REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 46 | junho-julho | 2014

 
 

 

 

MAGALI ROSA DE SANT'ANNA
&

M
ARGARETE BERTOLO BOCCIA

 “O Filho de Gabriela” de Lima Barreto: uma análise do conto para o ensino médio

 

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
Página Principal  
Índice de Autores  
Série Anterior  
SÍTIOS ALIADOS  
Revista InComunidade  
Apenas Livros Editora  

Arte - Livros Editora

 
Jornal de Poesia  
Domador de Sonhos  
Agulha - Revista de Cultura  
   
 
 
 

Resumo       

O presente texto apresentará uma proposta de exercício de análise do conto “O Filho de Gabriela”, do autor Lima Barreto. A aproximação entre a Literatura e os conceitos freirianos foi analisada segundo a racionalidade literária do mundo, de forma que o professor possa aplicar esse tipo de análise em suas aulas de Literatura do Ensino Médio.

Palavras-chave: Ensino Médio. Conto. Lima Barreto. Literatura Marginal. Sociedade.

 
 

Introdução

O objetivo deste artigo é propor um exercício de análise e aproximação entre a Literatura e os conceitos freirianos, para o conto “O Filho de Gabriela”, do autor Lima Barreto (1).

Parte-se da compreensão que a literatura, como toda obra de arte, revela muito mais sobre uma sociedade que as próprias obras científicas, como pode-se verificar no trecho:  

A obra literária não é o simples reflexo de uma consciência coletiva real e dada, mas a concretização, num nível de coerência muito elevado, das tendências próprias de tal ou tal grupo, consciência que se deve conceber como uma realidade dinâmica orientada para certo estado de equilíbrio. (GOLDMANN, 1990, p.18) 

A obra de arte é considerada uma variável independente, que pode ser observada e analisada sob duas perspectivas: a de quem a escreve e a de quem aprecia. Em ambas as formas, o texto do artista se apodera da sensibilidade que, descrita com inteligência, proporciona sensações completas aos leitores. Por outro lado, o próprio artista não está querendo provar tese nenhuma a ninguém e, ao escrever seu texto descreve quase que inconscientemente, na maioria das vezes, a própria sociedade (ROMÃO, 2011).

A aquisição de conteúdos curriculares, segundo os PCNs para o Ensino Médio (2000, p.92) para a área de Linguagens e Códigos, servem “para a constituição da identidade e o exercício da cidadania”. Então, entendemos que seria através da comunicação e de suas diferentes linguagens, que podemos ressaltar a importância dessa formação. Desta forma, seria interessante trabalhar em sala de aula com conteúdos ligados as artes (a Literatura, por exemplo) e assim, contemplar e contribuir para a identidade, bem como para o conhecimento de mundo do aluno.

Observa-se que no Ensino Médio, o ensino da Literatura é bastante utilizado. Na verdade, os temas literários limitam-se aos textos “autênticos”, sempre com vistas às obras literárias que podem estar presentes no vestibular.

Portanto, o professor pode apresentar outros tipos de obras literárias. Dependendo de como o professor trabalhá-las, elas podem ampliar a visão de mundo de seus alunos. E neste artigo o ensino da literatura apresenta uma possibilidade de tratar o conto de uma forma diferente, com predominância dos aspectos sociais do ser humano.

 
 

Metodologia da análise do conto

Iniciamos com um resumo do conto, de forma que haja a compreensão da obra, de seus personagens, de sua estrutura, da caracterização de seus elementos e dos aspectos da trama que merecem destaque. Em seguida, apresentamos à análise quando articulamos os elementos internos e os elementos externos do conto com a obra do autor. Assim, faremos uma aproximação entre o conto e as características das obras de Lima Barreto, iniciando o processo de explicação.

Os conceitos utilizados na análise e explicação foram referenciados pelos teóricos Goldmann (1990) e Lukács (2012), na perspectiva da compreensão da obra. Desta forma estabelecemos uma aproximação entre esse processo de análise e os conceitos freirianos.

Finalmente, apresentaremos as questões pedagógicas do ensino de Literatura baseadas nos PCNs de para o Ensino Médio.

 
 

Análise do conto: “O Filho de Gabriela”

Iniciaremos com um resumo do conto.

