REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 46 | junho-julho | 2014

 
 

 

 

JÚLIO CONRADO

Urbano Tavares Rodrigues
e os seus prologuistas

 

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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Dir. Maria Estela Guedes  
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Não vale a pena fazer de Urbano Tavares Rodrigues um grande esquecido de entre os escritores da sua geração lá porque não lhe deram o Prémio Camões (velada, ou nem tanto assim, censura do próprio ao terem-no atribuído a um poeta discreto como Manuel António Pina?) ou sequer, alguma vez, o Grande Prémio de Romance e Novela. Sucede que Urbano não precisou deles para nada. Não foi por isso que não foi reconhecido, amado, viajado, odiado, que deixou de ter mulheres aos cachos, como um dia se gabou em letra de forma, ou se viu forçado a escrever livros para a gaveta. Como hoje em dia anda toda a gente com a cabeça a prémios, pode questionar-se sem pitada de ironia o que andaria um romance ou uma novela de UTR a fazer neste galarim onde deixou de haver distinção entre “personalidades” que escrevem livros e obra literária propriamente dita.

A morte física de autor de tão vasta produção permitiu aos choramingas de serviço acudirem a carpir a “grande perda”, como se noventa anos não fosse uma boa idade para se morrer e cem livros não constituísse espólio suficiente para se entreterem a estudá-lo no resto da vida, emboscando despedidas lancinantes na voz embargada e na furtiva lágrima ao canto do olho. Procurei encontrar uma alternativa de homenagem que não fosse mais um soluço condenado a diluir-se no oficioso pesar colectivo. Urbano viveu e escreviveu que se fartou, deixou-nos páginas belíssimas e outras nem tanto, mas que uma antologia dos melhores momentos resgatará para uma obra fundamental do ponto de vista estético literário, conquanto nos planos social e de intervenção tudo o que escreveu seja aproveitável como pista de excelência para o esclarecimento de muitas das suas obsessões (“Claro que sou um poço de contradições. Eu e todo o homem que não minta a si próprio e saiba olhar para os seus desvãos, que não se renegue nem se envergonhe de tudo o que nele possa emergir de incoerente e absurdo”) (1), mas sobretudo contribuição ímpar para a história da vida privada em Portugal num determinado período do século passado. Nesta medida procurei furtar-me ao pranto geral para dar desde já, singela que seja, uma contribuição para que se comece a meter mãos à obra e a descobrir o que seremos capazes de ganhar ainda com o colossal legado de Urbano Tavares Rodrigues.

Dando-me conta de que dispunha na minha estante de um conjunto apreciável de livros (autografados) do Urbano valorizados por prefácios subscritos por alguns nomes de referência (nem todos, helas) do ensaísmo literário português à época em que foram elaborados, achei por bem reler esses textos para deles obter um retrato do autor, sem (quase) me citar, já que fui também dos muitos a quem a escrita de Urbano tocou e sobre ela escreveu. Interessava-me mais a visão dos outros sobre a personagem escritor do que a dele por ele mesmo (através dos fragmentos de espelho em que amiúde se feria), ainda que sem negligenciar esse lado, e por isso reli atentamente Horas Perdidas (2) em que a autobiografia não é gato escondido com o rabo de fora mas porventura o testemunho mais sincero de UTR sobre a suas infância e adolescência. Conquanto o outro-ele-mesmo que lhe escreveu o prefácio vinte e tal anos depois deixasse cair no texto como quem não quer a coisa: “Fui encontrar neste livro, que aliás pouco ou nada tem de biográfico…”. Entre o pouco e o nada haverá qualquer coisa. De autobiográfico, certamente.  

Ciente de que um prefácio tem por fim ajudar à introdução de uma obra específica do autor junto do leitor, em regra um elogio suficientemente expressivo com vista a criar uma corrente de empatia entre emissor, mediador e destinatário, dei por mim a reflectir acerca do porquê de nem tudo ser cortês nesses excursos interpretativos feitos de palavras que à partida deveriam ser estritamente amigáveis, átrios engalanados para estimular a leitura dos trabalhos assinados pelo intrépido contador de histórias. Mas também houve aplauso incondicional.   

 
 
  Retrato de Urbano Tavares Rodrigues por Dorindo de Carvalho
 

O “porém” 

Os primeiros volumes que me saltaram para as mãos foram A Noite Roxa (3) em 2ª edição revista (1967) e Nus e Suplicantes (4) em 4ª edição revista. O prefaciador daquela 2ª edição considera-se um homem vulgar (textualmente: leitor mediano) (5) nem sempre atraído pelo “itinerário” de Urbano mas que se permite um comentário “na esquadria da sociologia literária” por nestas coisas de itinerários haver sempre um “porém” que pode fazer agulha para que a locomotiva se desvie do destino programado. E lá abre brecha o “itinerário” que nem sempre tem proporcionado prazer ao leitor mediano. O “porém” em questão era tão só a novela Escombros que inaugura a recolha.

A novela mereceria, só por si, um ensaio crítico de fundo por razões tão óbvias que não escapam, de todo, ao olhar do nosso mediano observador: pretende-se compatibilizar um caso de crise de valores da juventude do pós-guerra no cenário da Berlim ainda parcialmente em escombros, com a “narração”, que é a escrita em processo antes de se fechar em “narrativa”, exorbitando da secura estilística para uma prosa de reverberações, sortilégios, digressões oníricas e psicológicas, afinal “um alarido verbal que destrói a contenção, conquista para se não ser afirmativo e fornecer ao leitor aquela importante margem de dedução e de aventura que é a natureza exacta das obras de arte.”

Nem o prefácio-ensaio saiu com a profundidade desejável nem se dá por adquirido que a dedução e a aventura sejam “a natureza exacta da obra de arte”. Teríamos de ponderar o rasgo inovador, o prazer do texto, a perícia sintagmática, a magia, a imagética e a imaginística, o engenho com que se gere a abundância vocabular arbitrando a tentação do desmando sem perder de vista o que nela é excelência, tudo escolhas pouco consensuais relativamente a uma “contenção” que as tolhesse e lhes impusesse baias para que os textos que daí surgissem alcançassem a “natureza exacta”, etc. Sucede que o leitor mediano em presença, que não suporta o “alarido verbal”, teve de se conter para gostar de Escombros e encontrar o “porém” remidor capaz de, num lapso de trégua, o reconciliar com o estilo exuberante do autor prefaciado. Que, por fortuna, marca o ponto na novela com todo o seu potencial de excesso. Ou seja: com grande alarido.

Não deixa de ser curioso que o prefaciador coteje a novela, à laia de velado correctivo, com obras de Carlos de Oliveira, Marmelo e Silva, José Cardoso Pires, Augusto Abelaira e Isabel da Nóbrega, todos, com excepção talvez do autor de “O Adolescente Agrilhoado”, mais impulsivo, de fonética mais musical, convergindo na exigência da contenção e do rigor (um segundo neo-realismo inventado por Alexandre Pinheiro Torres, uma espécie de neo-realismo chique sequencial ao neo-realismo miserabilista do Redol do primeiro Gaibéus, Soeiro Pereira Gomes, Manuel da Fonseca, etc., mas que deixou UTR de fora) sendo por demais evidente que em momento algum da novela Urbano abdicou da torrencialidade nem fez poupanças na devassa íntima das personagens, descritas até à saturação em contracorrente com o que à data de 1956 já era moda instalada: a personagem com pouca psique, homem ou mulher de acção, definida por traços caracteriais sumarizados. Nesta medida é no mínimo intrigante que o prefaciador convoque uma novela como O Anjo Ancorado, de José Cardoso Pires, para parente próximo ou afastado, pouco importa, dos Escombros de A Noite Roxa. A menos que fosse para dar um exemplo de como se fazia.

Esta é a fase de Urbano Tavares Rodrigues na qual insistirei por me parecer, ao contrário daqueles que se apressaram a encaixotar a sua ficção num neo-realismo que ele só aflorou, ou nem isso, forçado pelas circunstâncias (ou, dito de outra maneira, pelas circunstâncias que ele próprio forçou para cumprir o projecto próprio de transformação do anti-herói em herói que desse verniz cívico à imagem do escritor aclamado) e, diga-se, bastante tarde, quando já havia cumprido, e bem, um itinerário “marcado pelo existencialismo” e pelo seu “exílio doirado” (Jacinto Prado Coelho) de leitor de português em França de 1949 a 1955. O prefácio em questão é faca de dois gumes: uma oportunidade para o seu subscritor informar o grande público de que lado está, para tal convocando o rol dos escritores para quem a palavra é, antes do mais, ferramenta de oficina, seus pares (mas em bom) na “aventura” e na “dedução”, e para induzir Urbano a “mexer” no seu estilo até ser capaz de o transformar, já que estamos numa de regulação de intensidades de ruído, em sussurro disciplinado, remetendo o “alarido verbal” para as profundas dos infernos e colocando-o ao nível do dos melhores em prosa depurada, coisa que UTR nunca fará até ao fim dos seus dias. Até ao fim? Hum! E então Desta Água Beberei e afins? Ah, sim! Mas essa água na boca vai ter de esperar. E ver-se-á que também ela foi esporádica na carreira do Mestre. Por ora, estamos ainda perto daquele que se flagela, de goela seca: “Estou medindo a minha vida falhada. Falhada já de antemão. Porventura vale a pena falar de mim?” (6). Queremos paralelismo mais chegado a Camus, que escreveu mais ou menos o mesmo num momento de desconforto consigo? Não encontrei outra justificação para a minha vida senão este esforço criativo. Em quase tudo o resto fracassei. E se isto não me justifica não há perdão para a minha vida.(7)

Porquê Albert Camus metido nisto?

Esta chamada a Albert Camus é parte de um desvio que permite perceber quão fundo e longe foi a influência do argelo-francês na colheita existencial do novelista português. Com a mania que Urbano tinha de publicar em livro tudo o que acidentalmente ou não lhe acudia à pena (até eu fui contemplado) parecia-me impensável não haver referências a essa empatia para se ter uma ideia da dimensão de tal “paternidade intelectual”, mesmo se os notáveis compatriotas (Óscar Lopes, Jacinto Prado Coelho, Álvaro Manuel Machado) a deixaram implícita ou explicitamente mencionada nos seus escritos. Modernamente, Urbano, no afã de menorizar tal “fase”, não dava mais ênfase a essa dependência do que a outras, designadamente a de Malraux, e foi preciso vasculhar num livro de viagens, aliás notável e que eu não conhecia (8) – a caução de uma estima que extravasou da admiração pueril do jovem fascinado pelo brilho do escritor maior que nele terá intuído, talvez, a centelha dos predestinados no decurso de um relacionamento pessoal esfusiante.

Se Camus era, de alguma maneira, à época, a maior referência do escritor português, aquela que o fascinava acima de todas as outras, pelo exemplo de probidade intelectual que dela transcorria, pela arguta teorização da revolta individual e pelo seu papel na resistência ao alemão invasor da pátria cultural, e, por último, uma consciência comum do absurdo da vida – factores de convergência intelectual – diferenciava-os as origens, a de um, a da pobreza juvenil e atormentada de que todavia se orgulhava, a de outro, a folga em teres e haveres de menino bem-nascido que se envergonhava de ser rico, complexo de inferioridade patente/latente em muitas das personagens da sua ficção. Havia, contudo, outras afinidades interessantes entre ambos: os dois tinham combatido a tuberculose; a obsessão da morte era-lhes familiar, agudizada pelo internamento hospitalar; nutriam reduzido apreço pelas respectivas primeiras obras; gostavam de mulheres e eram predadores. Que o diga Sartre ao ver a “sua” Olga (9) receptiva ao charme do criador de Calígula. De Urbano, então, nem se fala. Ou falaremos mais tarde, quando vier a talho de foice D. Juan e o donjuanismo. 

De Florença a Nova Iorque oferece-nos a seguinte, exuberante, pista no capítulo Primeiro encontro com Albert Camus, Paris, Dezembro de 1953 (uma entrevista para o Diário de Lisboa): “Trazia já preparado um respeitável quesito, quase solene, muito filosófico: afinal, animado pela simpatia daquele sorriso irreverente, que pronto encontrava eco na minha sensibilidade, saí da pele do jornalista mundano e literário que em certas alturas é conveniente enfiar, e, quase sem garatujar uma linha no papel, pus-me a discorrer com Albert Camus pela obra dele que tão sincera e profundamente admiro.”

Da descrição da entrevista vale a pena sublinhar os seguintes pontos:

“Após as primeiras palavras senti que um contacto humano se estabelecia entre nós.”

“No Calígula, no Estrangeiro, via eu a rebeldia desprovida de sentido, revolta que já n’ A Peste assumiria aspectos mais aparentemente positivos para ganhar com O Homem Revoltado uma nitidez e um valor construtivo que seriam o resultado de uma harmoniosa evolução espiritual.”

“Concordámos em que o aspecto mais importante em O Estrangeiro á afinal uma moral da sinceridade.”

“Este homem, de saúde frágil, cuja obra é das mais significativas do momento presente, tem ainda muito que dizer ao mundo e ele sabe-o.”

“E senti então, mau grado o desencanto que já me vai atingindo, desencanto das coisas e dos homens, senti plenamente que estava a viver um momento grande da minha existência.”

“Desta vez [opinião sobre Calígula] com grande satisfação da minha parte, obtenho a inteira concordância de Albert Camus.”

“Essa entrevista de antemão pensada, imaginada a frio, convertera-se numa hora  para mim inapreciável de convívio espiritual.”

À medida que Urbano evolui para um estádio ideológico superior ao do homem revoltado, o elogio da influência do escritor de Mondovi no despertar da futura estrela portuguesa vai esmorecendo. Ao longo dos anos a referida dependência será cada vez menos recordada. A morte prematura de Camus pode mesmo ter representado uma espécie de libertação da tutela espiritual de alguém que não viveu o suficiente para mudar de campo. Nas palavras de despedida perpassa a vaga sensação de um reparo: o de o autor de A Peste não ter ousado mais. (“A lenda fará dele o campeão solitário – e solidário – da dignidade. Mas que teria dito ainda Albert Camus – perguntamo-nos – se o destino entre nós o retivesse?”) É certo que o elogio fúnebre comporta o reconhecimento da admiração privilegiada: “Porque a sua obra e a sua maneira de encarar o mundo marcaram fortemente toda a minha juventude e até muito do que tenho escrito e daquilo que sou me doem os equívocos em torno de Albert Camus.” Mas também se lê na mesma peça estas palavras a prevenirem – talvez – uma mudança: “É que não há talvez uma verdade, mas verdades contrárias e necessárias, de cujos choques precisamente resultam as grandes correcções dos movimentos dos homens.”   

