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O
poeta, ensaísta e tradutor Floriano Martins realizou um verdadeiro
garimpo para reunir em dois volumes uma série de entrevistas de Jorge
Luis Borges que encontravam-se dispersas em jornais e revistas
latino-americanas, publicadas entre 1964 e 1985. O trabalho resultou em
“Memórias de Borges – um livro de entrevistas” que traz a essência do
pensamento de Borges revelado a interlocutores como Alejandra Pizarnik –
poeta luminar – e Ivonne A. Bordelois que abrem o primeiro
volume, passando depois por María Ester Vásquez e Maria Esther Gillio,
responsáveis por duas das melhores conversas com o escritor argentino, e
muitos outros.
Entre a ideia de selecionar as entrevistas e organizá-las até a efetiva
publicação do livro, Floriano teve que esperar uma década. Faltava uma
editora que assumisse o risco de enfrentar um eventual problema
relacionado a direitos autorais, embora se saiba que as entrevistas
concedidas à imprensa não se incluem nesta obrigação jurídica, o que não
elimina totalmente os riscos de um embargo da obra.
Em 2013, “Memórias de Borges” finalmente encontrou uma editora. A
publicação coube à Nephelibata e resultou em dois volumes inéditos já
que as entrevistas nunca haviam sido traduzidas para o português, com
exceção da última, dada a Fabian Restivo em 1986.
Ao falar sobre Borges, Floriano também ressalta a importância do volume
Diálogos - publicado na Argentina
pela Seix Barral, em 1992 -, que reuniu a série de entrevistas
radiofônicas do autor, feitas por Osvaldo Ferrari - além das entrevistas
com Borges e Ernesto Sabato, feitas por Osvaldo Barone, em 1976, e que
foram publicadas no Brasil pela editora Globo, em 2005, sob o título
“Diálogos Borges/ Sabato”.
Uma das qualidades da publicação
da Nephelibata - além da
edição caprichada - é trazer uma seleção primorosa que dispensa
comparações. Ao fim, o que se tem é um mosaico das ideias de Borges que
revelam rigor e, ao mesmo tempo, uma incrível modéstia para falar da sua
própria criação. Seu brilho ultrapassa a fulguração dos egos que
costumam figurar na literatura para revelar atrás do escritor um homem
preocupado em ir sempre além do que já havia produzido. A impressão é
que para ele tudo o que fazia ainda parecia pouco, reflexo talvez de seu
imenso conhecimento.
Na apresentação do primeiro volume, Floriano Martins retoma a biografia
de Borges a partir de sua morte em 1985, na Suíça, país para onde o
poeta mudou-se com sua família em 1914 e onde permaneceu alguns anos. Ao
fazer esta trajetória circular –
morrer num país onde viveu parte de sua juventude - Borges foi
encontrar-se com uma parte de si mesmo ou, como diz Floriano,
encontrar-se com “o outro que sempre foi o mesmo – a exemplo de alguns
encontros anteriores que já tivera consigo, na emblemática coincidência
de páginas e esquinas que configura sua vida e obra.”
LEMBRANÇAS E ESCOLHAS | O fio que conduz as entrevistas de Borges é a
memória, suas perguntas são quase sempre tocadas por sentimentos da
infância, lembranças de momentos da juventude costuradas a motivações
que revelam muitas das suas escolhas. Não à toa, como mostra María
Kodama, viúva de Borges, num trecho incorporado à apresentação das
“Memórias”, Genebra também está presente no poema “Os conjurados”, que
dá título ao último livro do escritor argentino. Sua obra está
impregnada de um movimento circular que remete ao tempo, tema
fundamental na sua literatura. Na entrevista a María Angelica Correa, em
1969, Borges diz: “Teoricamente, poder-se-ia imaginar um universo sem
espaço. Um universo puramente mental. Mas um universo sem tempo, sem
sucessão, é inconcebível. Mesmo que os homens tenham inventado uma
palavra para aquilo que não podem conceber: a palavra eternidade.”
Das entrevistas saltam motivações que dão sentido a uma vida
emblemática, a vida de um dos maiores escritores do século 20 que
resgata vivências e raízes para justificar opções existenciais e
literárias. É curioso observar que o autor de dezenas de obras - entre
poesia, contos e ensaios - revela modéstia ao comentar dois de seus
melhores livros: “Ficciones” e “El Aleph”. Ele diz: ”Parece-me que não
estão mal, mas é um gênero que me interessa pouco agora.” Uma vaidade
rotunda, característica de autores bem menos importantes, desmancha-se
em Borges através de frases tão simples para tratar de seus contos
fantásticos, expressão que
pode ser empregada para referenciar duplamente sua literatura,
ligando-se ao estilo e à sua grande qualidade.
