “abjecionista”, se sinónimo de “neo-realista”.

Verdadeiramente curioso, entretanto, é assistirmos, cem anos volvidos sobre o dealbar do movimento, a uma espécie de revitalização, em que se arranca da terra tudo quanto é paleografia ou letra viva e atuante de teor surrealista. Refira-se, a título de exemplo o mais casual possível, a exposição de fotografias intitulada «Surrealismo», de André Boto, patente ao público até fim de junho no setor de exposições temporárias do Museu do Côa, dedicado prioritariamente às gravuras paleolíticas e só marginalmente aos artistas contemporâneos.

O abjecionismo é o surrealismo português, declaram então os criadores da expressão. Aceitemo-la só enquanto a provocação nela contida der fruto que alimente o debate. Ao teor crítico e militante do abjecionismo acrescentemos linguagem condizente e ficamos com ferramenta muito útil para aceder às subtilezas do discurso dos artistas integráveis no perímetro surrealista, caso de Luís Filipe Coelho, cujo léxico e temário recorda, v.g., quer Rabelais quer o Mestre Gil de “samicas de caganeira”, como documenta texto próximo de outro mais musiquiante, em ‘Da-se!!! (17 Anaisfabetos), atribuído a P. Esse Lopes, Lopes S que lembra sant’Ana, vejamos (lembrais-vos?) –

Ao cair do pano

Às tantas da manhã

Baila, nas cordas de um piano,

O Garízio, uma valsa de Chopin. 

A primeira marca surrealista de um autor é o seu hibridismo: poeta e pintor, dupla personalidade que pode ter mais componentes ainda, na música, na dança, no circo. Este é um dos suportes em que assentamos a declaração de que Luís Filipe Coelho é surrealista e artista, quer dizer, o que lhe sai das mãos pertence em especial ao reino do artista, mais do que ao do poeta em sentido estrito: é mais amplo, inclui os versos, apesar de o maior volume das suas obras ter sido publicado em suporte de papel, numa coleção de poesia, «Literatralhas nobelizáveis», que Luís Filipe Coelho dirige na editora Apenas Livros de Cordel. Luís Coelho recorre aos versos e ao papel porque estão à mão de semear e a arte das letras sobre papel é económica. De outro modo, mesmo o que escreve enquadra-se melhor nas artes plásticas, com a visualidade do epigrama, do neologismo e das peregrinações dos buracos, pontos pretos, Fragmentos de uma narrativa adiada e ausências de Aníbal Silva ST. Insunities (Insolaridades), de Alberth John (Garden?), p.ex., são palavras para observar, e com atenção, mais do que para ouvir/ler. Se bem que a natureza do objeto seja inteiramente deixada à imaginação do leitor, é bem mais para contemplar, plasticamente, do que para ler, aquele a que se alude em notável declaração de outra obra de Aníbal Silva St, Gosto das mulheres que gostam deles grandes. O Caralho, de Rodrigues Baptista, escapa à regra do ver, tratando-se, como se trata, de poemas para ler, de fácies minimal, dedicados a temas políticos candentes, como no exemplo, a que ao político acrescem o poético e o religioso: 

Salmon Rushdie

Is an igNOBEL peixdie

De espetada expinha má

Nas almofadas de Alá. 

E com isto chegamos à moderna questão da alteridade: nem sempre o autor assina com o seu nome, não se tratando entretanto de pseudónimos nem de heterónimos os outros nomes que suportam a carga autoral: trata-se antes de atribuições felizes, nem todas reconhecíveis por mim, mas assinaláveis todas como gestos de cândida generosidade. Generosidade abjecionista, precisemos, quando Aníbal (Cavaco) Silva ST (? – não garanto o acerto absoluto das minhas exegeses dos signos autorais) assina «Ausências», livro cuja essência se manifesta na quase total ausência de palavras, ou quando P. Esse Lopes (Pedro Santana Lopes?) recebe de graça a obra Sincocilos de quacaína e Uma hefemérdide, com o pedido de desculpas do revisor (Luís Filipe Coelho) pela gralha constante do primeiro título, uma gralha tão rara que nem deve pertencer à vulgar família Corvidae, é por certo representante de espécie nova. Alberto João Jardim e Manuela Ferreira Leite são personalidades da política honradas igualmente com autorias, em especial amostragem exemplar daquilo de que foram autoras. 

 
  OBRAS DE LUÍS FILIPE COELHO

Luís Filipe Coelho - Epígrafes, Lisboa, Barca Nova, 1982.

Luís Filipe Coelho - Faustos dispersos de Príapo, Lisboa, Marginália, 1985.

Luís Filipe Coelho - Paleo-realismos. Lisboa, Moraes Editores, 1987.

La Lica – Puerilidades. Lisboa, Apenas Livros Editora, coleção Literatralhas nobelizáveis, 2003.

Garizio D.B. – A punheta do canhoto, 25 diatribes a 1 vazio epistémico. Lisboa, Apenas Livros Editora, coleção Literatralhas nobelizáveis, 2004.

L.F.BaCo – Fragmentos de uma narrativa adiada (quase romance). Lisboa, Apenas Livros Editora, coleção Literatralhas nobelizáveis, 2ª edição, 2004.

L.F. BaCo – Peregrinações de um ponto preto – divagações sobre o mito do eterno retorno (quase romance). Lisboa, Apenas Livros Editora, coleção Literatralhas nobelizáveis, 2ª edição, 2004.

P. Esse Lopes – ‘Da-se!!! (17 Anaisfabetos). Lisboa, Apenas Livros Editora, coleção Literatralhas nobelizáveis, 2005.

Garizio D.B. – O pintelho da maltrapilha. Lisboa, Apenas Livros Editora, coleção Literatralhas nobelizáveis, 2005.

Rodrigues Baptista – O caralho!. Lisboa, Apenas Livros Editora, coleção Literatralhas nobelizáveis, 2005.

Aníbal Silva St – Gosto das mulheres que gostam deles grandes. Lisboa, Apenas Livros Editora, coleção Literatralhas nobelizáveis, 2005.

Diego Frestas – Os cus-de-cristo. Lisboa, Apenas Livros Editora, coleção Literatralhas nobelizáveis, 2005.

Alberth John – Insunities (Insolaridades). Edição bilingue, Lisboa, Apenas Livros Editora, coleção Literatralhas nobelizáveis, 2005.

Aníbal Silva St – Ausências. Lisboa, Apenas Livros Editora, coleção Literatralhas nobelizáveis, 2005.

P. Esse Lopes – Sincocilos de quacaína e uma hefemérdide. Lisboa, Apenas Livros Editora, coleção Literatralhas nobelizáveis, 2005.

M.F. deLeite – Copulativa e/ou copulatória, a mesma história. Lisboa, Apenas Livros Editora, coleção Literatralhas nobelizáveis, 2009.

Luis Filipe Coelho – Minha rua, ruaminha. Lisboa, Apenas Livros Editora, coleção Literatralhas nobelizáveis, 2012.

Serpins Verde – Quatro odes ao furo. Divagações sobre o nada relativo. Lisboa, Apenas Livros Editora, coleção Literatralhas nobelizáveis, 2014.

Pedro Janelas – Anatomia do buraco. Divagações sobre o nada absoluto. Lisboa, Apenas Livros Editora, coleção Literatralhas nobelizáveis, 2014.

Deus - O inexistente existe, da autoria de Deus. Lisboa, Apenas Livros Editora, coleção Literatralhas nobelizáveis, 2014.

   
   
 

 

   
 

 

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