“Empregada na casa do casal Laura e Conselheiro Acácio, Gabriela era, às vezes, maltratada. O casal não teve filhos e ambos viviam hipocritamente seu matrimônio. Em uma discussão com a patroa, Gabriela recebe uma negativa sobre a autorização de sua saída para levar o filho ao médico. Diante da negativa da patroa quanto à autorização de saída; Gabriela apresenta um primeiro momento de mudança de postura da submissão à insubordinação dizendo que sairá mesmo sem permissão e utiliza-se do argumento de ter conhecimento de casos extraconjugais da patroa. Após a discussão Gabriela deixa a casa levando consigo seu filho. Após um período de procura de outro emprego e, não o encontrando, Gabriela retorna a casa dos antigos patrões a convite de Laura; demarcando, assim, certa aproximação e cumplicidade entre Gabriela e Laura. Conselheiro Acácio e Laura tornam-se padrinhos de seu filho e o criam após a sua morte. Horácio é o filho de Gabriela que é criado de modo distante e até mesmo invisível pelos padrinhos. Teve uma infância quieta e solitária, marcada pela tristeza, sisudez, com pouco talento para os estudos e que buscava de algum modo distinção dos demais. Em determinado momento, quando lhe é solicitado que busque algo para seu padrinho, aparentemente sem motivo, reproduz o comportamento da mãe do início do conto, se recusando a fazê-lo e recebe como reação do padrinho que isso seria de ser esperar.... Culpabiliza-se pela reação de insubordinação e/ou revolta desnecessária, aparentemente, e passa a apresentar uma reação aparentemente de delírios.”

 
 

Personagens do conto

Os protagonistas presentes no conto de Lima Barreto, “O Filho de Gabriela” são: Gabriela, Horácio, Laura, Conselheiro Acácio e Salvador. 

Descrição e características dos personagens

Iremos descrever as personagens e transcrever trechos do conto, os quais apresentam as características físicas e psicológicas de cada um. 

Gabriela – cozinheira na casa do conselheiro Acácio e Laura que após uma discussão deixa a casa e depois retorna. Demonstrando certa aproximação entre a patroa e a cozinheira (2).

Na sua simplicidade popular, a criada também se pôs a chorar, enternecida pelo sofrimento que ela mesma provocara na ama.

[...]

Desculpou-se inábil e despediu-se humilde.

 

Horácio – filho de Gabriela, batizado pelo conselheiro Acácio e sua esposa Laura, para atender a um pedido da esposa, com o falecimento da mãe é criado pelos padrinhos. Estuda, mas não demonstra habilidade para os estudos. Quando pequeno já aparentava timidez e sisudez e se mantém assim até a idade adulta.

Conquanto tivesse recebido um tratamento médico regular e a sua vida na casa do conselheiro fosse relativamente confortável, o pequeno Horácio não perdeu nem a reserva nem o enfezado dos seus primeiros anos de vida. A proporção que crescia, os traços se desenhavam, alguns finos: o corte da testa, límpida e reta; o olhar doce e triste, como o da mãe, onde havia, porém, alguma coisa a mais – um fulgor, certas expressões particulares, principalmente quando calado e concentrado. Não obstante, era feio, embora simpático e bom de ver.

Pelos seis anos, mostrava-se taciturno, reservado e tímido, olhando interrogativamente as pessoas e coisas, sem articular uma pergunta.

 

Laura – esposa do conselheiro, que se casou por ambição, mais nova do que ele. Gosta de Horácio, mas pouco demonstra.

[...] a patroa – uma alta senhora, ainda moça, de uma beleza suave e marmórea – com os lábios finos muito descorados e entreabertos, deixando ver os dentes aperolados, muito iguais, cerrados de cólera; a criada agitada, transformada, com faiscações desusadas nos olhos pardos e tristes.

 

Conselheiro Acácio – homem viúvo que se casa com Laura por conveniência – necessidade decorativa, um homem em sua posição não poderia / ou deveria ficar sozinho. Egoísta, fechado e frio.

O conselheiro, homem de mais de sessenta anos, continuava superiormente frio, egoísta e fechado, sonhando sempre uma posição mais alta ou que julgava mais alta. Casara-se por necessidade decorativa. Um homem de sua posição não podia continuar viúvo; atiraram-lhe aquela menina pelos olhos, ela o aceitou por ambição e ele por conveniência.