Nas entrevistas, pequenas revelações também aproximam os leitores de
Borges. Sua cegueira é evocada algumas vezes, mas esta condição talvez
tenha lhe dado, na contrapartida, uma visão interna de longo alcance,
como quem enxerga universos paralelos. É desses mundos que ele parece
emergir às vezes, impressionando com sua presença, como relata Ronald
Christ na abertura de uma entrevista realizada em 1966: “Quando Borges
entrou na biblioteca, usando uma boina e uma folgada roupa de flanela
cinza-escura que lhe caía até os ombros, todos deixaram de falar por um
momento, fazendo uma pausa, talvez por simpatia, como se participassem
da vacilação deste homem que não está de todo cego.”
Há também detalhes reveladores sobre a percepção de um homem que aos
poucos vai perdendo a visão, agarrando-se às minúcias de um mundo de
cores antes de mergulhar nas sombras. O amarelo adquiriu importância
para ele por ser a última cor que viu antes de tornar-se completamente
cego. Estes detalhes deixam transparecer a vivência do poeta em
situações múltiplas, levando junto o leitor pelos labirintos de sua vida
e obra.
Ao falar de como aprendeu várias línguas, Borges traz à tona suas
motivações ao empreender também um grande mergulho na linguagem. Neto de
uma avó inglesa e outra que falava castelhano, como a maioria da
família, desde os quatro anos usou os dois idiomas em conversações
domésticas, exercitando um conhecimento prático que antecede o
aprendizado formal. Ele defende assim uma aprendizagem que não parte da
gramática, mas de um envolvimento simbiótico com idiomas, a ponto de
declarar na entrevista a María Ester Vásquez: “Não sei português e li
Eça de Queiroz. Quando não entendia uma frase a lia em voz alta, e o som
me revelava seu sentido.” Abre assim a possibilidade de entender a
língua, mesmo estranha, como um veículo de “revelações”. Nada mais
apropriado à sua literatura.
Um nome recorrente em várias entrevistas é o do erudito inglês Thomas De
Quincey , autor de obras transgressivas como “Confissões de um comedor
de ópio” a quem Borges parece admirar profundamente, evocando-o, como um
de seus referenciais.
DO SUICÍDIO AO LABIRINTO DA MORTE | As conversas com Borges quase sempre
recaem em temas dos quais se levantam voos filosóficos, como a vida e a
morte. Ele esboça ideias sem nenhum traço de censura moral quando trata
de assuntos delicados como o suicídio, ponto da primeira entrevista do
segundo volume de “Memórias”, feita em 1975, onde ele explica a Suzana
Chica Salas como na Grécia era possível a quem queria se matar levar a
questão a um tribunal que, se julgava a causa justa, encarregava-se de
dar a cicuta ao suicida.
No meio do livro de entrevistas destaca-se um depoimento de Borges à
revista ibero-americana “Cuestinario” – nome que desagradava Borges por
sugerir interrogação – na qual suas ideias em torno de livros e
literatura são permeadas de comparações culturais entre os vários países
que conheceu e nos quais lecionou, deu conferências, palestras e teve
livros publicados. Ao comentar que a maior biblioteca da América Latina,
a Biblioteca Nacional de Buenos Aires, tem 900 mil volumes, ele a
compara à biblioteca de Lubbock – “cidade da qual a maioria dos
americanos nunca ouviu falar” – para
informar que lá se encontram cerca de 2 milhões de livros,
incluindo um do escritor argentino Leopoldo Lugones do qual não havia um
único exemplar na Biblioteca Nacional de seu país. Ainda assim,
considera que os americanos, mesmo podendo estudar qualquer coisa sem
sair de suas cidades, aproveitam pouco as possibilidades, tendo em vista
um sistema educacional que ele considera absurdo e que promove
desperdício de conhecimento.
No campo da literatura, suas ironias são destinadas às teorias, é
hilária a maneira como se refere ao estruturalismo contando como reagiu
num simpósio quando um grupo de estudiosos lhe apresentou uma análise de
um de seus contos por este método: “Vejam senhores, agradeço-lhes muito,
mas não percebo qual sua importância.” Na sequência expõe suas razões ao
dispensar tal abordagem afirmando que uma pessoa que lê e interpreta um
texto desta maneira “priva-se de todo gozo estético.”