Voltemos ao “porém”. É um tanto ou quanto desajustado relacionar as personagens inconstantes de Escombros com uma sociedade em decadência tomando por referente simbólico uma Berlim ainda esventrada mas que recuperará a médio prazo, sendo que só Wolfgang é alemão, a escarafunchar a subsistência como guia turístico no seu país depois de o ter servido, não se nota que a contra gosto, nas fileiras nazis. Trata-se, de facto, de quatro destinos individuais que se cruzam sem que devam considerar-se sintomas de uma qualquer iminente vaga de fundo social cuja vocação nuclear fosse banir tal gente do mapa de uma só vassourada. O português Jacinto e as peruanas do corpo diplomático, residentes flutuantes, mantêm uma relação triangular ambígua, e é o espectáculo da tragédia do jovem, auto recriminatório, farrapo humano aos seus próprios olhos, de ânimo tão em baixo, o pobre, a querer alinhar-se por uma ética em que encaixe a sua imperiosa necessidade de passar a ser outra pessoa, o que alenta este conto moral, ou como lhe chamaria Óscar Lopes, exemplar, caso fosse de dar importância às fantasmagorias da má consciência, do remorso e da culpa. Não sem que o protagonista tirasse previamente a barriga de misérias ao experimentar a grande vida à pala da disponibilidade sexual da “diplomata”. Existencialista? Niilista? Desistente? Náusea e pessimismo? Flagelação masoquista? Os ingredientes do mal-estar existencial / individual estão lá intactos. Fica, pois, no ar a pergunta: em que medida este Jacinto não é outro senão o Urbano Tavares Rodrigues daquela altura? Deve ser doloroso tirar-se partido daquilo que se quer destruir (na circunstância sem saber bem como), já o dizia, por outras palavras, o endiabrado Voltaire. Não será esse o crime de lesa consciência que arrasta na lama o protagonista que em tão pouca consideração se tem? Há ali muito de Camus, sem dúvida, que em certas horas depressivas também não se tinha por grande espingarda.

 

 
Urbano Tavares Rodrigues com Albert Camus, no gabinete das edições Gallimard, em Paris, 24 de dezembro de 1953
 
 
 

“Demasiado adjectiva” 

O prefácio de José Carlos Vasconcelos é contribuição valiosa para o enquadramento da obra ficcional de Urbano Tavares Rodrigues, quando o escritor leva já dezoito anos de vida literária activa, ou talvez bem mais de vinte se se considerar que Horas Perdidas (10), como o próprio Urbano escreveu, é de fabrico muito anterior a A Porta dos Limites.(11) E se não entrarmos em linha de conta com Santiago de Compostela, Quadros e Sugestões da Galiza (12), o livro de estreia – a estreia das estreias. Contudo, o amigo JCV põe o dedo em várias feridas, a par de justos elogios, no exame a que procede à obra do amigo Urbano, com a vantagem para o leitor de ficar perante uma visão abrangente do percurso do homem de letras, da obra e do cidadão, que muito o ajudará a situar uma e outros. Em vários pontos convergimos, eu e JCV, com algumas nuances, como quando escreve: UTR é um daqueles escritores de quem interessarão apenas, para o futuro, as obras escolhidas, e nunca as obras completas. Concordo, como atrás referi, que a separação do trigo do joio proporcionará uma obra estético literária de enorme valor mas discordo do tom peremptório da profecia agora que as obras completas andam por aí – recusando a ideia de que tudo o que daquela reste não passe de lixo irreciclável. Mesmo o joio tem que se lhe diga. Implicando-se Urbano como se implica nas suas histórias e nas suas personagens, nada do que escreveu é desperdício: é, antes, achega importante para a caracterização do ar do tempo e digno de estudo a vários títulos (histórico, sociológico, psicológico) para além do que o cânone literário entenda capturar da obra imensa para depositar no seu relicário de obras chave. O homem Urbano Tavares Rodrigues, na contradição vital é, em si mesmo, uma amostra surpreendentemente nítida da viagem de menino do regime, de origem latifundiária e passando com demora pela angústia existencial (em 1960 era ainda Freud quem lhe fornecia a epígrafe para Nus e Suplicantes), até à “conversão” comunista “por paixão” que conheceu o clímax vermelho nos idos de setenta e cinco no regaço do PCP (em Exílio Perturbado (13) Adrien era alguém “de vistas curtas e obstinado como todos os comunistas” e no mesmo romance o esmagamento, pela tropa soviética, da insurreição húngara de 1956 era condenado sem rebuço). Um exemplar com muitas cópias neste país mas que como poucos se soube dramatizar, capitalizando medos e angústias na tragédia pessoal que deu fôlego a uma literatura de ambição universal ao fazer nascer do anti-herói falhado o herói positivo, vencedor, clone de um certo homem português capaz de se converter no outro após suplantado tormentoso sismo mental. 

Aliás, estou parcialmente de acordo com JCV ao classificar A Porta dos Limites “das suas obras mais débeis” mas “das que podem ter maior importância para o estudo da trajectória do escritor” (a minha não unanimidade prende-se com a adjectivação débeis).

Esta leitura de amigo vai encontrando pelo caminho alguns escolhos por entre áleas de encómios.

Vejamos os escolhos:

“… uma prosa tendo a servi-la um grande arsenal vocabular, que ali e além é pletórica, e por isso de mau gosto e que frequentemente se tem perdido (embora cada vez menos se venha perdendo) porque demasiado adjectiva.”

“… Uma construção romanesca e uma efabulação em que amiúde é bem visível a falta de amadurecimento das (apressadas?) obras – o que resulta, como é natural, do ritmo de produção e publicação a que atrás me referi.”

“Disto resulta que eu – e o mesmo deve acontecer a muitos dos seus leitores – sempre saia dos livros de Urbano com a impressão de que ele é melhor escritor do que aquilo que escreve…”

“De resto esta novela [Nus e Suplicantes] – pungente e rigorosa em tantas páginas, excessiva e melodramática em algumas outras – dá-nos do melhor e do pior (ou do menos bom se se preferir) de Urbano…”

“…(um amor em que o sexo tem lugar de larga preponderância e por vezes atinge mesmo a obsecação ‘sic’)…”

Dama de trunfo: “… um exercício de especulação, não muito convincente, a partir do clássico triângulo amoroso.”

JCV nota com justeza: UTR “cada vez mais tende para uma aproximação do real e uma intervenção na circunstância portuguesa”. Já então Urbano teria aderido ao partido comunista (1969) e sofrido no cárcere os rigores policiais tanto do salazarismo como da “primavera” marcelista. Em Nus e Suplicantes, todavia, o incompleto livre pensador ainda esbarra na ilusão de Deus. Em plena cisão crística, segue a reboque da amante “católica progressista” que em risco de vida lhe encomenda uma surtida a uma igreja do Rio de Janeiro (à primeira que encontrasse) com a missão de implorar o milagre que a salve. E o nosso apóstata de trazer por casa lá partiu para uma patética deambulação até encontrar o templo onde, em vão, rezou a Deus e a todos os santos e santas da sua corte de que se lembrou das águas passadas, pela cura da bem amada. Deus, nessa altura, fingiu estar a passar pelas brasas, negando-se a atender as (pouco dignas de confiança) preces do inusitado intercessor. 

O misticismo cristão, mesmo nos primeiros livros de UTR, raramente é temática axial, talvez porque a fractura vem muito detrás, dos treze anos, disse ele (“Hesitei radicalmente entre Deus e o Socialismo”) (14). Do que quer que seja hesitação radical e o Socialismo entrevisto na paisagem do Alentejo, do lado da burguesia suserana e terratenente, em tão recuada idade (“passei toda a infância e a adolescência na província, Lisboa era-me ainda e ser-me-á uma cidade estranha”, Dissolução) (15) pouco há a dizer, fica ao arbítrio de cada um avaliar a extensão do conflito interior e as consequências externas mais visíveis dos “riscos angustiadamente assumidos.” Curiosamente: da radical hesitação na puberdade terá resultado tombar para o lado de Deus? Quase treze anos depois dos 13 – aos 26 incompletos! – Urbano saúda “A Espanha de uma nova cruzada, em prol de Cristo, contra os modernos inimigos da fé” no supracitado Santiago de Compostela. Passo a palavra ao escritor galego Carlos Quiroga, (16) que leu atentamente o livro e o comentou assim, no respeitante aos dois primeiros capítulos: “retratam sem valorização aparente a instrumentação político-religiosa de Santiago e do Apóstolo por parte do franquismo.” Inocentemente ou não Urbano faz vénia à tralha aderecista do novo ditador: “os falangistas de elegantíssimos uniformes, os estudantes com a sua ardência bélico-religiosa, o sentido patriótico desta manifestação de fé”, a indissolubilidade de dois valores: “Cristo e Espanha”. O acrítico repórter que valoriza a encenação do “jacobeu franquista”, empolgado com o que viu e sentiu, abre feridas que só o tempo há-de curar. E vai curá-las com sangue, suor e lágrimas.

Em 49 começaria por marcar presença na Voz do Operário, a “aclamar” o general Norton de Matos “numa maré alta de esperança do povo português.” (17). E o Socialismo com que se confrontara seria, segundo ele, uma espécie de “socialismo cristão.” (18) Isto não invalida que Urbano possa ter sido uma “esperança” da “Situação”. Seu pai era, por essa altura, malgrado o passado republicano, o redactor principal do Diário de Notícias, e Santiago de Compostela traz a chancela editorial da Empresa Nacional de Publicidade, ambos oficiosos porta vozes do regime; o prémio Afonso de Bragança, que UTR recebeu, fora instituído pelo Secretariado da Propaganda. O jovem e garboso cavaleiro que agora posa, equipado a rigor, na sua montada, em fotografia de época, pronto para o galope, a qualquer momento, nas planícies do cyberespaço, dá poucos ou nenhuns indícios de vir a tornar-se um dia “aliado da classe operária”. (19)

Não é hipótese a descartar que Urbano Tavares só se tenha despegado da ganga situacionista quando cumpriu, longe da pátria, o “mandarinato” francês, encandeado, primeiro, pelos surrealistas, depois rendido ao existencialismo, mas apercebendo-se então, vendo e lendo a pátria do exterior, quanto havia a fazer para se alcançar no rectângulo ibérico uma felicidade que não fosse o seu simulacro.                                                                                                                                                                                                            Acho provável que nessa altura Urbano tenha ganho a “perspectiva” que o levará mudar de rumo ideológico do que acreditar em histórias como a de que era marxista desde pequenino.(20)

Louve-se nas páginas inaugurais de Nus e Suplicantes a esplêndida cena erótica, certamente das mais belas da literatura portuguesa, e o divertidíssimo O Falso Pesquisador, conto em que o escritor alardeia um reportório satírico-sarcástico que em outras peças haveria de consolidar como dos seus mais apreciados atributos.

 

Mano a mano 

Quando José Carlos de Vasconcelos no prefácio-estudo atrás mencionado realça a narrativa que eu tenho por autobiográfica Horas Perdidas como ponto de partida fundamental para se compreender a tortuosa caminhada iniciática de Urbano na arte e na vida, alude a uma “muito esclarecedora nota introdutória” naquele volume, subscrita pelo escritor, em que este afirma: “… a verdade que aqui se procura não é rigorosamente a do facto histórico, mas uma verdade subjectiva e uma verdade de geração – a inquietação e a dúvida – de certos jovens dos anos 40.” No prefácio à segunda edição, Miguel Urbano Rodrigues (21), explica e acrescenta essa nota.

O meu exercício de leitura crítica não chegou tão longe quanto pretendia, uma vez que o próprio UTR me facilitou a vida. O esvaziamento catártico de uma “verdade” puramente individual ao recuperar um texto de juventude em que a trama se entretece de fragmentos desgarrados de romantismo social que nem como estereótipos convencem e de desgaste egoísta de um ser humano em conflito com o mundo que o não compreende, é de uma transparência total. Nisso, o irmão Miguel tem razão quando escreve: “A saída para essa contradição não resolvida [ir ao encontro das lágrimas, dos rogos, dos clamores da humanidade] – e imperfeitamente consciencializada – era quase sempre o refúgio numa meditação existencial que só podia abrir as portas de uma falsa cultura humanística que não conduzia à fonte da alienação.” E um pouco mais à frente: “A indignação, a revolta sentimental desses jovens eram tão estéreis como o fora a cólera dos Tchernichevsky contra os representantes da autocracia russa.” Miguel chama a si a nobre missão de “proteger” o irmão contextualizando a sua literatura num tempo de trevas, libertando-o da responsabilidade de não ter assumido então um papel, na sociedade das desigualdades, consentâneo com o desejo de intervenção, por falta de perspectiva, de horizonte, de estímulos à vivência partilhada, típicos de uma sociedade totalitária no seio da qual crescera a braços com as interrogações ontológicas, sem resposta, que não o largaram nesse crucial período.

