|
— Olha só — eu disse. — Meio
metro acima da cama!
A minha mulher se virou
lentamente, abriu um olho só. Olhou pra mim com aquela cara de quem não
tava entendendo nada, depois roncou involuntariamente, aquela coisa
engraçada, ela com um olho aberto e roncando, prova de que o olho aberto
não significava que ela estava acordada coisa nenhuma, era apenas aquele
estado confuso em que a gente pensa que está mas não está nada.
Algumas horas mais tarde, eu já
no chão depois de testar, sozinho, todas as possibilidades da flutuação,
ela acordou, os dedos pequenos esfregando os olhos, a boca aberta num
bocejo interminável.
— Engraçado — ela disse enfim. —
Tive um sonho tão estranho...
Eu fiquei olhando pra ela, um
sorriso maroto nos lábios.
— Você parecia distante, sabe? —
ela continuou. — Assim, meio embaçadão, não sei bem explicar. Parecia
coisa de mágico, sei lá.
Eu pensei na melhor maneira de
contar a ela, escolher as melhores palavras, essas coisas. Não queria
assustá-la. E ela, de qualquer forma, não se assustou, mesmo quando, ao
invés das melhores palavras, eu me pus outra vez a flutuar na sua
frente.
— Não sei como isso aconteceu —
eu disse. — Eu agora flutuo, e isso é tão natural quanto respirar ou
pensar. E não adianta me pedir explicações.
Depois de me observar por alguns
segundos, ela falou:
— Tô com fome.
Tomamos o café da manhã em
silêncio, ela sentada na cadeira e eu, um palmo acima da mesa.
Confesso
que fiquei chateado com o descaso da minha mulher. Eu esperava uma
reação eufórica, de surpresa, ela me enchendo de perguntas e telefonando
para os amigos, olha, ele flutua,
que lindo que é isso, nenhum de vocês faz igual — mas nada, só o
silêncio, nenhuma pergunta a respeito, nada nada. Coisas assim, de
maneira geral, sempre vêm acompanhadas de entusiasmo. No caso, porém, o
único entusiasmo era o meu. Minha mulher, como todos os dias, foi cuidar
da própria vida, nem uma palavra sequer sobre o assunto, eu ali sozinho
com o brinquedo novo nas mãos, querendo compartilhá-lo com alguém que
sequer o havia notado.
Apesar da minha recente leveza,
fui para a rua me sentindo um tanto pesado. Fui flutuando, é bom que se
diga — e uma parte em mim pedia pelamordedeus que alguém notasse o
fenômeno. Afinal, não tem a menor graça ser portador de uma habilidade
especial e não ter ninguém para apreciar. O entusiasmo, sim, essa a mola
da vida, da minha vida, pelo menos. Mas ninguém à minha volta, percebi,
parecia concordar comigo. No caos das ruas congestionadas, das buzinas,
das pessoas apressadas, no meio dessa bagunça toda não tinham olhos para
mim e, assim como a minha mulher, tanto faz. Em tempos de cinema e
efeitos especiais, um homem flutuando não significa muito, é parte de
uma nova peça publicitária ou coisa assim.
Levado por esses e outros
pensamentos — e também pelo vento —, fui me distanciando cada vez mais
de casa. Do chão eu também já estava distante, uns quatro ou cinco
metros, não sei direito, o que me proporcionava uma visão bem divertida,
diferente de tudo o que eu já havia visto. De uma hora para outra toda a
minha perspectiva do mundo tinha mudado, mesmo as coisas mais
corriqueiras ganhavam novas formas, e as pessoas, uma nova dimensão. Foi
aí que eu ouvi, enfim, o chamado dos meninos:
— Ei, ei — eles gritaram. — Ei!
Eu sorri. As crianças, ah!, elas
são sempre mais atentas, mais espertas que nós. Percebem aquilo que os
adultos nem mesmo sabem que ignoram.
— Sim — eu falei. — Estou mesmo
flutuando. Não é genial?
— Aproveita que você tá aí em
cima e pega aquela pipa ali no poste — falou um menino. — A gente não
alcança!
Eu quase caí de raiva. Mais uma
vez, sobre o fato de estar flutuando, nenhuma palavra. Dane-se. Os
meninos perceberam isso, é claro, mas usaram a coisa em benefício
próprio. Não sou apanhador de pipas, eu pensei enquanto me afastava. Lá
embaixo os meninos, indignados, disparando todo tipo de palavrões pelo
fato de eu não tê-los atendido.
Não sei se isso é um fato, nunca
li ou ouvi nada a respeito, mas acho que a solidão de quem flutua é bem
maior que a dos demais homens. Assim, pelo menos, é como estou me
sentindo. Não tenho par lá embaixo; aqui em cima, muito menos. Mesmo as
criaturas voadoras se afastam; os pássaros não me querem por perto, voam
pra longe quando me aproximo. As borboletas não me alcançam por causa do
seu vôo delicado. Os urubus planam centenas de metros acima da minha
cabeça e acho que não consigo alcançá-los. Ou seja, estou num vácuo
flutuante, no meio de tudo. No meio de nada. Foi por isso que me enchi
de alegria ao ver, alguns metros à minha frente e no mesmo plano, um
outro homem flutuante. É difícil descrever a minha satisfação, e talvez
por isso mesmo eu tenha me comportado como um moleque bobo, deslumbrado
com a habilidade que eu considerava especial:
— Olá! Eu flutuo também — falei.
O homem se voltou lentamente na
minha direção, me deu uma olhada cheia de tédio. E falou:
— Grande merda.
Em seguida deu-me as costas
novamente e ficou ali parado, ocupado com seus próprios pensamentos.
Pensei em falar alguma coisa, afinal não é sempre que se encontra alguém
em situação semelhante, era o que eu pensava, mas assim que vi outro
homem flutuante, logo mais à frente, resolvi me calar. E o sujeito não
estava só: ao seu lado havia outros homens, altos e baixos e magros e
gordos, flutuando leves ao sabor do vento, assim como eu. Mulheres
flutuantes também. Bonitas, jovens, velhas, feias, mulheres-balão,
várias mulheres. Um curioso rinoceronte com asinhas azuis pastando
nuvens. Um cabrito alado, dois anjos vermelhos fumando charuto. Uma
parcela significativa do mundo, definitivamente, flutuava ao meu redor.
O mundo flutuante bem diante do meu nariz. E do meu sorriso:
— Genial! — eu falei, mais uma
vez encantado com a situação. — Genial!
O que notei a seguir, no
entanto, me deixou triste: o entusiasmo, mais uma vez, o entusiasmo só
existia ainda em mim. Nenhum dos outros flutuantes parecia feliz. Por
quê?
— E você acha que flutuar é
motivo de alguma espécie de comemoração? — falou a mulher-balão. — Coisa
nenhuma! A vertigem, meu filho, a constante vertigem que não nos deixa
olhar pra baixo. Daqui por diante é só pra cima, sempre, mais alto, mais
alto.
— Não tem
nada de especial aqui, rapaz — disse um dos anjos, a fumaça fedorenta do
charuto chicoteando o meu nariz. — Tal qual lá embaixo, aqui também é o
inferno.
A infinita tristeza dos seres,
eu pensei. A minha tristeza, que eu também já não era o mesmo. Um céu
imenso acima da minha cabeça, a terra lá embaixo, distante. A incômoda
certeza de não pertencer a lugar nenhum.
|