 

Salvador – personagem secundário, amigo de Horácio que o acompanhava, principalmente às visitas ao Jardim Botânico.

Ele e o seu constante amigo Salvador sentavam-se a um banco, conversavam sobre os estudos comuns, maldiziam este ou aquele professor.

 

Elementos que merecem destaque

Relação de (in)subordinação:

Relação de opressão e indicação da diferença entre alguém que se considera superior e no direito de decidir sobre a vida do outro.

– Não pode, não pode, já lhe disse! O conselheiro precisa chegar cedo à escola; há exames e tem que almoçar cedo... Não vai, não senhor ! A gente tem criados pra que? Não vai, não!

– Vou, e vou sim!... Que bobagem!... Quer matar o pequeno, não é? Pois sim... Está-se "ninando"...

– O que é que você disse, hein?

– É isso mesmo: vou e vou!

– Atrevida.

 

Ligação entre Gabriela e Laura:

Sentimento de dor, cumplicidade, proteção.

E ambas, pelo fim dessa transfiguração inopinada, entreolharam-se surpreendidas, pensando que se acabavam de conhecer naquele instante, tendo até ali vagas notícias uma da outra, como se vivessem longe, tão longe, que só agora haviam distinguido bem nitidamente o tom de voz próprio a cada uma delas.

No entendimento peculiar de uma e de outra, sentiram-se irmãs na desoladora mesquinhez da nossa natureza e iguais, como frágeis consequências de um misterioso encadear de acontecimentos, cuja ligação e fim lhes escapavam completamente, inteiramente...

[...]

Entre elas, parecia que havia agora certo acordo íntimo, um quê de mútua proteção e simpatia. Uma tarde em que Dona Laura voltava da cidade, o filho da Gabriela, que estava no portão, correu imediatamente para a moça e disse-lhe, estendendo a mão: "a bênção".

 

Situações de opressão:

GABRIELA

Durante um mês, Gabriela andou de bairro em bairro, à procura de aluguel. Pedia que lessem-lhe anúncios, corria, seguindo as indicações, as casas de gente de toda a espécie. Sabe cozinhar? perguntavam. – Sim, senhora, o trivial. – Bem e lavar? Serve de ama? – Sim, senhora; mas se fizer uma coisa, não quero fazer outra. – Então, não me serve, concluía a dona da casa. É um luxo... Depois queixam-se que não têm aonde se empreguem...

Procurava outras casas; mas nesta já estavam servidas, naquela o salário era pequeno e naquela outra queriam que dormisse em casa e não trouxesse o filho.

 

HORÁCIO

Tendo uma vez brigado com um colega, a professora o repreendeu severamente, mas o conselheiro, seu padrinho, ao saber do caso, disse com rispidez: "Não continue, hein? O senhor não pode brigar – está ouvindo?"

E era assim sempre o seu padrinho, duro, desdenhoso, severo em demasia com o pequeno, de quem não gostava, suportando-o unicamente em atenção à mulher – maluquices da Laura, dizia ele. Por vontade dele, tinha-o posto logo num asilo de menores, ao morrer-lhe a mãe; mas a madrinha não quis e chegou até a conseguir que o marido o colocasse num estabelecimento oficial de instrução secundária, quando acabou com brilho o curso primário.

 

LAURA

Havia nela mais medo da opinião, das sentenças do conselheiro, do que mesmo necessidade de disfarçar o que realmente sentia, e pensava.

Quem a conheceu solteira, muito bonita, não a julgaria capaz de tal afeição; mas, casada, sem filhos, não encontrando no casamento nada que sonhara, nem mesmo o marido, sentiu o vazio da existência, a inanidade dos seus sonhos, o pouco alcance da nossa vontade

 

Os protagonistas, Gabriela e Horácio, demonstram postura de insubordinação. De certa forma talvez possamos considerar que ambos começam a ter consciência de seu real lugar na casa de Laura e do Conselheiro Acácio. Isto quer dizer que, num primeiro momento nos deparamos com situações que apresentam indícios de insubordinação, as quais mais a frente refletem uma tomada de consciência ou um posicionamento de seu papel naquele contexto do conto.