Todavia, deixo claro que a narrativa depoimento prescinde bem da falta de perspectiva política, pois desta se trata, ao expor o homem sem qualidades, passe o roubo da expressão (Musil), que assim se auto retrata, nos verdes anos, na sua mais crua e íntima “verdade”. Urbano descarta a possibilidade de se tratar de um texto biográfico. Discordo. Repare-se no que ele escreve: “Fui encontrar neste livro uma imagem de mim (porque o autor sempre infalivelmente se projecta nas suas invenções) (22), que já não coincidia [afinal tinha coincidido um dia…] com a de agora, esse ‘eu’ dos vinte anos”; e aludindo à “relutância em mexer nos fantasmas daquele tempo” como se o fantasma não fosse conatural à reminiscência e ao tráfico íntimo dos sentimentos do passado. O pior é que este fingimento ressoa nos tempos modernos de uma maneira perfeitamente desconcertante. E se lessem o livro, para variar? Urbano sugere no seu texto uma data de execução, Maio de 1945, talvez para lhe justificar hipotéticas ingenuidades conceptuais e formais, mas o que leio na segunda edição “revista” (só se foi para limpar vírgulas ou reposicionar pontos finais e parágrafos), é um texto guiado pela “mão” do escritor experimentado e não pela do principiante que teria sido capaz de reunir, quanto muito, apontamentos de sensações mais tarde aproveitáveis como matéria para um livro. E se Urbano queria manter a escrita da idade da “frescura” por que raio de impulso deu à luz um texto já com a marca de água do escritor feito? (Veja-se, por exemplo, a prosa canhestra de Tempo de Cinzas). Em todo o caso, as coisas são o que são, ficaram como o autor quis que ficassem para que também os seus leitores as aproveitassem como quisessem, e, por mim, coloco esta obra entre os escritos de juventude que mais vivamente me impressionaram, pelo seu poder de choque, pela lucidez implacável posta no julgamento dos outros, pelo fel da culpa própria escorrendo de dolorosa autocrítica, pela incompetência amorosa de quem não domina ainda a gramática dos afectos, pelo surdo rumor da querela familiar (os pais), enfim, por todas as mazelas que trazemos escondidas e nos moldam os aspectos, os ressentimentos, as relações de parentesco, e nos tingem a memória de pecadilhos que um pouco mais de azul teria evitado nos anos de formação da personalidade, aqueles em que as “sequelas do passado deixam marcas indeléveis”(MUR). Urbano disse algures que não se importaria de banir Horas Perdidas da sua bibliografia. Ainda aqui um paralelismo com Camus, autor que aos vinte e dois anos escreveu O Avesso e o Direito, livro que teve uma edição minimalista na Argélia, o qual só foi reeditado vinte anos depois contra a sua vontade, a instâncias de um amigo, porque “aos vinte e dois anos, à excepção do génio, mal se sabe escrever.”(23)

Mas se pensarmos que desta inquietação, desta raiva, desta diabólica corrosão se cria o alicerce da mudança imperiosa, e quando se muda para voos de grande rasgo como aconteceu com Urbano, então talvez se valorize melhor a experiência por que passou quem se sentiu mal amado na melhor idade da vida – escassos amigos, escassos amores, escassa auto estima, a doença – e que a literatura, a grande literatura, resgatou de um provável destino sombrio para uma viagem gloriosa que cobriu todas as intensidades da existência de modo avassalador e quase sempre compensador.

 

Óscar, o mesmo em várias edições 

Óscar Lopes foi um prefaciador afortunado de As Aves da Madrugada (24). Ao elaborado estudo que dedicou à segunda edição (1966) do livro li-o pela primeira vez quando ia na terceira (1970) e vim a recuperá-lo na quinta (1990), antolhando-se-me lógica a inclusão do ensaio nas reedições intermédias a que não pude aceder. Trata-se de um texto indiscutivelmente caro ao ficcionista e não menos indiscutivelmente esmerado na abordagem à obra, não escamoteando o crítico ilustre aspectos que lhe mereceram reparo, mas exercendo essa prerrogativa com a mesma compostura com que releva as páginas dignas da sua atenção, sempre com judiciosas justificações do agrado e do desagrado. Foi talvez reconhecendo a seriedade e a densidade da análise de Óscar Lopes que Urbano Tavares Rodrigues o quis associado ao sucesso de público atestado pelas reedições do livro.

É significativo que Óscar Lopes haja escolhido para primeiro conto no seu exórdio aquele que o autor decidiu colocar em último lugar na hierarquia do volume. Mesmo que assim seja merece dois tipos de apreciação indissociáveis das parcelas de carácter que vou capturando dos juízos dos outros sobre UTR: em primeiro lugar a descoberta da coragem individual adquirida por um preso político, Ramón, depois de submetido a tortura numa hipotética enxovia centro-americana; e em segundo o poderoso enunciado das condições de reclusão de três homens numa apertada cela de diminutas dimensões privada de luz, húmida, inabitável, onde a doença que se propaga graças a esse ar irrespirável, putrefacto, faz a primeira vítima. Trata-se, segundo Lopes, de um “conto exemplar típico” em que “todos os recursos da arte de recontar convergem aqui numa lição ética que é a de O Mito de Sísifo (25), de Camus: exige-se que o leitor, tanto quanto possível, imagine como suas as medonhas circunstâncias do herói, e que sobretudo aceite a verosimilhança, ou, mais do que isso, a necessidade íntima de um protesto sem esperança.”

Isto é: o ensaísta preferiu iniciar a sua apresentação pelo conto de que menos gostou, justamente pela exemplaridade didáctica nele vislumbrada da superação do medo e da ascensão à coragem mediante uma prova de resistência de que o Eu do protagonista é o único espectador, o único beneficiário do gesto rebelde, o único juiz, o único cúmplice. Eu acrescentaria alguma coisa que pelo menos atenuasse a presunção de gratuitidade do heroísmo individual: sendo o médico Ramón um céptico “distante” das questões da política o facto de estar na cadeia nas mesmas condições dos dois companheiros introduz uma noção de anterioridade/intencionalidade não inocente. A anterioridade supõe já atitude fruto de um rebate de consciência ainda não objectualizado em engajamento mas suficientemente entranhado para o conduzir à masmorra. Apenas o motivara a “liberdade”, a falta dela, explica, por ele, o narrador. Logo, o acto do herói romântico ao cuspir no polícia que o tenta aliciar, é parte já de um subjectivo alarme cujo ponto de partida não foi ali, ainda que a intencionalidade traísse uma difusa predisposição para o combate.

A chamada de atenção de Óscar Lopes para o chapéu de chuva camusiano aponta para a influência primordial daquilo a que Urbano passou a chamar a sua “fase existencialista”, mais próxima de O Homem Revoltado (26) do que do homem revolucionário, como já vimos. A colocação simpática dos reparos vem de mãos dadas com o escrúpulo do historiador de literatura. Lopes, não o esqueçamos, é co-autor da famosa História da Literatura Portuguesa, de parceria com António José Saraiva, que constituiu durante decénios o melhor instrumento de consulta sobre quem é quem e porquê na república das lusas Letras. A honestidade intelectual a que uma tal cátedra obriga leva OL a uma polidez relacional em que o ideário próprio se apaga habilmente no tom neutro da equidistância táctica, “escolar”, ainda que os indícios da racionalidade marxista aqui e além aflorem como quem não quer a coisa. Ora custe o que custar ao realismo socialista de matriz jdanoviana, não se pode enxotar borda fora o “existencialismo” de UTR como se vinte ou mais anos “daquilo”, sempre em produção acelerada, nada quisessem dizer. Dando de barato que Camus terá sido a mais sólida referência de Urbano nessa altura e talvez com o “defeito” de as suas personagens serem mais “vulneráveis” e “contraditórias”, logo de índole mais fraca, do que as do autor de O Estrangeiro (27), é no “terreno” que essa influência se torna mais directamente apreensível.   

O mesmo raciocínio recai sobre um outro conto da colectânea, Margem Esquerda: “A lição negativa do desfecho, a moralidade a contrario sensu – isso é que fica a oprimir-nos como estigma de um pessimismo histórico sem perspectivas… Voltamos assim à ética camusiana do Mito de Sísifo que tínhamos encontrado no primeiro conto atrás comentado.” Também o conto As Aves da Madrugada não recolhe de OL completa aprovação: “O escopo de tal conotação não cobre todavia os recessos todos da história […] paira uma certa inconsistência entre a finura fenomenológica das melhores páginas […] e a conotação fraseológica, mais ou menos vulgar, da protagonista.” Surpreendemos o ensaísta a exprimir-se desta forma: sente-se “por vezes a veia estilística inestancável de Urbano Tavares Rodrigues inchar em certa amaneirada redundância por culpa dos coágulos da exemplaridade prevista.”

Naturalmente que a minha recolha, desconexada de frases ou segmentos de frases que longe de serem desprimorosas não excluem os contextos em que se entrechocam sensibilidades, diferenças culturais e propósitos políticos, impõe a leitura integral do estudo de Óscar Lopes no qual também se lê que UTR dispõe de “todo um órgão de registos lexicais, fraseológicos e trópicos de tal modo que poderiam caracterizar-se, só neste livro, nítidos diferenciais de estilo para cada história, se vagar houvesse para tanto.”

Mas não é tudo sub-repticiamente passível de controvérsia neste laborioso exercício, embora o pareça. Há um conto que fascina o leitor crítico como fascina o leitor comum: A Prova dos Nove. Virtualmente autobiográfico, como quer OL? Liminarmente autobiográfico digo eu, e comigo, quase toda a gente interior ao assunto. Encontramos aqui o Urbano genuíno, sem máscaras, que já conhecíamos de Horas Perdidas, o Urbano protagonista no seu próprio “conto” completamente à solta a falar de si e dos seus, do habitat da burguesia do campo, do monte alentejano, da herdade, dos cavalos, do reconhecimento da superioridade intelectual do irmão, do lugar de origem do grande remorso, que o acompanhará toda a vida, do menino rico envergonhado de o ser resvés à pobreza dos que o rodeiam e servem. Que o conto vale o livro, pela autenticidade, não o esconde OL, sobretudo porque dele saem, com límpida nitidez, as linhas de fractura que sedimentarão na personalidade de Urbano Tavares Rodrigues, na vida como na literatura, a “má consciência” que presidirá à evolução do escritor e do homem, perseguido pela sombra do irmão exilado no Brasil, até aos limites da dor, da dádiva e da paixão com que lavará a “culpa” do pecado original: o não ter nascido pobre quem se arvora em defensor dos pobres.            

             

Autor “corrige” prefaciador 

O ensaio de Álvaro Manuel Machado que prefacia a 2ª edição de Terra Ocupada (28) viria a desencadear uma das mais pitorescas trocas de palavras de que há memória nos anais da literatura portuguesa: num mesmo livro o autor puxa as orelhas ao seu prefaciador. Aparentemente a editora pediu um prefácio a AAM sem conhecimento de UTR; este terá sido surpreendido por algumas das considerações avançadas no texto preambular. Mais uma vez o espírito do prefácio como “apresentação” ou “introdução” foi ultrapassado pelo “estudo”, sendo que, polémica à parte, há razão dos dois lados para que o leitor fique grato pelo insólito qui pro quo, pois se num caso, o do autor, a correcção de perspectiva o ajuda a impor a figura do homem de acção que já não se quer confundido com as suas lastimáveis personagens de outros tempos, o prefaciador descuida esse particular, preferindo concentrar-se num juízo de valor que vai buscar ao historial remoto os traumas responsáveis pelo tipo de pessoas de que são projecções os intérpretes da ficção sob rastreio.

Também por aqui se adivinha a flecha “existencialista” na difícil tarefa, do escritor, de adaptar os seus modelos ao homem que deles se desprendeu, pelo menos na vida real e pela via exigente da coragem física. A nota correctora de Urbano Tavares Rodrigues põe duas coisas em circulação que não têm a ver com a prosa visada: a de que Álvaro Manuel Machado dele recebeu apoio quando se refugiou em Paris “onde há muitos anos chegou com fome de muitos dias e com a camisa que levava no corpo”e que o prefaciador tinha “desistido do futuro”. São lamirés deixados um pouco ao correr da pena com endereços terceiros e todavia ressaltados pelo tom desgostoso da réplica. Mas o que Urbano mais vivamente contesta, não sendo embora necessariamente o que mais lhe dói, é a depreciação do neo-realismo num texto que lhe é dedicado em território próprio, o seu livro, reiterando admiração por escritores como Fernando Namora, Carlos de Oliveira, etc., isto porque, à margem desse movimento, dele gradualmente se foi sentindo próximo tanto pelo engajamento partidário como pelas relações de amizade e solidariedade mantidas com vários daqueles confrades. De Álvaro Manuel Machado diz ter ele “repudiado” o neo-realismo.

É este o ponto exacto que a susceptibilidade de Urbano deixa à vista: quando AMM escreve ter redundado em fracasso a iniciativa neo-realista de acabar com a transcendência da arte, ou antes da arte defendida pela geração da Presença, o prefaciador quis deixar clara a distância em relação ao movimento por si considerado “pragmático”, amabilidade sua para não lhe chamar limitado ou redutor. Ao recusar-se a cortejar o neo-realismo como uma vaca sagrada, e não o censuro por isso, omite, porém, a evolução estética de vários escritores dessa área; não desperdiçou, no entanto, a oportunidade de fazer chegar a mensagem, às cavalitas do livro de Urbano, aos extractos sociais pequeno burgueses e burgueses tout court que constituíam então o leitorado maioritário do escritor. A coisa talvez não se lhe apresentasse translúcida lá no exílio parisiense, mas na verdade Alves Redol evoluiu enormemente em termos, digamos, artísticos, ao ponto de Barranco de Cegos (29) estar cotado como um dos romances portugueses de referência do século XX, e de ter ousado experimentar em O Muro Branco algumas das técnicas “extravagantes” do novo romance. Sem esquecer Não há morte nem princípio (30), romance também receptor de implantes heréticos de idêntica natureza, da autoria de um dos mais exigentes teóricos neo-realistas da primeira fornada (aquela que pretendia acabar com a transcendência da arte), Mário Dionísio. Para não falar do extraordinário apuro formal da poesia de Carlos de Oliveira, em detrimento do seu conteúdo de “esquerda” e da deslizante demarcação de Fernando Namora do “verismo superficial” por si atribuído à primeira fase do neo-realismo e que José Palla e Carmo, clarificando, arredonda depreciativamente para “naturalismo”. (31)

Fora os dois pontos de fractura que o outro Urbano, o do depois, já homem positivo pela acção, achou por dever questionar, o seu estudioso leitor mostra-se empenhado em executar um plano de trabalho em muitos aspectos revelador do “efeito Albert Camus” no escritor português, fazendo apelo à obra O Exílio e o Reino (contos em que aquele autor, menos céptico do que em realizações anteriores, opõe a noção de exílio, ligada a uma vida infeliz, plena de angústias e de falsidades, à de reino, a existência solar, afirmativa, empreendedora, resultante de condições históricas favoráveis a uma expansão harmoniosa das sociedades.) Parece-me correcto e cirúrgico, ainda que não primando pela elegância, o perfil da personalidade analisada através da própria obra: “Refiro-me à oposição entre, por um lado, uma consciência de desenraizamento por motivos históricos e sociais bem definidos e a necessidade de acção imediata que acompanha essa consciência, e por outro lado um narcisismo essencial que se manifesta na maior parte das vezes por um erotismo convulsivo, sempre intimamente ligado à morte, erotismo através do qual as ideias, ou melhor, a percepção do que muda ou pode mudar se dissolve, transformando-se num sentimento de indefinida nostalgia e de culpa.”

