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E, se vos
disser: de um tanto tirai um todo? Porque tudo é fragmento e memória -
ela mesma descontínua - em um presente agostinianamente opresso, ora não
se consegue capturar o presente, fugidio, como nos ensinou tal doutrina,
a não ser que por força de mental amplexo, onde por virtude de assim o
querermos, damos espaço ao presente, olhamos ainda o passado e
expectamos o futuro a nosso bel-prazer; e muito há a faltar pois quanto
o que é vos basta se tendes de andar e viver e de comer e respirar nem
sempre o mesmo ar mas com a saudável variação que convém ao vasto e ao
vário, porquanto o ar incirculado estiola e asfixia? Ainda assim, muito
se diga que carecidos sempre andamos, uma necessidade vital que se não
cumpre, ora pela extensão do firme tempo da vida ora pelos caprichos de
ideal e sã saúde tranfigurada em maleita ora, ainda, pela perfídia das
gentes... porque o que é preciso é um caminho, este ou qualquer outro e
as condições para se poder dar sempre mais um passo mesmo que a errância
seja destino último, irreprimível e fatal condição de quem será a penar
debaixo do Sol...
Nem uma parte é
o todo, coisa banal e evidente, nem o todo amiúde entende sua parte:
como o poderia se é seu mester ser total-totalizante? Não pensas em teu
fígado a não ser, claro está, se ele, com seu parcelar poder, te põe
amarelo como um limão... Assim, tens a cor, a promessa dessa cor se tal
parte decidir tal efeito e o tom citrino é apenas um exemplo... Muitos
mais e outros se poderiam aduzir naquela circunstância de uma parte se
rebelar contra o todo ou de este não saber ou não poder comandar, em
justo preceito, as suas partes. Mesmo o sentimento do diverso do mundo
ou, se preferires, suas partes, disjuntas e entre si belicosas, apenas
em profunda paz naquelas poucas alturas em que a chã hipótese de um
sentido desponta. Consiste, portanto, em diferença esse orbe desavindo
ou de harmonia dos seus constituintes mas o que resta e que o forma é
isso o que lá, inadvertidamente quero crer, pões: um sonho ou vago
anelo, uma virtude sã, qualquer coisa que tenha o condão de dar ordem ao
caos, dispor o desavindo com justiça e acerto. Esta é a efectiva razão
que é a essência da facticidade do que determina o instante presente da
tua vida é tributário do que foi outrora e ilumina o porvir, a mutação
tua na corrente dos dias.
E, é assim, que
nunca são as partes o todo.
No cerne está a
vontade, na orla o consabido resíduo do que outrora se quis. Ou talvez
seja o inverso: o real é só loucura de impossível e orbitando fica a
sábia reflexão. Ou então, mesmo que de par em par andem os ventos do
malogro e da esperança e isso que por sua natural natureza parcelar e
antitético é, evolua em compósita serenitude. Há, nessa conformidade,
íntegro jogo, onde as partes e o todo cumprem eficazmente o seu papel de
partes e de todo, sem um dissenso, um contrário desejo aos superiores
interesses do todo mas respeitando o que cada parte tem de particular e
específico.
E, é assim, que
sempre as partes sejam o todo.
Isto para vos
dizer - e talvez me ajudem - da peculiar situação em que sou, no que fui
e no que me tornei. Da impossibilidade de retornar ao que era, da
vontade de insciência, de paz. O tormento provém da questão, a dúvida
corrói o espírito, até a carne. Não fora isso e tudo estaria bem, na sua
ordem perfeita e consoladora, cumprindo-se o que há para se cumprir na
função para que se existe, o horizonte mesmo do contentamento de se ser
parcela de algo mais importante e vasto, sem qualquer cuidado com a
transcendente importância ou virtude ou, pelo contrário, da irrelevância
do objectivo final para que se contribui.
Ora, sendo eu,
do todo uma parte, convivo inconformado com meu destino. Eis que o
tormento começou quando me autonomizei o suficiente, a exacta rigorosa
mesura, para me ver, a mim, como parte deste todo. Como a parte de um
todo no espelho da minha consciência.
Não adiantou o
argumento, de resto falaz, de que, se me vejo cônscio de mim próprio, já
constituo um todo, porque detentor dessa parcela de autonomia que,
precisamente, se revela em tal consciência. E que, ademais, não serei -
como não sou - substância unitária pelo que, eu mesmo, contenho partes,
partes de um todo que sou eu, não obstante sendo eu parte de um todo,
maior que as partes que me formam, e como todo, afinal, mais íntegro do
que seria se apenas fosse mera parte de um todo. Assim, embora seja
parte de um todo, poderei ainda ser, como se viu já, numa determinada
perspectiva, todo em relação às partes que me dão corpo e que, por serem
partes de uma parte seriam sempre partes de um todo, quer esse todo seja
eu, quer o todo seja o todo de que eu, como parte, participo.