Abaixo, apresentamos a título de ilustração, trechos em que essa “insubordinação” ou “tomada de posição” das personagens ocorrem no conto.

 

GABRIELA

– Atrevida é você, sua... Pensa que não sei...

 

Fato repetido por HORÁCIO, posteriormente.

– Horácio, você passe na casa do Guedes e traga-me a roupa que mandei consertar.

– Mande outra pessoa buscar.

– O que?

– Não trago.

– Ingrato! Era de esperar...

E o menino ficou admirado diante de si mesmo, daquela saída de sua habitual timidez.

 

LAURA:

Tinha um amante e já tivera outros, mas não era bem a parte mística do amor que procurara neles.

Essa, ela tinha certeza que jamais podia encontrar; era a parte dos sentidos tão exuberantes e exaltados depois das suas contrariedades morais.

 

HORÁCIO

Salvador, de que gostas mais, do inglês ou francês? – Eu do francês; e tu? – Do inglês. – Por que? Porque pouca gente o sabe.

A confidência saía-lhe a contragosto, era dita sem querer. Temeu que o amigo o supusesse vaidoso.

Não era bem esse sentimento que o animava; era uma vontade de distinção, de reforçar a sua individualidade, que ele sentia muito diminuída pelas circunstâncias ambientes.

[...] percebeu bem como vivia envolvido, mergulhado, no indistinto, no indecifrável; e uma onda de pavor, imensa e aterradora, cobriu-lhe o sentimento.

[...] Não sabia onde tinha ido buscar aquele desaforo imerecido, aquela tola má-criação; saiu-lhe como uma coisa soprada por outro e que ele unicamente pronunciasse.

[...] Reconstituiu-o com os gestos, com os olhares, com as meias palavras, que percebera em tempos diversos e cuja significação lhe escapara no momento, mas que aquele ato, desusadamente brusco e violento, aclarava por completo. Viu-lhe o sofrimento de viver à parte, a transplantação violenta, a falta de simpatia, o princípio de ruptura que existia em sua alma, e que o fazia passar aos extremos das sensações e dos atos.

 

No trecho seguinte encontramos nitidamente o sentimento do oprimido, que carrega em seu íntimo o opressor. Esse tipo de situação descrita pelo autor do conto, traz a tona o sentimento de culpa no personagem que fora oprimido durante toda sua existência.

 

Foi Horácio para o colégio abatido, preso de um estranho sentimento de repulsa, de nojo por si mesmo. Fora ingrato, de fato; era um monstro. Os padrinhos lhe tinham dado tudo, educado, instruído. Fora sem querer, fora sem pensar; e sentia bem que a sua reflexão não entrara em nada naquela resposta que dera ao padrinho. Em todo o caso, as palavras foram suas, foram ditas com sua voz e a sua boca, e se lhe nasceram do íntimo sem a colaboração da inteligência, devia acusar-se de ser fundamentalmente mau...

 
 

Análise da obra

O conto “O filho de Gabriela” é narrado em 3ª pessoa e Lima Barreto utiliza-se de uma linguagem simples e direta. Diferentemente dos demais contos, não há indicação do lugar e ano em que fora escrito ou da data de sua publicação.

O texto não segue a lógica dos demais contos do autor, no que diz respeito ao local característico, ou seja, das longas e precisas descrições do subúrbio carioca. Logo, em outros textos do autor encontramos a contraposição da população pobre e oprimida desse subúrbio com a burguesia de “outro” lugar. Neste conto, então, nos defrontamos com pequenas descrições do local, contrariando o estilo do autor. Há rápidas menções ao local, à viagem de bonde, à indicação da rua do Ouvidor – constante em suas obras e apresentada como localização no centro da cidade. Todos são indícios de que a história se passa no subúrbio. Porém, como já mencionado, sem muitos detalhes nessas descrições.

Neste conto encontramos também a contraposição entre a população oprimida e seu opressor tanto no subúrbio, como dentro de casa, na relação patrão e empregado. Portanto, o texto mostra vestígios de opressão entre aquele que é o burguês e aquele que é o assalariado. Na verdade, entendemos que a crítica do autor do conto está relacionada aos costumes instituídos pela vida republicana daquela época.