Há no enunciado das funções de representação certos jogos de cintura que põem em causa a idoneidade de algumas das personagens de UTR, a maioria das quais se fica pela “imitação” ainda que outras – a minoria – atinja um grau de “compreensão humana”, queira isto dizer o que quer que seja posto assim, que as absolve dos modos de ser imputados às demais. Habilmente, o ensaísta funde na crítica severa convocada para ilustrar o seu pensamento palavras elogiosas ao chamar à liça “um dos melhores e mais significativos livros de novelas de Urbano Tavares Rodrigues”, Imitação da Felicidade.(32) Não obstante, Machado vê/lê a enfarruscar a genuinidade do conjunto de contos e novelas “um corolário de imitações” tão forte quanto esclarecedor: “imitações do amor, da aventura, da acção política, da felicidade e mesmo do sofrimento.” A aparente contradição de se dizer bem de um livro que contém, da flor da pele ao interior mais escuso, o elemento responsável pela debilidade estrutural constrangedora de que é acusado, não é isenta de malícia se examinado o lastro deixado depois de si – a sensação de quem fica a meio de uma acção cujo objectivo implicaria chegar ao termo dela. Imitar é ficar aquém da meta almejada. Numa perspectiva epigonal o conceito poderia estender-se ao modelo influente na produção literária de Urbano, Camus, mas a táctica de Machado contorna a comparação frontal, solicitando a Sá Carneiro o projéctil com que completa o tiro: “Tudo nestas personagens e na história das suas vidas é o “estar entre” de que falava Mário de Sá-Carneiro, o incaracterístico, a hesitação infinitamente prolongada ou pura e simplesmente a desistência.” Curiosamente também Camus esteve “entre” na obra de que “transparece a “ideia do equilíbrio” que incessantemente procurou: entre o que sou e o que digo.(33)         

Álvaro Manuel Machado encerra o seu estudo com uma tentativa de conciliação entre o exílio e o reino, impondo a figura do autor de A Peste, tal como Óscar Lopes apoiado no Mito de Sísifo, como referência tutelar do surreal / existencial na obra coeva de Urbano Tavares Rodrigues, para quem a revolta individual foi etapa necessária na evolução até ao homem social mitificado pelo programa marxista ainda que a componente de “paixão” dessa evolução, por ele reivindicada, introduza uma dimensão romântica (bloqueio narcisista mal disfarçado?) decerto pouco simpática aos olhos e às mentes dos ortodoxos do materialismo dialéctico. Não se trata bem de estar “entre” porque Urbano Tavares Rodrigues deu exuberantemente largas ao seu estatuto de convertido ao comunismo, no pico da revolução de 75, com o mesmo grau de exigência fundamentalista dos puros do sistema, enquanto “aliado” da classe operária. Isto não o poderia Álvaro Manuel Machado então saber. Mas talvez o tivesse premonido ao “desistir” tão ostensivamente do “futuro”, livrando-se de uma vez por todas de companheirismos espúrios e reivindicando essa diferença onde mais custoso se torna ao destinatário aceitá-la. Indiferença foi o que não obteve do escritor analisado.

É extremamente curioso que no II volume das Obras Completas cuja edição em dez tomos está em curso, Manuel Gusmão, no seu prefácio, venha inadvertidamente “vincular” a narrativa de UTR a um neo-realismo do qual ele não esteve esteticamente próximo (salvo no breve período revolucionário que se seguiu ao pronunciamento militar de 25 de Abril de 1974). E como a adesão do escritor ao Partido Comunista foi um caso de “paixão”, também é ideologicamente discutível que a racionalidade de que o neo-realismo se reclama tenha sido causa inapelável do seu alistamento. Ouçamos o amigo Albert Camus a este respeito: “[…] sonhar com a moral quando se é um homem de paixão, é votar-se à injustiça  exactamente quando se fala de justiça.” (34) Ora o escritor português é “eleito” por Gusmão à dignidade de “neo-realista canónico” no que penso ser gralha ou efeito de linguagem mal colocado na expressão precedida de um intrigante “já não era” como se a obra do autor por si prefaciado tivesse tido alguma coisa a ver com os Esteiros, a Seara de Vento, o Gaibéus, o Vagão J, A Casa da Malta ou A Casa na Duna – essas sim as obras canónicas do movimento.

No mais, fiquei com a impressão de que a “ofensa” de Álvaro Manuel Machado resgatada pelo “ofendido” no texto de “resposta” de que venho falando, não é propriamente o ataque ao neo-realismo, que não precisava de defensores a doc, mas a “dor” causada pelo tom e o estilo do estudo proveniente de alguém que fora ajudado quando estava em maus lençóis e a que corresponde o sentimento que uma palavra bastante prosaica caracteriza: ingratidão. À primeira vista trata-se de um gesto solidário dirigido a respeitáveis confrades e amigos conotados com o movimento enquanto escola literária, indirectamente vítimas de ataque injustificado – um álibi para desviar para outro lado o cerne da “ofensa”: o facto de o prefácio, vindo de quem vem, não ser declaradamente encomiástico. Senão, a que propósito viria o lembrete do apoio ao recém-chegado a Paris? Urbano, neo-realista? Qual! Se o próprio UTR se encarregou de pôr o preto no branco em tomadas de posição públicas: “Não fui um neo-realista.” (35). Quanto ao “canónico” voltarei a ele quando abordar o texto de Manuel Gusmão.

 

Amigos, amigos, Teixeira-Gomes à parte  

Um dia, talvez a propósito de Régio, mas citando Montaigne, Eugénio Lisboa escreveu que alguns ensaístas gostam de ser “donos” dos “seus” escritores e que até saúdam outros que os corroborem fazendo bloco na defesa do mais que tudo. Mas que não exorbitem na idolatria. Dono é dono e os recém-chegados ao círculo da devoção devem manter-se a prudente distância do objecto do desvelo não vá a condescendência abrir espaço a intrusos que predispostos para o assalto à coutada para reclamarem primazias a que não tenham direito.

O prefácio de David Mourão-Ferreira à 2ª edição de Vida Perigosa (37) rende homenagem a “uma coragem intelectual tão inabalável como a sua própria coragem cívica” que fazem de UTR “talvez o mais alto símbolo da indómita resistência do escritor português e da sua por vezes incrível sobrevivência como escritor.” Reclamando-se de um primeiro empurrão ao ainda relativamente imaturo autor da edição de 1955 através de um texto de “apresentação” nas orelhas do livro, David não afrouxa no tom venerador ao sublinhar nos contos ainda de “atmosfera estrangeira” a “variedade de perspectivas”, a “fecunda mobilidade de processos, com tão radical autenticidade na constante renovação de motivos e de técnicas.” A excepção intitula-se À Luz do Verão, mais um texto de temática alentejana no qual a visão do menino do latifúndio (Chico Varrido: “Não era nosso criado, mas vinha pelas ceifas e ficava quase sempre com um ajuste para o resto do Verão”) (38) ombreia com a do calcorreador que por “formação e vocação” pisara “as principais estradas da România cultural.” E onde está o nó do problema de consciência com que Urbano se debaterá ao longo da vida. Mas voltarei ao caso alentejano, detendo-me por agora num singelo exercício comparativista resultante do facto de tanto David Mourão Ferreira como Urbano Tavares Rodrigues serem émulos de Manuel Teixeira-Gomes, o portimonense que a ambos inquietara com a sua Maria Adelaide e com o seu Agosto Azul. As palavras são como as cerejas e o caloroso depoimento de David Mourão-Ferreira em 1970 conduziu-me a um outro texto em que o autor de Gaivotas em Terra, com quem privei durante dois anos na direcção da Associação Portuguesa de Escritores e tenho por pessoa de uma finura de trato acima de toda a suspeita, deixa cair a máscara de uma subterrânea competição ao emendar Urbano Tavares Rodrigues com particular severidade.

Percorramos não exaustivamente o comentário (o texto vem inserido na secção Notas e Comentários mas para Nota é um bocado extenso: três páginas e meia) de David Mourão-Ferreira à tese de doutoramento de UTR (Manuel Teixeira-Gomes: O Discurso do Desejo) (39) na Revista de que o primeiro era à data o director (40) começando por uma das conclusões: “Evidentemente que são pormenores: e todos eles marginais em relação ao objecto central da própria dissertação. Mas cremos ter sido útil indicar o que indicámos, até com vista à melhoria da obra em ulteriores edições”. Só boas intenções, pois, pois. Os pormenores, em todo o caso, são um pouco menos bem intencionados ao longo do texto onde mais prosaicamente os toma o autor por dúvidas. E são cinco as dúvidas que assaltam David antes de as despachar com o rótulo de pormenores lá mais para o fim, contendo cada uma delas as suas reservas.

Primeira dúvida: O exegeta ter-se-á deixado contaminar por uma característica “também comum à maior parte dos livros do próprio Teixeira-Gomes, nos quais as micro-estruturas são igualmente, regra geral, muito mais conseguidas do que as macro-estruturas.” David sugere ter havido uma contaminação por mimetismo, perguntando: “Ou será que certo caprichismo organizativo tão frequente nos volumes do autor do Inventário de Junho acabará por exigir, da parte de quem deles se aproxima uma atitude semelhante?”

Segunda dúvida: “falta de atenção à cronologia de M. Teixeira-Gomes”, tendo em consideração que as obras deste último se dispõem “em dois diferentes e distanciados painéis temporais – o primeiro de 1899 a 1909, o segundo de 1932 a 1939.” Pormenor negligenciado por UTR.

Terceira dúvida: “Não teria havido vantagem em rematar a dissertação, ainda que à guisa de apêndice, pela parte intitulada Notícias do Crepúsculo e constituída por ‘cartas e postais dos últimos anos de Teixeira-Gomes’? Tal secção, que representa mais de um quarto do volume (105 páginas para 300 do texto da própria tese), muito melhor se adequaria, quanto a nós, se viesse a formar um volume à parte…” Desde a sobrevalorização da correspondência trocada com Manuel Mendes ao “esquecimento” de Castelo Branco Chaves há uma contundente admoestação que chega ao verbo deplorar: “Ainda quanto a Castelo Branco Chaves, deploramos igualmente que Urbano Tavares Rodrigues não tenha ao menos discutido, a propósito do mecanismo da memória de Teixeira-Gomes, o fecundo contraste – se bem que porventura controverso – que esse crítico propôs, em 1935, entre a ‘memória involuntária’ de Proust e o tipo de ‘evocação’ de Teixeira-Gomes…”

Quarta dúvida: David manifesta estranheza e ao mesmo tempo esmera-se em exibir um conjunto de autores de referência de que Urbano não se lembrou: Giorgy Lukcács,  Harald Weinrich, Roger Kempf, Helène Cixous, Michael Rifatterre, Leo Sptizer, Chatmann, Koch, Delbonille ou Mukarovsky, “autoridades” mobilizáveis para discussão que obviamente encheriam de luz os desvãos deixados na penumbra pela tese sob escrutínio. Para depois acrescentar que “as referências bibliográficas de Urbano Tavares Rodrigues, particularmente no domínio da narratologia, se mostram em geral não só actualizadíssimas como também saudavelmente diversificadas.” Uma no cravo e outra na ferradura? Ou uma cruel palmatoada?

Não há quinta dúvida mas uma “quinta ordem de dúvidas” suscitada pelo quadro sinóptico a propósito do qual David se interroga se em vez das opções de Urbano não teria sido “mais importante referir o lançamento da revista Seara Nova em 1921 que a existência de um governo António Maria da Silva em 1922; ou o início da publicação da Presença em 1927”, enviesando para lacunas como as mortes de António Patrício e de Columbano, tão próximos “afectivamente e esteticamente” do escritor algarvio. Claro que tudo isto seriam “pormenores” para ajudar futuras edições do trabalho em causa mesmo se, aqui chegado, David não tivesse carregado mais as tintas ao vincar que no subconsciente de MT-G. nenhuma relação havia com o freudismo e que nele “apenas serve de pretexto ou para a rememoração de eventos muito conscientes ou para a rememoração de muito conscientes pontos de vista de uma estética muito consciente.” David permite-se o trocadilho irónico mas não fica por aí. Que é lá isso? Manuel Teixeira-Gomes manifestando “interesse e simpatia” pelo Surrealismo? Ora aqui está um ponto que ao ensaísta de serviço pareceu indispensável “rebater” muito a sério e sem nenhuma espécie de paninhos quentes. Todavia, David não se lembrou de que o facto do “caprichismo organizativo” com que MTG seduzia Urbano, obrigando-o a imitá-lo, podia funcionar ao contrário e ser Urbano a querer arrastar o escritor algarvio para um dos seus canteiros secretos: “a ânsia de dizer tudo, mais forte do que o assombro maravilhado ante a ‘zona luminosa do acaso objectivo’ dos surrealistas, que era uma das minhas tentações de então” (pref. Horas Perdidas). Tentação efémera? Pelo menos em 2005 ainda Urbano inclui em Os Poemas da minha vida (Público) o poema Assim como a mão no instante da morte, do proeminente surrealista francês Robert Desnos. E numa das suas ultimas entrevistas põe fim a todas as dúvidas: “O Manuel Gusmão, numa análise à minha escrita, refere elementos surrealistas muito sensíveis no Alentejo Mágico, em A Porta dos Limites e em muitos textos de A Noite Roxa. Até hoje nunca desapareceram completamente as marcas existencialistas nem as marcas surrealistas.”(41) Sim, a guinada estava lá e para ficar. 

Quanto aos tais paninhos quentes reserva-os David para o final do texto reclamando para a dissertação de Urbano, fértil em “surpreendentes nexos intertextuais”, o pódio de “um invulgar ‘acontecimento’ na vida universitária portuguesa” deixando ficar a palavra acontecimento entre aspas – derradeiro pormenor de controversa solidariedade.

A que ímpios juízos de valor se pode chegar, na verdade, a partir da leitura de um simples prefácio. Citando a expressão “autoridades” a propósito de terceiros, a alguém iludirá quem gasta três páginas e meia da Colóquio a debitar questões supostamente de lana caprina para amachucar o concorrente directo na disputa pela primazia no amor ao autor algarvio e frisar que a “autoridade”, ali, é ele? Sem explicitamente se apresentar como tal? A mim fica-me a ideia de que David Mourão-Ferreira (aos dezassete anos já lera tudo de MT-G) (36) não teria em mente apenas vincar distâncias relativamente a Urbano Tavares Rodrigues (“o maior especialista em Teixeira-Gomes, segundo Fernando J.B.Martinho”) (42) mas porventura enviar uma qualquer mensagem aos membros do júri do doutoramento (no qual a sua presença foi simbólica) com responsabilidade decisória na classificação da tese. Fica para a história que aquele que saiu a ganhar desta saudável emulação foi o portimonense a quem dois notáveis escritores portugueses proporcionaram uma excitante segunda oportunidade de existir.

 

Romance ou novela? A questão do tamanho.  