Parece
complicado, mas tudo não passaria de uma questão de escala... Nem
garantido está que as partes que me dão substância não sejam, elas
próprias, capazes de lograr consciência de si, o que lhes daria, por sua
vez, um carácter totalitário. Nem sequer, pensando um pouco melhor, que
essas putativas partes de partes, envidassem pelo meu problemático
caminho, tortuoso e angustiado, prosseguindo dess’arte até ao infinito,
ou quanto muito, até à última subdivisão da matéria, átomo próprio,
primordial, que, enfim, se pudesse arrogar do estatuto de parte
originária, o que seria outra forma de dizer de um todo, pois que só
então seria, sem rebuço, uma unidade, mónada em si, indivisível e
completa.
E digo mais:
ninguém me conseguiu asseverar de que o todo de que me sei parte não
seja, ele também, parte de um todo maior e que eu, parte de um todo
então intermédio, não conseguiria vislumbrar. Por essa razão, também
neste caso, quem sabe qual todo poderia descansar na certeza de ser o
maior todo de todos os todos, o corpo final e vero englobante, porquanto
nele estariam todos os todos e todas as respectivas partes. Grande
máquina também de infinita complexidade pois conteria em si não só
partes a perder de vista como ainda partes compostas de outras partes e
dentro do conjunto vasto de tantas partes, umas conscientes de si, como
eu, e portanto de certa maneira já parcelares todos, outras em total
cegueira de sua própria identidade e, desse modo, apenas pedaços
funcionais e finitos. Mas há mais: se cada parte que pensa e questiona o
seu lugar no todo pode imaginar a vastidão na radical grandeza, assim
como o ínfimo do mais pequeno elemento, então haverá um desatinado jogo
de imaginação a decorrer, uma multiplicação ainda que virtual da ordem
das grandezas, uma confusão generalizada acerca do lugar de cada um,
entorpecendo os processos naturais de operação de cada parte que,
esquecida da sua função, quer saber se será ela o todo final ou uma
parte insignificante. Grandes orgulhos e abismos de humilhação se vão
assim desenhar. As partes mais tolas e vaidosas quererão ocupar lugar de
destaque na ordem das coisas, ufanas, sentir-se-ão vastos todos.
Esquecerão tolamente a sua teleologia de partes julgando-se imensos
todos, querendo apenas comandar as partes que os compõem. Podem ser
grandes mas têm as suas naturais limitações, não se podem dar ao luxo de
ser ociosas, de ficar impando de vã vaidade quando tanto há ainda por
fazer.
Por sua vez, as
partes mais modestas, com facilidade, caem na perigosa melancolia de se
sentirem muito pouco importantes. Ao ponto de já não quererem fazer o
seu trabalho de partes, pensando, erradamente, que podem parar, que o
todo de que são partes não precisa delas. Aqui chegados, eu postulo que
todas as partes são importantes para todos os todos e, mais radical, sou
a dizer que até o são para o todo mais vasto, o todo a bem-dizer
universal, e que ele não pode prescindir da mais pequena e humilde parte
que o compõe. É fácil de compreender que uma parte que desista da sua
função de parte vai, em primeiro lugar, prejudicar o todo de que é,
imediatamente, parte, e que esse todo, parte, por sua vez de outro todo
de ordem superior não vai funcionar correctamente uma vez que um dos
seus componentes constituintes falha devido à nossa parte relapsa. Essa
cadeia irá percorrer toda a hierarquia das partes e dos todos,
ampliando-se, como os círculos concêntricos de um espelho-de-água, até
que não haja corpo que não esteja ferido nas suas partes e na inerente
integridade do seu todo. Por isso é tão perigosa a consciência de se ser
parte. Não sei, contudo, se sou caso único ou se há outras partes que
também despertaram para a evidência de se saberem partes. Mas posso
conjecturar que se eu logrei ganhar alguma autonomia mental,
percebendo-me parte de um todo que provavelmente será parte de um todo
ainda maior e que me compõem partes que são todos relativamente a outras
partes mais pequenas e assim sucessivamente, então é muito provável que
alguma ou até muitas partes de muitos todos cheguem à consciência de si,
do que as rodeia e se perguntem como eu ora me questiono o que diabo
são, se são todos, se são partes do todo, se são elas mesmas compostas
de partes que podem ser todos em comparação a outras partes de menor
dimensão que podem também ser todos e que em maior ou menor grau por
igual desdita se tenham posto a meditar no seu lugar no todo e no seu
papel de partes do todo.
Vejam então, que
perdido nesta vertigem me sinto, não sabendo se, sendo parte, sou
igualmente um todo, se as partes que me compõem se sentem partes de um
todo que sou eu e que, por sua vez, são compostas de partes conscientes
de si e, por conseguinte, também, à sua maneira, um todo e, finalmente,
se o todo de que me sei parte é parte de um todo ainda maior,
sentindo-nos todos infelizes e confusos, excepto, como vimos, a mais
pequena parte de todas as partes e o maior todo de todos os todos.
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