Os negros e/ou dos mestiços não são caracterizados com tanta veemência, tal como em outras obras de Lima Barreto. Esse aspecto pode até ser encontrado neste conto, no entanto, se apresenta de maneira sutil, se compararmos com outros textos da mesma autoria.

O conto permeia o tema da “mulher”. Na caracterização da personagem Gabriela, encontramos traços da submissão que vivencia e dos valores a que é submetida, reproduzidos, principalmente, na relação da dona da casa com a cozinheira.

Lima Barreto trabalha no conto com a perspectiva do poder de uns sobre outros. Apresenta-o em situações distintas, vivenciadas pelas personagens Gabriela e Horácio, ambas parecidas e construídas de modo a apontar para uma possibilidade de conscientização e transformação no comportamento das personagens; o que ao final do conto não se confirma. Igualmente, a questão do poder é reproduzida no conto, contudo a mudança de atitude das personagens não ocorre.

A crítica do conto apresenta-se em todos os itens destacados anteriormente, os quais são tratados pela visão moral e ética. Além disso, demarca a hipocrisia de uma sociedade num determinado período da história.

 

Aproximação com conceitos teóricos

Conceitos que podem ser aproximados para a análise do conto, a partir da obra “Sociologia do Romance”, de Lucien Goldmann.

Nesta teoria, Goldmann (1990, p. 10) apresenta alguns elementos constitutivos do romance, dentre eles, na análise realizada considerou-se o conto estudado como um “[...] romance psicológico, orientado para a análise da vida interior, caracterizado pela passividade do herói e sua consciência demasiado vasta para contentar-se com o que o mundo da convenção lhe pode propiciar”.

Se para o autor dessa teoria  

[...] um personagem problemático cuja busca degradada e, por isso, inautêntica de valores autênticos num mundo de conformismo e convenção, constitui o conteúdo desse novo gênero literário que os escritores criaram na sociedade individualista e a que chamaram “romance”. (GOLDMANN, 1990, p.09) 

logo, no conto analisado, o personagem Horácio é identificado como o herói problemático, marcado por anos em sua passividade, mas que em certo momento não consegue apenas contentar-se com a sua situação. O mesmo pode ser dito sobre a protagonista Gabriela, que assim que o conto inicia, também a reconhecemos como uma heroína problemática (conceito de reificação de Goldmann) (3).

Para Goldmann, as estruturas do universo das obras são homólogas às estruturas mentais de certos grupos sociais, levando a arte a favorecer a tomada de consciência do grupo social.

 

[...] o objetivo de uma sociologia da literatura é, portanto, a busca de homologias, o estudo das estruturas significativas presentes nos grupos sociais – o substrato social que confere unidade à obra literária.

Portanto, Goldmann formula hipóteses sociológicas que dizem respeito, “por uma parte, à homologia entre a estrutura romanesca clássica e a estrutura da troca na economia liberal; e, por outra parte, à existência de certos paralelismos entre suas respectivas evoluções ulteriores”. (GOLDMANN, 1990, p. 08)

 

Partindo das hipóteses de Goldmann (1990) o conto analisado de Lima Barreto se insere no início do século XX, vinculando-se à primeira fase do capitalismo liberal, cuja característica coloca o indivíduo no centro da vida social. Por conta disso, o homem começa a sofrer as consequências das questões econômicas, que se reflete em forma de crítica social e por isso encontramos personagens problemáticos. E, quando estes estão presentes em contextos opressivos, buscam valores autênticos num mundo hostil, mas numa procura fadada ao fracasso.

A partir da análise pela busca da transcendência vertical, que parece seguir um caminho possível no conto, mas que no final não ocorre, verificamos a aproximação com conceitos freirianos. Gabriela apresenta uma aparente transcendência, mas a sociedade opressora não permite. Os opressores no conto são representados pela sociedade – na relação de classes e nas relações entre as pessoas dessas classes, por exemplo, Laura em determinado momento é quem exerce a opressão sobre Gabriela. Mas, Laura também busca sua transcendência vertical, pois também sofre a opressão e não alcança a transposição vertical.

A questão de dar voz a quem não tem, foi representada apenas em dois momentos – anteriormente transcritos –, como pontos que merecem destaque, ilustrando aspectos de insubordinação das personagens.