A ligação de Borges com a
literatura é visceral, mas ele absorve bem as críticas que
invariavelmente, mesmo nas entrevistas, lhe
destinam o lugar de grande autor em prosa que perde o brilho na poesia.
Mas defende sua poesia e na entrevista a Roger Caillois (1977), fala
como cada um encontra e assume sua linguagem: “Creio que cada poeta é
essencialmente seu tom. Se pensarmos em Whitman, por exemplo, é a voz de
Whitman. Ou se pensarmos em Verlaine, é a voz de Verlaine. Cada poeta
tem sua voz, sua tom, sua maneira...”
Destaca ainda como as palavras
procuram os poetas e afirma que eles devem evitar parecerem-se consigo
mesmos, diz isso acerca do uso de algumas palavras que deve evitar para
que ele mesmo “não se pareça sempre com Borges.” No seu vocabulário
poético destaca como recorrentes as expressões labirinto, facas e
espelhos, diz que deve evitá-las, embora “quando me distraio, de
imediato surge ali um labirinto.”
Há muito a comentar sobre as
ideias de Borges reunidas em “Memórias”.
Alguns temas atraem quase todos os seus interlocutores que
poderiam estender a pauta, mas por obrigação jornalística quase sempre
são obrigados a recortar seu pensamento em cerca de dez perguntas. As
entrevistas foram bem escolhidas pelo organizador do livro e fazem da
coletânea uma sedutora milonga que sintetiza a verve argentina de um
autor ligado à cultura do mundo, que viaja da tradição indiana à
literatura contemporânea que afirma, no entanto, não conhecer bem,
porque ficou cego em 1955.
No final do volume II há um roteiro com todas as fontes pesquisadas por
Floriano Martins para fazer a seleção de entrevistas. Trata-se de uma
pesquisa que acrescenta dados à trajetória de Borges de forma organizada
e talvez inédita, sob o ponto de vista de um mapeamento do que há sobre
ele na imprensa latino-americana.
A última entrevista do livro, “Um homem devorado pela fera”, foi dada a
Fabian Restivo em 1985, e trata-se da única que já havia sido traduzida
no Brasil, publicada pela
Folha de S.Paulo em 1986, poucos dias depois da morte do escritor.
Nela, Borges afirma dar preferência a formulações interrogativas,
mais diretas, que não obriguem um homem de 86 anos a fazer longas
reflexões. Mas com ele é quase impossível os temas não se aprofundarem,
a simples menção da palavra otimismo já é suficiente para que se remeta
a Voltaire explicando que se deve a ele tal expressão. Nesta última
entrevista, a idade é um tema que se impõe em alguns trechos para
lembrar os cem anos da feminista e socialista Alicia Moreau Justo e
justificar que morrer após esta idade é consolador, segundo
Schopenhauer, porque “depois dos cem anos qualquer um pode morrer de
repente”, o que no entanto, não o convence. Ele comenta que àquela
altura não havia ainda chegado à maturidade, mas à decrepitude mostrando
sabedoria ao lidar com paradoxos.
Dias depois da entrevista a Restivo, Borges desapareceria, saindo de
cena acompanhado por María Kodama, possivelmente para um tratamento de
saúde, até morrer em 14 de junho em Genebra. Nos dias que precederam sua
morte nada se sabia acerca de seu destino, dizem que sua secretaria e
companheira ergueu uma muralha ao seu redor. Melhor pensar talvez que o
autor de Ficciones esgueirou-se por um labirinto, como num de seus
poemas: “Não haverá nunca uma porta. Estás dentro/ E o alcácer abarca o
universo/ E não tem nem anverso nem reverso/ Nem externo muro nem
secreto centro./ Não esperes que o rigor de teu caminho/ Que
teimosamente se bifurca em outro,/ Que obstinadamente se bifurca em
outro,/Tenha fim. É de ferro teu destino/ Como teu juiz. Não aguardes a
investida/ Do touro que é um homem e cuja estranha/ Forma plural dá
horror à maranha/ De interminável pedra entretecida./ Não existe. Nada
esperes. Nem sequer/ No negro crepúsculo a fera.” (O Labirinto/ Jorge
Luís Borges em Elogio da Sombra, tradução: Carlos Nejar e Alfredo
Jacques).
Por Célia Musilli/ Carta Campinas
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