Na vaga de prefácios dos anos sessenta / princípios de setenta, em cuja crista se pretendeu criar já uma espécie de cronologia do trabalho literário de UTR com a finalidade de estabelecer uma hierarquia de prioridades e de valor, até porque esses textos de apoio estão acoplados a obras em ciclo de reedição, há alguma injustiça ao circunscrever-se ao conto e à novela curta a principal aptidão do escritor, deixando na penumbra o romancista que também nele habita, naturalmente influência da “quantidade” motivada pela pressão editorial e exigência do público leitor. Urbano foi o autor da moda nos anos sessenta e quis, talvez, mostrar-se capaz de se sair airosamente respondendo taco a taco ao desafio do mercado. Mas se o conto e a novela se conformam melhor à máquina trituradora da edição, bem como à necessidade do escritor de ganhar a vida com o que escrevia, impedido, como estava, por razões políticas, de leccionar, não obstante muitas das novelas, quer no tamanho, quer na estrutura, poderem considerar-se pequenos romances, ele não descurou o género maior, ainda que ofuscado este pela preponderância “novelística”. Horas Perdidas, repito, é um pungente romance autobiográfico da adolescência, sem desvãos de sentido, sem intermitências na acção nem arritmias no estilo que maculem o sentimento de tragédia individual que se quis transmitir. O próprio Urbano, numa entrevista a António Augusto Menano em 1970 – ver Deserto com Vozes, do mesmo ano – reconhece estar pouco traduzido “por ter escrito mais livros de novelas do que romances”. Hoje, no cômputo geral, verifica-se que recuperou bem essa “desvantagem” consagrando-se predominantemente à produção de romances nos últimos lustros da sua vida.

No prefácio a Os Insubmissos (43), José Fernandes Fafe liga o conceito de generosidade ao “encanto da fluência de escrita deste romance”. É um ponto de vista em que a tónica da generosidade aparece como fio condutor da explanação do receptor, desde logo a chamar a atenção para a ductilidade da língua aberta ao termo erudito, regional ou vernáculo: “tão espontânea é a dádiva que não há tempo para a redução da escrita compósita a uma unidade de léxico.” O que alguns tomariam por defeito, absorve-o Fafe como efeito de generosidade mais adequado a outras regiões, mormente as subjectivas, do texto ficcional.

Fafe opera num universo onde as vozes individuais – as das personagens – criam tensões ingurgitadas de teorias do bem e do mal numa dialéctica cerrada que apela para os comportamentos “honrosos” mas que alberga outrossim atitudes menos limpas consoante as diferenças que o desenvolvimento narrativo demonstra existirem entre os membros do grupo. Escreve o prefaciador que muitas vezes Urbano “acorda” nas suas personagens. Nada que não tenha sido detectado noutros ensaios interpretativos. Jacinto Prado Coelho di-lo-á no posfácio de Uma Pedrada no Charco:”(44) “Raro conta na primeira pessoa mas quase sempre adere às suas personagens, narra não ‘fora’ delas mas ‘com’ elas anotando do ponto de vista delas o que vão pensando ou sentindo – e esta comunhão como processo é facilitada, naturalmente postulada pelo facto de terem muito do autor, pelo facto de o autor através dela ‘se’ comunicar.”

No que o A. se distancia de outros dos seus trabalhos é no facto de não privilegiar o indivíduo em si mas indivíduos agindo em prol de um objectivo comum – pôr de pé a revista Acção Literária – ainda que reflectindo nos sucessos e no fracasso da iniciativa as peculiaridades de carácter de cada um deles. É da fricção dessas “identidades”, dos operacionais cheios de boas intenções e “ideias” aos calculistas financiadores do projecto, que emerge o romancista ao leme de uma intriga bem desenhada no espaço e no tempo português da sociedade citadina, diversa e controversa, que recria com um impressionante afinco narrativo que desculpa até um que outro lance de estilo menos feliz.

Neste romance o escritor opta, no início, em muito do discurso directo, pela fala longa de pendor moralizante redundante, intelectualizada demais para que possa ser ressonância de conversação normal. Isto é: em vez da fala produzir, ela mesma, o recorte psicológico de quem a diz em sínteses conformes ao discurso corrente, ao alongar-se abre espaço à intervenção dos braços armados do autor, os narradores, o narrador do discurso directo e o narrador do discurso indirecto, propiciando ingerências do segundo na zona de jurisdição do primeiro que acabam por afectar o prazer da leitura. A linguagem fica mais parecida com fragmentos de uma peça de oratória, um discurso, uma lição de moral. Aí, acorda, como diz Fafe com inteira razão, o autor na sua personagem para lhe dar o tom que ela sem essa ajuda não alcançaria. De então para a frente o romancista emenda a mão: os diálogos fluem em  total harmonia com os apelos e as exigências da trama. 

A respeitada voz de José Palla e Carmo (45), que é capaz de sovar forte e feio UTR pelas debilidades que lhe saltam aos olhos nalguns dos contos de As Máscaras Finais, louva em Os Insubmissos (1961) e Exílio Perturbado (1962) as notáveis capacidades do romancista, entrevendo porventura nas duas obras a continuação da afirmação do ficcionista rumo ao apogeu no género maior. “Os Insubmissos” – escreve – “volume com que Urbano Tavares Rodrigues se estreia no género de romance, ficará, creio, a assinalar um passo decisivo na carreira de um dos mais destacados escritores portugueses contemporâneos… A obra de Urbano Tavares Rodrigues tem sido uma constante e generosa dádiva; continua a sê-lo e talvez mais completa, porque é um mais complexo homem que lemos no seu romance – e que o seu romance lê em nós.” E acerca de Exílio Perturbado: “Uma obra que se transmutou ao escrever-se, que cresceu, se concentrou e cujo remate se realiza ao identificar o seu protagonista como um escritor e este romance como o primeiro (sic) que escreveu e escreverá. (46)

 Exílio Perturbado é a experiência individual do protagonista que no estrangeiro, sempre amargurado, viaja pelos amores e pelas paisagens urbanas da doce França até chegar a cenários de guerra do Egipto e acrescentar sabedoria e experiência à sua demanda ôntica ao testemunhar os horrores do conflito armado; Bastardos do Sol (47) é, essencialmente, atmosfera de crise, mal estar respirável e opressor, um clima de drama. O drama que baixa sobre o destino de uma mulher – Irisalva – cujo “crime” é apaixonar-se por um femeeiro compulsivo, que paga o donjuanismo com “selvática mutilação” às mãos do irmão e tutor dela, eventualmente seu furtivo admirador para lá da restrição fraterna. O ciúme incestuoso atravessa a narrativa sem explicitamente se manifestar, disfarçado no combate à vingança sobre aquele “que lhe conspurcara o sangue e a casa” e “não quisera pagar a sua dívida.” Entre a crítica ao machismo e ao donjuanismo parte UTR para uma denúncia comovida da condição feminina no Alentejo profundo. Um curto romance? Sim, mas um livro notável considerado por muitos, e a justo título, o seu melhor livro.     

Se a estes romances, que honram quem os escreveu, juntarmos novelas como Imitação da Felicidade (a novela de abertura estende-se até à página 120) ou Escombros (16 capítulos) por exemplo, haverá a reconhecer que muitas vezes UTR conviveu mais de perto com o romance do que com o conto. Há ainda um outro universo por explorar, longínqua já a jornada existencialista e menos longínqua mas relativamente distante a paixão vermelha, em que UTR decanta todas as experiências em prosa romanesca crepuscular de altíssimo nível, trazendo de volta o “epicurista”, o esteta, o lírico, a bela escrita, o prazer de novos desafios eróticos temperados pela idade mas nada melancólicos, o êxtase da paternidade tardia, numa exuberante manifestação de longevidade criadora, tanto literária como vivencial, de que é exemplo a narrativa A Estação Dourada (48). É esse o “tempo” em que Urbano, já desencantado do amanhã comunista que se volveu passado, memória e nostalgia, depois de reintegrado na Faculdade de Letras e nesta jubilado, agora sem “pressas”, nos deu algumas das suas mais saborosas páginas, porventura das menos lidas.

 

Prisão, tortura, a terra a quem a trabalha 

A vontade / necessidade de ir a todas – ensaio, crónica, crítica de teatro, e na ficção romance, conto, novela – tendo por alicerces uma enorme capacidade de trabalho e uma facilidade de efabulação nem sempre tão frívola como em certos quadrantes se pretende fazer crer, transformaram-no no bombo da festa de muita crítica respeitável (do circunspecto José Palla e Carmo ao sinuoso David Mourão-Ferreira, de quem nunca deixará de ser recordada a sua esplêndida poesia de amor mas que quanto a gerar anti-corpos na praça literária não foi nada peco enquanto por cá andou) a que sempre respondeu criando cada vez mais ficção e muita dela da melhor. Urbano regenerou como poucos o discurso literário português ao colocar nele, com invulgar precisão, a oralidade chã dos extractos sociais mais franqueáveis em seus nichos de comunicação e oralidade. Seja a fala do motorista de táxi que viaja pelo Algarve acompanhando duas francesas pretensiosas, seja a da intriga de bairro alimentada pelo linguajar das “vizinhas”, sempre em dia com a vida alheia, seja a litania, que lhe é tão íntima, da pronúncia alentejana, sejam as conversas de café, seja o calão de bas fond, seja o código comunicacional dos sem abrigo, seja o petulante patoá dos intelectuais à procura de um sentido para a vida, o radar do autor de Imitação da Felicidade é implacável na captação tanto dos registos linguísticos da vida trivial como da erudita, plataforma de que parte para a invenção de tipos inesquecíveis em boa parte psicologicamente moldados pelo espontaneísmo da palavra dita de viva voz. José Fernandes Fafe, diga-se, viu bem a coisa .

Foi muito provavelmente esse perfeito modelo de mimese coloquial, talvez em contraponto às convenções da grande literatura mas mais directo na interlocução com o leitor que se revê em tal posicionamento do narrador, uma das causas da apreensão do livro (Imitação da..) pela polícia. Este último tinha condições para chegar às mãos dos menos letrados e nestes repercutir o mal-estar das opiniões das francesas a nosso respeito como país e como povo, dadas pelo A. com algum verdete masoquista, o que não terá agradado às autoridades. Mas a causa principal da apreensão do livro terá estado na alusão à guerra colonial e aos mortos em combate longe da terra mãe. UTR esticou a corda até violar a zona protegida pelo arame farpado de uma férrea censura de guerra  de onde a retaliação não se ter feito esperar, peça de um processo de perseguição política, com episódios violentos, que decorreria entre 1961 e o 25 de Abril. A experiência desse período é recordada pelo ficcionista no prefácio a Contos da Solidão como no intróito a Dissolução, obra atípica redigida em ditadura e em democracia (um remake de Dos Passos com “colagens” de recortes de jornais, anúncios, depoimentos em fitas gravadas, etc.) que estabelece a transição do ficcionista para uma escrita abertamente de intervenção, utilitária, despojada e directa, então sim mais conforme a um neo-realismo de convertido à praxis comunista que o próprio, no entanto, sempre de sensibilidade em riste, admite ser um livro “errado” como exercício literário. Nessa zona de compromisso directo na revolução saída do 25 de Abril publicará trabalhos como Viamorolência, As pombas são vermelhas, Desta Água beberei, Ensaios de após-Abril, As grades e o Rio, Palavras de combate, etc. mas não creio que a História da Literatura lhes confira importância, face à magnitude da obra anterior e posterior. Aliás, em 1986, fora do colete partidário estrito, Urbano voltará a proporcionar-nos mais um pequeno grande livro: A Vaga de Calor (49). 

Já nos tempos finais, recordará aos críticos mais jovens, apressados em fixarem-lhe o rótulo de neo-realista, não o ter sido, de facto. E quanto à generosidade de “doar” a herdade alentejana aos trabalhadores, “gesto romântico” muito apregoado num desses lancinantes epitáfios de idêntica proveniência, ainda bem que o próprio Urbano pôde revelar, numa entrevista, (44) a engenharia financeira da operação, não fosse pensar-se que andara a distribuir cristãmente a terra a quem a trabalha em esmolas individuais. Foi assim: no tempo das ocupações de terras pelos activistas da Reforma Agrária dizia-se que tudo tinha sido nacionalizado no Alentejo quanto a grandes propriedades exceptuando a da família de Urbano Tavares Rodrigues, à entrada da qual flutuava a bandeira do PCP. A notícia, naturalmente, corria com o seu quê de boato leviano mas tinha por trás alguma coisa de verdadeiro. A propriedade fora vendida ao primo latifundiário (ficando, por conseguinte, na família) contra a garantia de que não seria nacionalizada, o que Urbano e o seu irmão Miguel asseguraram (presumo que o acordo se estenderia às restantes propriedades do agrário). Urbano e Miguel entregaram os seus quinhões do dinheiro ao Sindicato dos Trabalhadores Agrícolas do Distrito de Beja mas o terceiro irmão, Jorge, não abriu mão da sua parte. “Era um homem que vivia fundamentalmente para o dinheiro”, dirá dele o escritor na entrevista. Que em todo o caso o terá ajudado nos anos difíceis, dando-lhe trabalho na Agência de Publicidade que dirigia em Lisboa, digo eu. É realmente uma história bonita mas não tão romântica como aquela que para aí se conta. O dinheiro foi doado aos “representantes” dos trabalhadores para aplicação provavelmente sujeita ao cumprimento de condições que os doadores terão imposto. Em suma, esclarece Urbano, podia ter sido um homem muito rico e não ter passado pelas privações por que passou. Como o mano Jorge. Quem lhe mandou querer ser pobre remediado como muitas das suas personagens? Finalmente a vida a imitar a ficção? Em certa medida antecipou o apelo de Camus em O Primeiro Homem (50), a propósito do conflito argelino: “Dêem toda a terra aos pobres, àqueles que não têm nada e são tão pobres que nunca desejaram sequer ter e possuir, na sua maioria árabes e alguns franceses e que vivem ou sobrevivem aqui por obstinação e resistência.” 

          

 Vozes consensuais 

A recolha a que até aqui procedi de textos prefaciais capazes de facilitarem a leitura da obra de Urbano Tavares Rodrigues, incluindo os do próprio, de forma não dispersa, e dessa leitura partir para a definição do perfil humano do escritor, entra agora num circuito em que são mais as vozes consonantes do que as dissonantes a pronunciarem-se sobre o homem e a obra na perspectiva de que Portugal teve no autor de Aves da Madrugada um cidadão que foi capaz, a golpes de vontade, de construir e fazer perdurar o seu mito. Herói? Traidor? D. Juan? Agitador? Galã cultural? Misantropo? Filantropo? Ou alguém que para lá destas ideias feitas ainda falte conhecer melhor? Duvido, evidentemente, que os prefácios (e um posfácio) sejam a via mais certeira para se alcançar a resposta correcta mas não deixa de ser fascinante que entre eles, as personagens e o autor se criem vasos comunicantes em que o leitor pode imiscuir-se e desfrutar de um sentimento de apropriação aos poucos sedimentado através de uma cumplicidade sem mácula. Talvez, quem sabe, se encontrem nos prologuistas  consensuais pistas de concórdia que acabem por nos revelar um Urbano reconciliado com os seus fantasmas. Que este que conhecemos andou sempre à pancada com eles. Um outro Urbano espera por nós?

Mário Sacramento, Luiz Francisco Rebelo, Jacinto do Prado Coelho, Eugénio Lisboa, Eduardo Lourenço, Sottomayor Cardia, José Manuel Mendes, Manuel Gusmão e José Saramago são os senhores que se seguem. A José Fernandes Fafe já me referi, mas também ele poderia ser incluído neste naipe. Armando Ventura Ferreira subscreveu um insípido e pomposo “estudo” a abrir a 3ª edição de A Porta dos Limites sobre o qual prefiro não me alongar. Vejamos como o médico-escritor de Aveiro trata da saúde àqueles que andam a por aí a tentar fazer de Urbano Tavares Rodrigues o neo-realista que nunca foi.

 

O diagnóstico do médico de Aveiro 

Mário Sacramento, assumido neo-realista, foi um dos mais bem informados críticos literários do seu tempo, uma mente aberta ao diálogo entre contrários. No prefácio à segunda edição de Imitação da Felicidade, referindo-se ao autor, lê-se ter tido sempre “um grande fraco por este escritor […] sobretudo […] se me acontecia discordar dele.”

Mário Sacramento tem a percepção agudíssima de como esta literatura encaixa no seu projecto teórico de dar ao existencialismo e ao neo-realismo, juntos, uma oportunidade de salvação, ou seja, a “aceitação”, pelo neo-realismo, da lição existencial como via para o enriquecimento da ficção materialista acrescendo-lhe  carga subjectiva e com ela dimensão universal. No livro de UTR ele viu, maravilhado, concretizar-se essa fusão. E explica como a coisa acontece: “Conseguir dar a poesia, a crítica social e a própria cultura mediante a metamorfose e o estilo formalmente charros de um motorista de vilória, que extraordinário encanto!”

E mais adiante: “Vazando a sua novela em três estilos retintamente diferentes e bem caracterizados, o autor consegue que os três monólogos atinjam uma luminosa existência literária, sem que para isso recorra a qualquer artifício (diário, narrativa a terceiro, arremedo de escritor improvisado, etc.), o que nos obriga a ponderar o lastro de postiça convenção que o materialismo deixou em herança ao realismo verdadeiro, e que este nem sempre sacode com o vigor e lucidez que tal exemplo nos dá.”

Sintomas de uma crise profunda que já afectava o neo-realismo, as palavras de Mário Sacramento ressoam como dobre de finados de uma visão maniqueísta do mundo, característica de uma “escola” que segundo ele se afastou do “realismo verdadeiro” quando o sentido ainda se chamava conteúdo. No precioso ensaio Há uma estética neo-realista? MS defende haver uma evolução na escrita dos melhores escritores neo-realistas para um plano estético de alto estatuto como Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, Fernando Namora, Redol, Mário Dionísio, entre outros, o que em seu entender se trata de renovada atenção ao trabalho da forma e por conseguinte uma transferência do político para o literário, assim justificada: “ O neo-realismo foi colhido ou tolhido, com efeito, por uma adversidade a que não conseguiu eximir-se: a de a literatura ser a única expressão viável de aspectos de vida social que noutras circunstâncias teriam cabido à política, ao jornalismo e ao livro doutrinário.”

No caso de Imitação da Felicidade Sacramento culmina o seu perturbador recado enaltecendo uma “dimensão que é real porque está em unidade dialéctica com o contrapolo de um ideal irrealizado.” E é esse irreal, prossegue: “que perpassa em todos os contos deste livro, definindo a cada um o seu tipo de realismo: fantástico, à maneira de Kafka (mas com toques de surrealismo e de escola-do-olhar), em Trânsito; tchekoviano em O Casamento e Espírito; freudiano em Trânsito e Testamento Quotidiano; crítico à oitocentos em A Samarra… E, não obstante, todos eles são pessoalíssimos, marcadamente originais – na concepção, na sugestão, no estilo”. 

Onde está, aqui, esse neo-realismo de século XXI cuja carapuça, desde o caudaloso Miguel Real (JL) à inocente Isabel Lucas (Público), que decerto acredita à primeira em tudo o que lhe dizem (uma literatura [a de Urbano] primeiro marcada pelo neo-realismo que ditava as regras), enfiam em UTR, a que o erudito Nuno Júdice acrescenta que o escritor “sem nunca abdicar da sua ideologia marxista” foi sempre fiel ao seu partido, etc. (Público) A palavra nunca infirma a afirmação. É mesmo uma ironia que um marxista verdadeiro como o foi Mário Sacramento dê superior ênfase ao que notou de kafkiano, tchekoviano, surreal, freudiano, crítico à oitocentos, afim do novo romance ou a remeter para o fantástico e para um vago realismo aparentemente só crítico, se erga da tumba para puxar as orelhas aos desenvoltos analistas que engoliram o “já” de Gusmão sem terem percebido que aquilo estava mesmo ali a mais. E então vá de despejarem o “neo-realista canónico”, explícita ou implicitamente, por tudo quanto é sítio.

Para quem quiser saber o que são neo-realistas canónicos nada melhor do que ler devagar, devagarinho, Há uma Estética Neo-Realista?, esquecendo minudências adverbiais que, voluntária ou involuntariamente, só atrapalham. E, já agora, vejam se há por lá algum senhor chamado Urbano Tavares Rodrigues. É fácil, é barato, basta clicar.

 

Miscelânia 

Jacinto do Prado Coelho sentiu a responsabilidade de executar no posfácio a Aves da Madrugada um retrato literário daquele que foi seu discípulo na Faculdade de Letras de Lisboa, cuja tese de licenciatura em filologia românica orientou (sobre Manuel Teixeira-Gomes, Introdução ao estudo da sua obra, 1949) e que de perto acompanhou os primeiros passos do futuro escritor, porventura nele augurando, desde cedo, a esplêndida carreira que veio efectivamente a cumprir-se. É um testemunho simultaneamente exigente e comovido, ainda que de uma comoção temperada pela compostura professoral, pela exegese do discurso e pela competência com que deu à obra o enquadramento estético e circunstancial que os contemporâneos achavam compatíveis com o estatuto académico. É evidente que Jacinto Prado Coelho não quis extrapolar do literário para o social, mas ainda assim o seu posfácio é uma peça essencial para se ascender ao conhecimento do ficcionista e relacionar melhor as suas metamorfoses com as da sua escrita.       

Luiz Francisco Rebelo teve a sorte de ser convidado para prefaciar a 2ª edição daquele que é para muitos o melhor livro de Urbano Tavares Rodrigues, Bastardos do Sol. Como já mencionei, esta avalancha de prefácios, confinada a uma faixa epocal precisa, recaiu sobre reedições às vezes muito afastadas, no tempo, das edições originais, o que levava os autores daqueles a evitarem debruçar-se sobre cada texto em si, preferindo partirem dele para digressões interpretativas dos vários contextos em que o escritor se movia. A circunstância de o livro em causa já ter passado pelo crivo da crítica e saído vencedor do teste da recepção pelo público desencorajava análises a esse nível.

À data da segunda edição de Bastardos do Sol Urbano Tavares Rodrigues é já outro homem. Não admiraria que LFR se mostrasse mais interessado, por exemplo, na evolução cívica de UTR do que nos aspectos formais do romance em causa. Mas é nos aspectos formais que o prefaciador gasta mais palavras para ressaltar a importância do livro ao ver nele a linha de fronteira que separa o naturalismo daquilo a que David Mourão-Ferreira, por si citado, tem como “a aspiração de uma intemporalidade mítica do assunto.” O tempo dentro do tempo, o romance dentro do romance, a história dentro da história, a reorganização do espacio-temporal, a importância da coisa, eram as fórmulas captadas no novo-romance para se combater o naturalismo “que desde há praticamente um século nunca deixou de ter entre nós foros de cidadania.” Mas o repto não foi tão longe como o queria um dos papas do movimento, o francês Alain Robbe-Grillet: “Os nossos romances não têm por fim criar personagens nem contar histórias”. Rebelo reconhece que Urbano se mantém fiel a esses dois vectores do protocolo tradicional – a história e as personagens – declarando tratar-se Bastardos do Sol de uma “síntese, notável de equilíbrio estético, sem a hibridez inerente às soluções conciliatórias.”

Sottomayor Cardia e José Saramago assinam dois calorosos prefácios a, respectivamente, Dias Lamacentos (50) e Casa de Correcção (51), não se excluindo que a ambos, independentemente do apreço literário noutras ocasiões demonstrado, motivou a sintonia política, tendo em conta o grau de intervenção dos três na oposição à ditadura. Faz sorrir a contenção estilística de Saramago, tão em contraste com escrita desenvolta de agressivo repto à gramática, de Memorial do Convento. Ei-lo, aqui, ao lado de Eduardo Lourenço com quem constitui um duo de prefaciadores (ainda que na condição de repetente) a considerar Carnaval Negro “uma das melhores e mais acabadas novelas de Urbano Tavares Rodrigues.” Sottomayor Cardia será, todavia, menos “literário” ao defender que os contos e as novelas de Dias Lamacentos “assinalam uma atitude de identificação com o sofrimento, de ligação ao povo e à terra. Insistem particularmente, embora de forma indirecta, no papel dos intelectuais enquanto cidadãos voltados para a compreensão das aspirações que os humildes não sabem formular e para o apoio à defesa dos mais instantes dos seus direitos.”

 

Da espuma dos dias à festa da literatura 

Estranhamente, um texto de Eduardo Lourenço apresentado como prefácio da 3ª edição revista da colectânea Casa de Correcção, aparece datado de Março de 1979, sendo a reedição em causa de 1987 e tendo a 2ª edição, de 1972, saído com o prefácio de José Saramago, naquela replicado. Presumo tratar-se de uma gralha, caso a data do texto fosse outra ou então Eduardo Lourenço possuía um escrito, inacabado, sobre o Urbano, ao qual acrescentou a parte final sem emendar a data. Nada de importante. Trata-se na verdade de uma peça veemente e amigável, redigida com a fogosidade e a altura intelectual de alguém que revê no objecto da sua conivência afectiva o próprio percurso de expatriado e que por isso lhe é tão próximo, o sente tão perto. Com aguda percepção do que representou a obra de Urbano Tavares Rodrigues num espaço e num tempo enquanto portadora desses “sonhos e visões que toda a gente vivia só por procuração cinematográfica, caídos do céu de celulóide dos países onde se passava alguma coisa.”, Eduardo Lourenço traça um perímetro de novidade no meio do qual explode a bomba-relógio da paixão, “paixão pelo que entusiasma, agride, comove, enoja, deste amor mórbido pelo fait divers do sentimento ou da violência” e relativamente à qual “os seus leitores lhe serão gratos e fiéis por adivinharem que sob eles se oferece desarmado um homem sensível à mistura indiscernível de esplendor e ignomínia que brilha no coração de cada um de nós.” Há uma ligação pulsional como quem partilha não as vicissitudes da história contada mas a ludicidade da escrita e dos imaginários que ela veicula, num estado de alegria que entra em combustão com a palavra alheia, juntando-se ao verbo iluminado o enlevo do pesquisador de tesouros – o elo de uma corrente que no ensaio encontra a solução de continuidade. Num cenário de magia, o celebrado autor de Heteredoxias faz coro com o autor de Casa de Correcção para brindarem à literatura num comum folguedo de emoções, tracejadas por risos de júbilo, entre criador e fruidor – o encontro genuíno de duas almas gémeas. São de grande sabedoria as palavras com que Eduardo Lourenço fixa o papel do escritor em causa na literatura do seu, nosso, tempo: “Não houve metamorfose da sensibilidade ocidental nos últimos trinta anos, ética, mística, ideológica, que não tivesse encontrado curiosidade ou eco fascinado, espasmódico ou aflito no homem de espírito romântico e romanesco que é Urbano Tavares Rodrigues.”     

Em Casa de Correcção há pelo menos três contos de antologia, daqueles que vão ficar: Tio Deus, A Morte da Cegonha e Carnaval Negro. É bem certo que são histórias que não migraram de nenhum “desses países onde se passa alguma coisa”, mas arrancadas ao universo asfixiante do Alentejo e à nebulosa noite lisboeta em momento de catarse colectiva de baixo teor ético e lúdico.

 
  Maria Lúcia Lepecki (de pé), Fausto Lopo de Carvalho, Natália Correia, Urbano Tavares Rodrigues e Júlio Conrado numa sessão de entrega de prémios na Associação Portuguesa de Escritores nos anos 80
   
   
 

Mendes & Gusmão, uma dupla convergente

Tanto o estudo de Manuel Gusmão como os prefácios (52) de José Manuel Mendes salvaguardam o tom erudito de quem os escreveu a pensar no leitor identificado com as linguagens da constelação universitária – o jargão académico a deslizar, à sorrelfa, aqui e além, pelos interstícios da prosa. Não lhes falta ousadia no recurso a meios operativos, da sintaxe à mensagem, usando munições requisitadas ao paiol da Nova Crítica, ainda que, no caso de Gusmão, ele manifeste alguma relutância em depurar a parte do seu discurso que se rege pelo vocabulário terra a terra. Seria necessário um extenso relatório para cobrir todos os tópicos colocados em cima da mesa pelos dois prefaciadores, não coadunáveis com a economia deste texto, considerada a sua própria especificidade. Decidi então isolar algumas linhas de força e por elas fazer passar o meu comentário, começando por José Manuel Mendes e detendo-me em três pontos capitais: Urbano e o realismo crítico, Urbano e o sexo e Urbano e os seus estilos literários. Em qualquer dos três campos há propostas que, sem suscitarem grande contestação, sugerem alguma ponderação. 

Surpreende-me um tanto que muita gente ande com a boca cheia do “neo-realismo” de Urbano e nem uma palavra sobeje para o realismo crítico, escola a que a sua literatura melhor se amoldava e à qual esse rótulo por larga temporada lhe esteve colado sem reclamações. O realismo crítico não propugnava como o realismo socialista que toda a obra de criação literária (e não só) fosse portadora de um significado ideológico determinado. Havia um campeão dessa corrente: chamava-se Georgy Lukacs, era húngaro e viveu na União Soviética, onde, durante a jdanovitcha, foi visto como revisionista e desviacionista, e obrigado a “repudiar-se” mercê de autocríticas que o mantinham à tona e lhe salvavam a pele, recorrendo ele habilidosamente a uma táctica que deixava confusos muitos dos adversários jurados: o léxico utilizado nos seus escritos era marxista, com forte acentuação na “decadência do mundo burguês” mas os grandes autores por si estudados eram preferentemente desta extracção, mesmo quando procurava em exercícios de literatura comparada modelos negativos para opor aos positivos. Em todo o caso não foram poucos os lapsos de tempo em que teve de ficar calado. Só por ocasião do 2Oº Congresso do PCUS, que reconheceu os crimes do estalinismo, ele pôde escrever e publicitar estas palavras: “Enquanto viveu Estaline e reinavam as teorias jdanovistas não era possível encontrar uma forma de oposição mais explícita. Para demonstrar que o meu simples silêncio foi tomado como uma rebelião, basta evocar as discussões literárias durante as quais censuravam de diversas formas a minha recusa obstinada em mencionar o romantismo revolucionário. Aproveito com satisfação a primeira oportunidade de poder exprimir-me assim, também sobre este assunto, sem recorrer à linguagem da fábula.”(53)

Com efeito, o realismo crítico, emergência da liberdade de criação artística vivenciada fertilmente nos primórdios da Revolução de Outubro, esses anos que inauguravam a União Soviética, viria ser desvalorizado e hostilizado pela jdanovitcha, mãe do realismo socialista – o nosso neo-realismo – defensora de uma praxis escritural, regulada por decreto, que privilegiasse a épica laboral em detrimento do individualismo e suas adjacências psicologísticas ou passadistas num país em que a prioridade política ia para o hoje musculado. Noutro texto faço notar que o realismo socialista / neo-realismo se aplicava no império soviético à realidade concreta do exercício do poder e no nosso país se confinava ao romantismo social baseado num modelo longínquo, filtrado por uma poderosa máquina de propaganda, em razão do que o homem novo soviético se construía na obediência às directivas do governo despótico vigente e o “homem novo” português se alimentava de amanhãs que cantam e outros slogans de futuros alimentados por um imaginário do “concreto” afim da mística do milagre, isto é, de fundo religioso, imaterial, se assim se pode dizer.

Ao húngaro Georgy Lukacs, guru do realismo crítico, a lógica de ferro do estalinismo que nunca deixou de o ter por alvo, obrigou-o a pagar caro o estatuto de tolerado do sistema. Mas Luckacs era esperto: a vulgarização da “descrição” de Zola não era contrapontada pela crítica de qualquer escritor comunista ortodoxo mas sim pela arte de “narrar”, de Lev Tolstoi; o absurdo kafkiano não era denunciado chamando à liça um afecto à linha oficial mas sim um fora-de-série como Thomas Mann (Franz Kafka ou Thomas Mann? Uma decadência artisticamente interessante ou um realismo crítico verdadeiro como a vida?) (54) E assim por diante com Beckett, Balzac, Joyce, Proust, Dostoievsky, Flaubert, Shakespeare, etc. O que nele estava entranhado era uma admiração sem limites pela grande literatura do “mundo burguês”. 

Resumindo: é no realismo crítico que cabe pelo menos metade da ficção de UTR e, nessa metade, a melhor. Num realismo crítico “verdadeiro como a vida”. José Manuel Mendes aí, leu bem o seu, nosso, autor, não permitindo que o homem socialmente comprometido prevalecesse sobre o escritor que não alienava a sua arte abdicando da liberdade de escolha, atitude que aliás não descurou mesmo depois da adesão ao Partido Comunista. Se o quiseram tiveram de o aceitar como ele dispôs. Tal como era. Por paixão, disse um dia a quem isto escreve.

 Mendes trata a questão do sexo na ficção de UTR com elevação. O que está em causa é a libertação, a dignificação da mulher pela via da independência sexual que gera, como prolongamento natural, a “libertação” do homem. Muitas outras coisas, porém, libertaram a mulher: a guerra colonial, que lhe abriu o mundo do trabalho em esferas onde este lhe era interdito; a consequente independência material; a invenção da pílula, mais do foro da química farmacêutica do que do discurso da cama, e, modernamente, o acesso generalizado a profissões de “perfil” masculino, como camionista, piloto da Força Aérea, taxista ou agente policial. Mas na função amática parece que o ardente novelista não era tão escrupuloso como edificante era a moral sexual nos seus livros. Mais uma variável de “entre o que sou e o que digo”? Ainda a procissão ia no adro, já se gabava de ter tido “mulheres aos cachos”. Em final de carreira, depois do repúdio do “papel” de D. Juan ao longo da vida, concede ter sido um D. Juan especial por causa da ternura com que tratava as mulheres. Elas, as pobres coitadas, é que não o deixavam em paz. Pelo caminho foi dizendo que “estragou vidas” e que por causa disso o atormentava um remorso muito grande. Fica-lhe bem o remorso em fim de festa. Mas o seu historial mais vulgarizado dispensaria a propagação do serôdio sentimento de culpa. (55) Urbano cortava a direito – a lenda não é benevolente com ele. E privilegiava, tanto quanto se sabe, a tabuada de somar. Não se revia em Miguel de Mañara mas não desdenhou chamar a si uma versão “português suave” do mítico galador (a serem verídicas as façanhas de alcova atribuídas ao ex-eclesiástico). Foi um D. Juan, sim. Resgatou à grande e à francesa os jejuns do deprimido adolescente de Horas Perdidas.

Quanto a não se lhe reconhecer um estilo mas estilos, e dessa maneira arrumar a questão, é simplista fazê-lo sem se ter em conta a pressão que uma escrita “instável” exerce na calibragem da “fala” receptora desalinhada de semelhante turbulência. José Manuel Mendes não se recusa a enfrentar a dificuldade. Mas nota-se-lhe vontade de não abdicar do rigor judicativo ao tentar encontrar o fio lógico que produza um efeito de reconciliação entre os modos de expressão autónomos. Urbano tinha dois exemplos próximos, um deles em casa, de escritores cujos estilos literários reflectiam uma exigente austeridade de processos na definição do gesto literário: Maria Judite de Carvalho, sua mulher, e Fernando Namora, o amigo do peito. É possível admirar, e eu viajo nessa barca, a magistralidade das personagens femininas da escritora, tão fiéis ao seu tempo, bem como assinalar no grande romancista a vigilância que exercia sobre o processo narrativo. Mas estaria ao alcance de qualquer destes dois grandes escritores ser, em simultâneo, mágico no Alentejo, arruaceiro no bas fond, múltiplo na relação amorosa, cáustico repórter do caso quotidiano, crítico social capaz da raiva e do sacrifício, com o esplendor de quem não dá tréguas à tentação de existir no limite da novidade? do risco? “com” a vida? Se o estilo é o homem, no triângulo em apreço Urbano é refém do princípio do prazer (e da ansiedade de ser) e os seus pares do princípio da realidade (e da responsabilidade de fazer). A psicanálise, a genética e a sociologia explicam isto muito bem e não serei eu quem ousará invadir o território da ciência, de onde só aproveitaria uns quantos clichés meio estafados. É para mim mais aprazível arrimar-me à fórmula dos “três estilos” de Mário Sacramento, fronteiras sabiamente demarcadas num discurso narrativo plural que, ao sê-lo, nada perdeu em fascínio e pujança.

José Manuel Mendes presta tributo à atenção com que Urbano Tavares Rodrigues acompanhava a evolução dos jovens aspirantes a literatos. Tanto eu como JMM em momentos decisivos do nosso crescimento como escritores, ficámos a dever a UTR apoio concreto excepcional e associo-me inteiramente às seguintes palavras do meu parceiro de geração: “Em vários destes como de outros ensaios avulta a infatigável generosidade do Urbano. Ela assenta numa condição de reconhecimento do outro, de absorção profunda do que transporta, em consonância ou clivagem com os projectos sedimentados, da fisiologia de uma produção no tempo e no espaço concretos em que um trajecto analítico tem lugar. Quantos poetas, ficcionistas, ensaístas (portugueses e não só) foram “descobertos” e revelados por quem celebramos aqui? Do jeito como alguns lhe corresponderam não falarei, seria a peregrinatio por veredas de visco e danosidade.”  

Relativamente a Manuel Gusmão: o texto deste categorizado poeta (em funções de ensaísta) que integra o II Volume das Obras Completas de UTR está competentemente organizado; respeita a condição do escritor no momento histórico correspondente à elaboração das peças recolhidas: Uma Pedrada no Charco, As Aves da Madrugada, Bastardos do Sol e Nus e Suplicantes. Trata-se de um quadro referencial já bem instalado na presente panorâmica, não escapando, por isso, a uma que outra sobreposição de pareceres idênticos, tendo este o mérito, ainda assim, de situar a trajectória de Urbano no contexto próprio, pulverizando as dúvidas que o advérbio impertinente possa ter levantado. Do próprio texto de Gusmão se soltam as labaredas que reduzem a cinza o insecto atrevido. É-me evidente que o “realismo socialmente fundado” referido por Gusmão não é outro senão o realismo crítico, em seu entender relacionável com a “chamada polémica do neo-realismo” mas não mais do que isso. A busca de unidade na resistência à ditadura justificava estratégias de proximidade com o neo-realismo, nunca o ensaísta asseverando, ou sequer insinuando, uma adesão de princípio do autor estudado ao movimento em questão. Gusmão não cede à tentação de sonegar o “papel” do sujeito, dissolvendo na corrente histórica em marcha particularismos caracteriais de personalidade em prol de um todo maniqueu que sacrificasse o individualismo à dinâmica das “massas”. Com precaução e sageza equilibra o apelo do social e o que é único em cada homem: o seu universo privado, a sua sensibilidade, testada por frequentes choques contraditórios, a sua aptidão para gerar e multiplicar emoções, instâncias de liberdade relapsas à disciplina no geral exigível ao intelectual engajado.

Em expressões como “experiência existencial, social e individualmente construída”; “personagens individualmente desenhadas”, “experiência pessoal e biográfica”; “projecto soberano de um indivíduo, de um sujeito”; “obsessões e mitos pessoais”; “a individualização feliz” e decerto em algumas mais, Gusmão não descuida a matriz subjectiva / individualizante da ficção que tem entre mãos “naquele momento da obra”, indissociável da “urgência ou um desejo de comunicação”, fosse qual fosse o rumo visado por esse desejo. O expediente de Urbano que consiste em falar de si através das suas personagens, aliás denunciado pela maioria daqueles que sobre ele escreveram, processo que permite a transferência para o outro recalcitrante em revelar-se na primeira pessoa, também não foge à lupa de Gusmão.

Menos elaborada se me afigura a gestão do vocabulário vulgar em que a recorrência de algumas expressões ou termos como “entretanto”, “desde logo” – num caso até “entretanto desde logo” juntando-se os dois tiques sem prevenir o diferente grau cronológico de cada um deles –, e o défice de autoridade expresso no persistente jogo marcado pelo princípio da incerteza, abundando os “talvez”, “parece”, “quase”, “porventura”, “de certa forma”, “não sendo rigorosamente”, “mais ou menos nítida”, “mais ou menos disseminada” ou a redundância possessiva num “procedimento que caracteriza a arte do seu autor e o seu modo de configurar o seu mundo ficcional”, sem esquecer o comprometedor “já” lá onde ficou sentado, nem “os quatro títulos aqui reunidos neste volume.” Pequenas discrepâncias formais de que a boa escrita não se ufana embora não cheguem para descolorir o labor interpretativo a que o poeta se votou.   

  

Janelas com vista para uma paisagem global 

Termino esta digressão “prefacial” com Eugénio Lisboa, autor do preâmbulo do I volume das Obras Completas, por me parecer constituir, de toda a prosa do género por mim revisitada, aquela que se afirma como a tentativa mais empenhada para concretizar, em texto relativamente breve, o retrato síntese, global, de uma obra, de um ser humano e de um percurso como o de Urbano Tavares Rodrigues. Mesmo quando elegantemente evita tomar partido por esta ou aquela opção estilística, por este ou aquele disperso movimento de fuga à vocação centrípeta da figura estudada, o ensaísta deixa pistas para discussão que dispersa por um conjunto de citações das quais aflora predominantemente o louvor mas também o vasto campo onde o cotejo e a questionação se posicionam como instâncias alternativas de qualificação extremamente úteis. Lisboa planifica no seu texto sete subregiões a partir das quais obtém a visão de conjunto do território, a saber:

Clareza: “Mesmo na sua complexidade e profundidade, a obra do autor de A Noite Roxa é servida por uma linguagem de admirável clareza ou, talvez, melhor, claridade. Camus dizia, com alguma maldade, que os que escrevem com clareza têm leitores, mas os que escrevem obscuramente têm só comentadores.” Não deixa de ser curioso que ao ler-se Urbano se vá dar, mais tarde ou mais cedo, a Camus. Ora a esta “caricatura” camusiana não deixa EL de reconhecer “algum teor de verdade” e a partir dela espraia-se em considerações que abonam um pacto do ficcionista com a escrita clara. No grande universo da ficção de Urbano nota-se, com efeito, a rota de uma viagem rumo à clareza por um rio que vem a desaguar no delta de que são ilhas maiores A Vaga de Calor, Deriva, Horas Incertas, Filipa nesse Dia, Nunca Diremos quem Sois, e por aí fora até esse afortunado e já muito perto de nós, A Estação Dourada, estabilizando a sua linguagem literária num patamar clássico do qual só interinamente fora apeada. Muito antes disso, no entanto, o jornalista do “porém” que lhe não suportava o “alarido verbal”, o poeta que lhe censurava a prosa pletórica devido ao grande arsenal vocabular, o guru a sentir por vezes a veia estilística inestancável […] inchar em certa amaneirada redundância, muitos tinham molhado a sopa a chamarem a atenção do autor para alguns chumaços no estilo, obstáculos à fluência do discurso, barroquismos de linguagem, a ausência de um estilo próprio. E se a realidade mágica do Alentejo o levava a salvaguardar o lirismo que a respectiva evocação lhe inspirava, não se coibindo de o expressar mais na obediência estrita a códigos íntimos do que reverenciando os protocolos da literatura, mais de um factor de distúrbio se intrometia na almejada coesão formal de que se obteria a recepção clara da mensagem. Concordo, evidentemente, com Eugénio Lisboa, ao eleger a clareza como elemento determinante na obra em apreço, atrevendo-me apenas a sublinhar que também aí Urbano travou um combate estrénuo ao longo dos anos para polir a sua escrita.

Variedade (de temas, de técnicas, de personagens, de tons). EL mostra-se senhor de pontaria impecável ao conotar com Balzac “uma enormíssima variedade de personagens, de atmosferas, de intrigas, de conflitos, de intenções (sondagem psicológica, ontológica, social, política) que lhe dão o estatuto de uma autêntica enciclopédia da vida ou se preferirem, com uma chapelada à Balzac, de uma verdadeira comédia humana.” Eu somaria às sondagens a sondagem erótica que está no cerne da novelística de UTR e que à comédia humana do seu memorável fresco acrescenta não pouca substância, fruto de inesgotável energia e de uma vontade de ferro de vencer, na literatura como nos labirintos do amor pela activa, como diria o nosso Camões – à sua maneira, como atrás se conta.

Complexidade, capacidade de entretenimento, ousadia. Três sub-regiões tratadas separadamente por Eugénio Lisboa mas que eu junto não só por comodidade mas porque se interpenetram e se citam. No que respeita a complexidade presumo que o que o observador releva do alto da sua torre de vigia tem a ver com o processo de crescimento de UTR gravado por este em letra de forma no preâmbulo a Horas Perdidas: “Era o tempo das vivências atropeladas, das exasperantes perguntas sem resposta, da busca incessante, obsessiva, do que me obstinava, do que nos obstinávamos, em chamar o sentido da vida.” Esta, a origem de tudo.

A complexidade da obra de Urbano Tavares Rodrigues advém da instabilidade psicológica do autor, permanentemente confrontado com realidades que o desarrumam como se o sentimento de identidade com a sua época só se pudesse manifestar contra essa época e a literatura, as mulheres e a responsabilização do outro, tanto o outro referente como o outro ele-mesmo, fossem elementos estruturais de um teatro da crueldade concebido para “vazar” inquietações geracionais que de longe excediam a capacidade de as resolver mas que eram as perplexidades daqueles que nessa escrita vibrante as reconheciam, nelas se reconhecendo. E assim foi Urbano criando um mundo exterior à sua circunstância perante cujas exigências passou a ter de responder.

Eugénio Lisboa capta a dimensão dessa responsabilidade e junta-lhe a destreza do autor em socializá-la através da “clareza da linguagem e da exposição”, acrescentando que “a claridade ajuda a iluminar melhor a complexidade, tornando-a mais acessível.”

No seu prefácio estudo EL destaca a capacidade de entretenimento, discreteando em torno dos truques usados pelos grandes autores clássicos para que a sua literatura não se tornasse entediante. Ora toda a literatura de Urbano, forjada no miolo da vida, nada tem de aborrecido, mesmo ao invadir submundos pouco divertidos.

As últimas sub-regiões (o ensaísta preferiu tratá-las por alíneas) são Ousadia, Conteúdo e Energia. Quanto à Ousadia, escreve Lisboa: “Este realismo singular, como já observámos, intersecta outros vectores: o símbolo, o mito, o desafio, a metáfora ousada. Atinge, por vezes, uma espécie de loucura lúcida, uma violência quase intolerável, como no romance a que já se aludiu, Nunca Diremos quem Sois. Num escritor que já passou a marca dos oitenta anos, essa juventude da imaginação surpreende.” Esta é já a fase da fera amansada em que todas as angústias estão esclarecidas e o autor se deleita a desfrutar da sua sabedoria, do prazer do texto temperado pela experiência, das alegrias que a matura idade ainda lhe proporciona, da certeza de ter vivido uma vida cheia que apesar de tudo ainda faltava completar. Essa juvenilidade madurã é igualmente desforço das Horas Perdidas da adolescência cinzenta, resgate que culmina, na minha opinião, nesse precioso A Estação Dourada, publicado quando o presente século ia já no terceiro ano da sua primeira década. Relativamente ao Conteúdo – ao ter que dizer – EL recrutou UTR para tripulante da Nau Catrineta (tem muito que contar) e a síntese desse acumulado de vivências expulso para o papel está bem patente na conotação balzaquiana da comédia humana chamada a compor o universo multitudinário que o olho clínico do leitor de alto escol que é Eugénio Lisboa não deixou fugir. Pela pujança física e mental responde a absorvente entrega ao ofício sem paralelo entre os escritores do nosso tempo e que Eugénio Lisboa define como “a inquebrantável energia desta escrita, a alegria, o brio, a elegância, que redimem mesmo os textos que nos falam de depressão, de desencanto, de degradação e de morte

 

***

 

Este não é, em rigor, como qualquer exegeta o apreenderá ao primeiro relance, um verdadeiro estudo na acepção corrente, mas uma tentativa de mapear o que valeu a ficção de Urbano Tavares Rodrigues para um “júri” composto por elementos da inteligência literária portuguesa do século XX e o respectivo comentário. Um retrato de corpo inteiro de UTR teria de cobrir a sua ensaística, a literatura de viagens, a actividade jornalística de testemunho do real quotidiano nos seus mais diversos registos sociais, humanos e culturais, enfim, o produto do afã de nada querer deixar passar, de tudo querer reter na escrita sobre um tempo de sombras que ele iluminou com a sua arte. São áreas que este texto não contempla senão de passagem mas que não deixarão de interessar os investigadores que neles quiserem encontrar vestígios idóneos do que foi o nosso país da ditadura à queda do império e à conquista da democracia, combate não isento de sobressaltos como os que nos atormentam nos tempos actuais.

Fique, no entanto, claro que dos vários “Urbanos” disponíveis aquele que me interessou homenagear com este trabalho foi o da fase existencialista. Decerto por ter sido a sua escrita de então a que mais intensamente me fascinou quando a literatura me abria horizontes de fruição e mais tarde de participação, ainda que tivesse sido o neo-realismo a conduzir-me a mão nos primeiros tempos. Tudo se corrigiu sem excessiva dor nem repudio. Tudo foi aprendizagem e experiência. Ainda que eu e o Urbano tivéssemos a dada altura percebido que rumávamos a destinos ideológicos não coincidentes.

 

 

S. João do Estoril, de 5 de Outubro de 2013 a 25 de Abril de 2014
 
 
  In: http://ccbarreiro.blogspot.pt/2013/11/55-aniversario-do-cine-lube-do-barreiro.html
 

                                          

     BIBLIOGRAFIA & NOTAS 

     1. In A Palma da Mão, 1970

2.     Horas Perdidas, 1969; 2ª ed. 1973, pref. Miguel Urbano Rodrigues

3.     A Noite Roxa, 1956; 2ª edição 1967, pref. Batista Bastos

4.     Nus e Suplicantes, 1960; 4ª ed. 1970, pref. José Carlos de Vasconcelos

5.     Batista Bastos

6.     Tempo de Cinzas, 1968

7.     Albert Camus, Cadernos II

8.     De Florença a Nova Iorque, viagem, 1963

9.     Olga Kosakievicz a quem é dedicado A Convidada, de Simone de Beauvoir, 1943, ed. portuguesa 1989

10.  O narrador sugere o ano de 1945 como data da conclusão de uma primeira versão de Horas Perdidas

11.  A Porta dos Limites, 1952

12.   Santiago de Compostela, Quadros e Sugestões da Galiza, 1949, ENP

13.   Exílio Perturbado, 1962

14.  Tempo de Cinzas, prefácio do autor

15.  Dissolução, 1974, prefácio do autor           

16.  Carlos Quiroga, in Portal Galego da Língua, 23.8.2013 (Internet)

17.  Tempo de Cinzas, prefácio do autor

18.  Jornal Negócios, entrevista de Anabela Mota Ribeiro de 7.9.2012 e republicada por ocasião da morte de UTR

19.   Foto de época divulgada na Internet. Urbano a cavalo.

20.  Jornal Negócios, entrev. de AMR

21.  Miguel Urbano Rodrigues, irmão de UTR

22.  Do prefácio de UTR à primeira edição de Horas Perdidas

23.  O Avesso e o Direito, de Albert Camus, do  pref. do autor

24.  As Aves da Madrugada, 1959, 2ª ed. 1966, pref. Óscar Lopes

25.   O Mito de Sísifo, de Albert Camus, versão portuguesa traduzida por UTR

26.  O Homem Revoltado, de Albert Camus

27.   O Estrangeiro, de Albert Camus, o romance que valeu ao autor o Prémio Nobel da Literatura de 1957

28.  Terra Ocupada, 1964, 2ª ed. 1972, pref. Álvaro Manuel Machado

29.  Sobre a evolução estética dos neo-realistas ver o ensaio de Mário Sacramento Há uma estética neo-realista?,1968 e o prefácio de Eduardo Lourenço a um dos seus clássicos Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista, 1968

30.  Romance que marca uma viragem “formal” na obra de Mário Dionísio

31.  Do Livro à Leitura, de José Palla e Carmo

32.  Imitação da Felicidade, 1966 (ed. apreendida). A 2ª ed., de 1974, saiu com um prefácio de Mário Sacramento.

33.  O Avesso e o Direito, prefácio. A frase completa é: Simplesmente, no dia em que se estabelecer o equilíbrio entre o que sou e o que digo, nesse dia talvez, e mal ouso escrevê-lo, possa construir a obra que sonho.

34.  Ibidem

35.  Entrevista a Maria Augusta Silva em 1994 por ocasião da atribuição a UTR do Prémio Fernando Namora (Internet); entrevista conduzida por Ricardo Palouro e António Melo, A23 Online, 4.2.2010.

36.  Vida Perigosa, 1955, 2ª ed. 1970, pref. David Mourão-Ferreira

37.  Ibidem

38.  Lisboa, Edições 70, 1983

39.   Revista Colóquio Letras, nº 86, Julho de 1985

40.  Entrevista conduzida por Ricardo Palouro e António Melo, A23online, 4.2.2010

41.   Segundo Teresa Martins Marques, especialista em David Mourão-Ferreira

42.   Segundo Serafina Martins, em recensão publicada na Revista Colóquio Letras sobre o livro A Horas e Desoras, 1993, dando eco à opinião de Fernando J. B. Martinho na Revista Românica 3

43.  Os Insubmissos, 1961, pref. José Fernandes Fafe

44.  Uma Pedrada no Charco, 1958; 2ª ed. com posfácio de Jacinto Prado Coelho

45.  Do Livro à Leitura, o único livro publicado de José Palla e Carmo

46.  Ibidem

47.   Bastardos do Sol, 1959; 2ª ed. 1966, pref. Luiz Francisco Rebelo

48.  A Estação Dourada, 2003

49.  A Vaga de Calor, 1986

50.  Entrevista ao Jornal Negócios supracitada

51.  Publicação póstuma em 1994

52.  Dias Lamacentos, 1965; 2ª ed.1972, pref. Sottomayor Cardia

53.  Casa de Correcção, 1968, 2ª ed. 1972, pref. de José Saramago; 3ª ed. 1987, pref. de Eduardo Lourenço

54.  Prefácios de José Manuel Mendes: Despedidas de Verão, 2ª ed. 1974 e Carnaval Negro, Porto,2005; prefácio de Manuel Gusmão ao II Vol. das Obras Completas, 2012.

55.  Georgy Lucaks: Significado Presente do Realismo Crítico, Lisboa, 1964; Ensaios sobre Literatura, Rio de Janeiro 1965

56.  Ibidem

 

57.  Entrevista supracitada em A23Online.

 

 

Agradecimentos:

Associação Portuguesa de Escritores

Dorindo Carvalho, autor do desenho que ilustra o texto.

Drª Luísa Duarte Santos, curadora da exposição bibliográfica sobre Urbano Tavares Rodrigues que o Museu do Neo-Realismo, de Vila Franca de Xira, consagrou ao escritor em 2009.

Museu do Neo-Realismo, de Vila Franca de Xira, que por iniciativa própria me fez chegar por via electrónica o bem documentado catálogo da exposição bibliográfica. O ensaio de Nuno Júdice que integra este catálogo desenvolve uma ideia feita com várias décadas de idade. Se a memória me não atraiçoa a paternidade da teoria de que a censura e a autocensura teriam destituído a literatura neo-realista da sua conflitualidade intrínseca cabe a João Palma-Ferreira. O autor de Três Semanas em Maio exprimiu num suplemento cultural a convicção de que o realismo socialista literário seria observado no futuro como qualquer coisa de incaracterístico, tendo em conta a invisibilidade dos seus objectivos programáticos. O que o tornaria irreconhecível. Face à confusão que por aí reina, não é de estranhar que o futuro esteja a dar razão a João Palma-Ferreira.

Escritora Maria Graciete Besse, que me enviou um texto de sua autoria sobre a literatura de viagens de UTR, no caso uma viagem à Índia. Infelizmente não pude aproveitá-lo, dada a índole deste trabalho.

 

Apêndice 

O catálogo da exposição de Vila Franca de Xira não faz qualquer referência aos vários textos de crítica e divulgação de que sou autor e ao longo dos anos fui publicando na imprensa cultural de expansão nacional, designadamente Jornal de Notícias, Porto, anos sessenta; Vida Mundial, Lisboa, anos setenta, e Diário Popular, anos oitenta. O  livro Nos Enredos da Crítica (2006) insere o texto da minha intervenção  no Colóquio de homenagem a UTR, pelos cinquenta anos de vida literária, que teve lugar na Universidade Lusófona em 24 de Março de 2003 promovido pela  Sociedade de Língua Portuguesa. 

 

  Júlio Conrado  (Olhão, 26.11.1936, Portugal) 
Escritor, crítico literário. Durante vários anos alternou a crítica literária com a ficção (incursões esporádicas na poesia e no teatro), centrando-se actualmente no romance a sua principal actividade. Fez crítica no Diário Popular, Vida Mundial, Colóquio Letras e Jornal de Letras. Colaborador de Latitudes, Cahiers Lusophones (Paris) e Revista Página da Educação (Porto). Coordenou a revista Boca do Inferno, de Cascais. Integrou os corpos sociais de Associação Portuguesa de Escritores, Pen Clube Português, Centro Português da Associação Internacional dos Críticos Literários e Associação Portuguesa dos Críticos Literários. Participou nos júris dos principais prémios literários portugueses. Textos seus estão traduzidos em francês, alemão, inglês, húngaro e grego. Obras principais: Romance: Barbershop (2010), Estação Ardente (Prémio Vergílio Ferreira / Gouveia (2006), Desaparecido no Salon du Livre (2001), De Mãos no Fogo (2001), As Pessoas de minha casa (1985), Era a Revolução (1977) e O Deserto Habitado (1974); Poesia: Desde o Mar (2005); Teatro: O Corno de Oiro (2009). 
Ver currículo alargado no site do Pen Clube Português
 

 

© Maria Estela Guedes
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