Ainda, nos baseando nos conceitos teóricos de Goldmann (1990), observamos que Laura é uma personagem bastante rica para a análise dos mesmos, representando de uma certa perspectiva a própria dialética. Entendemos que Laura é uma personagem ambígua, oprimida pelo marido e pela vida da sociedade, ambas escolhas feitas por ela mesma. Tem postura libertária, pois busca um caminho através de seus amantes, mas ainda assim é oprimida pela própria situação. E apesar dos amantes, não é feliz. Por outro lado é a opressora da cozinheira.

No conto as personagens consideradas oprimidas são Gabriela, Laura e Horácio. Entretanto, vimos que cada um sofre uma opressão diferente.

A escola bancária é perfeitamente colocada a partir dos relatos de como Horácio viveu e vive, contudo ele recusa essa estrutura e prepara-se para um processo de rompimento, de mudança. Talvez possamos dizer que este comportamento seja de conscientização, a qual ocorre no final do conto.

 
 

Considerações finais

Conforme os PCNs para o Ensino Médio (2000) o professor deve trabalhar com diferentes linguagens, de modo que o aluno possa exercer o amplo exercício da cidadania. E a Literatura é uma das artes que pode contribuir para isso.

Então, nos utilizando desta informação e pensando em cooperar com uma atividade literária em sala de aula, escolhemos o conto “O Filho de Gabriela” de Lima Barreto para propor um exercício de análise baseada na teoria de Goldmann (1990). Percebemos que este conto retrata a relação de submissão, de domínio e de desigualdade social, as quais puderam também ser explicadas a partir das obras de Freire (1971 e 1980).

Esperamos que esta singela análise possa contribuir para incentivar professores e pesquisadores a realizar outras análises pela mesma visão, a do oprimido.

 
 

Referências

FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1971.

______. Pedagogia do Oprimido. 8. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

GOLDMANN, Lucien. A sociologia do romance. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. 2. ed. 1ª reimpressão. São Paulo: Duas Cidades/ Editora 34, 2012.

ROMÃO, José Eustáquio. Paulo Freire e a Imagem. In: Educação e Linguagem, v. 13, p. 77-97, 2011.

 

Webgrafia

BRASIL. MEC. Parâmetros Curriculares Nacionais (Ensino Médio). 2000. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/blegais.pdf  Acesso em fev. 2014.

BARRETO, Lima. O Filho de Gabriela. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/textos/bn000130.pdf.contosdelimabarreto  Acesso em dez. 2012.

BARRETO, Lima. O Filho de Gabriela. Disponível em: http://www.superdownloads.com.br/download/68/filho-de-gabriela-lima-barreto/  Acesso em fev. 2014.

 
  (1) Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu em 1881 e faleceu em 1922 no Rio de Janeiro. Foi jornalista e um dos mais importantes escritores libertários brasileiros. Para ele, o escritor tinha uma função social. Em suas obras, de temática social, privilegiou os pobres, os boêmios e os arruinados.

(2) Verificamos que não há uma descrição desta personagem como nas demais, bem elaborada, completa. Detalhe que mostra uma diferenciação dos demais contos de Lima Barreto, sempre muito descritivos, cheios de detalhes.

(3) Conceito de reificação – um gênero problemático que mantém uma rigorosa homologia com as principais fases da estrutura econômica da burguesia.  
 

 
 

Magali Rosa de Sant’Anna é professora de Inglês, Prática de Ensino de Língua Estrangeira, Metodologia de Ensino de Língua Inglesa, Pronúncia da Língua Inglesa há 32 anos, nos quais os últimos 22 são dedicados à Universidade Nove de Julho – UNINOVE. Atualmente leciona na Graduação do curso de Letras e na Pós-Graduação, no Programa de Mestrado e Doutorado em Educação. É Mestre e Doutora em Linguística (USP). É autora de livros e artigos acadêmicos.

 
 

Margarete Bertolo Boccia é Mestre e Doutoranda em Educação na UNINOVE. Possui graduação em Pedagogia e pós-graduação em Didática e Psicopedagogia pela Universidade Cidade de São Paulo. Foi professora e diretora de escola, na rede pública e privada de ensino; coordenadora de Pós Graduação. Autora de livros e artigos acadêmicos. Atualmente é docente e coordenadora do curso de Pedagogia da UNINOVE, no curso presencial e na modalidade Educação a Distância.

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL