Transparências
Em cima da mesa uma ampola de sangue.
A criança fervilha de curiosidade para agarrá-la.
Uma luz branca incide no tampo envernizado.
O reflexo percorre a transparência do pai estilhaçando
as delicadas extremidades de vidro.
O homem verte vinho para um jarro e tinge de tintura a água.
A mulher abre um frasco de amor e escurece de vermelho
fatias de pão.
As filhas têm tranças de cabelo azeitona e de trigo dourado.
À mesa todos se riem por ele ter a boca pintada de ameixa.
Na manhã seguinte quebrou a ampulheta e destruiu
o mecanismo de conta-gotas.
O reflexo imobilizou-se no rapaz que cresceu
e que vê pelas mãos à transparência.
A cidade
Fazíamos arcos com ramos de eucalipto
esticados por finas cordas de nylon que roubávamos
dos fios-de-prumo.
Os cabouqueiros abriam a pulso valas que enchiam
com cascalho, cimento e areia grossa.
As casas proliferavam semana após semana.
O povoado crescia — anos mais tarde a capital transbordou
e a nossa terra aumentou-se de casas e de pessoas
e ganhou o estatuto de cidade desordenada,
Havia comércio a cada esquina e a vida acontecia muito depressa,
os homens sopravam o pó dos fatos
e as senhoras sujavam os saltos das botas de cano alto
na lama das ruas sem alcatrão.
Os cabouqueiros passaram a guiar máquinas que esventravam
a terra para se alimentarem das raízes dos pinheiros
e dos eucaliptos
e os lavradores plantavam guindastes e enxertavam-se
no cimo de andaimes.
Foi há muito tempo.
Mas de um tempo mais antigo são as noites em que tirávamos prumadas às
estrelas
e nos dias resplandecentes de sol
tu equilibravas-te num curto vestido de renda
e em troca de um beijo
eu deixava-te desfilar com o meu chapéu de palha.
Hibakusha
Paridas rente ao chão sustêm-se
definhadas ervas bravias
balbuciando sede, suplicando
insídias gotas de vida
atónitas por um clarão pérfido,
potente sol, vermelho-vivo
enegrecendo de morte
a imensidade absoluta.
Perpetua-se, infinitamente,
o céu plúmbeo nas crias
condenadas à existência
no asfalto liquefeito
correm nuas, ionizadas,
a pele despegando-se do corpo
templo de feridas antigas.
Sobrevivendo nos arrabaldes
da sobrevivência corroída
órfãs de terra-mãe
aguardam vez para a unção extrema
réstia de esperança na morte
para quem na vida não teve.
Palavras
Rasgam-me a garganta.
As palavras soltam-se.
Como pombas da paz libertas de um tempo infértil
Voam, agora,
Esplêndidas
Precipitam-se a meus pés arfando vida num suicídio anunciado.
Esventradas,
Tingem-se com o sangue imaculado das palavras degoladas.
Decepam-me os dedos.
As palavras partem, desenleiam-se.
Renovo-me na carne decepada.
Com os dedos novos que me crescem
Teço reflexos de um reflexo oculto projectado no chão térreo
Viro as palmas das mãos para cima
Tento abarcar a pequenez do céu com a enormidade
de um abraço
Ajoelho-me na terra aquecida pelo sol breve que me trespassa
a espinha.
Curvo-me.
Nascemos para pequenos milagres.
Separam-me a língua.
As palavras desprendem-se, revoltam-se, personificam-se, enleiam-se e
fornicam
Indomáveis
Fazemos filhos,
Multiplicamos sangue,
Arrancamos a pele e gravamos na carne o tumulto ininterrupto de um rio
que saliva palavras.
Mecanicamente
Movo-me mecanicamente por impulsos não pensados
Simplesmente não funciono por estímulos da razão
Detestaria que um dia ao ser dissecado alguém dissesse:
«Ei-lo! Emocionalmente insatisfeito e racionalmente realizado.»
Detesto rótulos apostos por gente certinha e pensante
E não quereria ver-me dentro de um frasco catalogado.
Acerto apenas duas vezes ao dia
Como um relógio parado numa sala-de-estar vazia.
De manhã estava vivo e acordei
À noite se me deitar é porque vivo estarei
Agora é tarde, mas vivo, pois assim tem de ser
Erro, não acerto, não penso, estou a viver.
Leite materno
Palavras proibidas soando roucas
mortas à nascença no canto da boca
como filhos regurgitando fome
no leite materno seca o homem
peca de língua afiada sucumbindo
no peito que dá vida
nascem filhos
alimenta-os
dá-lhes amor e mais porrada
afoga-te na taça de vinho
encarna-te
vende o sangue que te sorvem
do teu suor destila o sal
e humedece a terra
que prenhe de ti
até às entranhas
estende a língua
para te lamber.
Blues and Whiskey
Toquei blues transversais ao tempo
Foi há muitos anos
Antes de eu ser velho
Tocava notas soltas
Dedilhando lamentos repetitivos
em cordas gastas que gemiam anos velhos e gastos como eu.
Tocava blues e bebia whiskey envenenado.
E não morri!
O veneno tornava-me a voz arrastada e melodiosa
Diziam que causava um arrepio na espinha
e que os meus olhos brilhavam a melancolia e a tristeza
dos escravos negros traficados pela humanidade que carregamos às costas.
E era esse o peso que eu sentia e que me vergava.
Idolatravam-me e eu sorria.
O meu segredo era o veneno que eu tomava.
E não morri!
Tocava blues numa guitarra velha
Assim como eu
E cantava canções tristes
Ritmadas entre espasmos de dor na curva do peito
e orgasmos compassados na harmonia de um vão de escada.
Agora já não toco blues
Ouço apenas
Ficaram gravados em mim
O veneno clareou-me o pensamento
A voz já não se arrasta
E também já não canto melodias tristes
Até porque nunca mais disse palavra.
O meu olhar continua envenenado
Afastam-se de mim
E já não me idolatram
O veneno agora sou eu.
E ainda não morri!
Criança suicida
Sabes?!
(Disse-me.)
Tenho a boca a saber a minério.
Desdobrou as mãos grossas e mostrou-me os dedos gretados
pela garimpa.
O médico deu-me seis meses de vida:
(É o que oferecem
— encolheu os ombros —,
estou moribundo e mais não dão por um homem em ruínas.
Mais mês ou menos mês.
Menos vida por vida.)
O mercúrio envenenou-me o sangue.
Foi no que deu dedicar-me à alquimia.
Primeiro cegamos, depois vamos perdendo o tacto.
Restam-me lembranças:
o vulto que se arrasta
a lucidez esbatida na lenta memória do corpo.
O teu
perdura na ponta dos meus dedos mortos.
Depois?
Depois choramos e as lágrimas esculpem o rosto.
(Que lágrimas choram olhos que não vêem?)
Sabes?!
Percorri a estrada de sal.
Amei a serpente.
(Pobre criança suicida!)
Assisti à deposição do último rei da prússia.
Depois,
(Contou-me.)
Transmutei-me num carnaval celta
Travestido de monge turco.
Não toleraram a minha heresia.
Fui condenado a trabalhos forçados,
Deportado para a terra de meus pais.
Lá, onde não tenho ninguém.
Se quiseres,
(Continuou.)
Posso falar-te da criação do mundo e da sucessão dos dias
Do deslocamento rotacional dos corpos
E da insignificância da génese cartesiana
Da geometria lasciva do voo do beija-flor
E da revolta dos negros no coração da terra
Do murmúrio inebriante dos sinos pendulares
Para sempre silenciados
Do desmoronamento da torre de zanzibar
Palavra a palavra.
Ficou tudo tão triste, meu amor.
Ouve-me, peço-te
Se quiseres fugimos e procuramos refúgio
Na letargia do sono índigo
Ou no entorpecimento da bebedeira de absinto
Na mitigação dos instintos primitivos
Ou na ancestral dormência deste céu atávico
que escorre por cima de nós.
Se quiseres posso falar-te de mim, meu amor
Até ao fim do mundo,
até ao fim de tudo,
onde restamos sós.
Reflexos
Ele é velho, está velho, já nasceu assim: velho.
Ela é nova, muito nova.
Ela caminha num bordo suspenso, equilibra-se naturalmente
e caminha elegante.
Ele dá-lhe a mão a que ela se segura enquanto caminha jovem
e nua no bordo de fora do mundo.
As suas formas uniformes são definidas, firmes, delineadas
e belas, muito belas.
Ele é um corpo disforme.
Ela vê reflexos espelhados numa face de água
e não vê as lágrimas cristalizadas nos olhos dele.
Apenas ele sabe das suas lágrimas. Apenas ele percebe
de lágrimas.
Ela conta-lhe do mundo, do mundo novo de todos os dias
e do qual vê reflexos espelhados numa face de água
quando caminha nua num bordo de terra.
Ele surpreende-se com o que ela lhe conta do mundo novo
sem que nele fiquem traços de espanto.
Ela acredita que ele fica espantado.
Ele quando lhe contava, apenas contava mentiras que ela julgava serem
verdades e assim ela não sabe que ele mentia
e já nem ele sabe.
Ela conta-lhe mentiras mas não sabe que são mentiras.
Ele ainda lhe conta mentiras que julga serem novas
do mundo velho e que a ela já não interessam
por serem de um mundo novo que se faz velho todos os dias
e ela faz um mundo novo todos os dias.
Ela caminha nua num bordo de fogo. Pela última vez conta-lhe sobre os
reflexos do mundo. O tempo dele chegou ao fim.
Ela não sabia. Ele contou-lhe. Foi um acto egoísta como todos os actos
de amor.
De noite amaram-se. Pela manhã morreriam.
De manhã ela estava morta, nua, jovem e bela.
Ele também cortou as veias e morreu velho.
Barro
Disse: pedra. E escreveu mundo.
Disse: água. E jorrou vida.
Disse: criança. E lambeu nos dedos um pedaço de céu.
Disse: homem. E acendeu-se um cavalo no horizonte.
Disse: mulher. E côncavo, aconchegou-se no barro.
A intensidade da luz cegou o cavalo-poente e circunscreveu-o
à enormidade da noite.
A mulher nunca quebrou o pacto. Um ventre de sangue estoirou-lhe nas
mãos e abafou o choro pioneiro do filho
sem sustento acabado de parir.
A morte principia onde mãe acaba e o homem começa.
Quedava-me a ouvir ao longe as sirenes dos barcos
ao largo na cidade.
Os braços resistiam ao vento que soprava das fábricas.
Sentava-me perto da única janela.
As gotas amoleciam a tarde na vidraça
e os dias pareciam dardos longos que arrasavam o tempo.
No quarto guardava um caderno com desenhos abstractos
que representavam a concretude.
Tenho uma cidade inteira prestes a explodir dentro da cabeça.
Tenho uma caixa de lápis de cor que só uso de emergência.
Tenho veneno que chega e sobra para infectar as ruas.
Tenho astrolábios de barcos afundados nas entranhas
de um povo.
Tenho âncoras de pele a despregarem-se do corpo.
Tenho a fuligem do rio turvada nos olhos em sangue rubro.
Tenho um grito mudo escondido por detrás das palavras
da criança no homem que chora e não quer cegar.
Arrumo todos os meus pequenos cantos.
Lápis, canetas, rascunhos,
Livros de colorir, instantâneos sem cor,
Fragmentos, recados para o futuro, tiras de celulóide queimada,
Fitas de nastro esgaçadas pendendo medalhas.
Desnudo biombos da memória.
Risco linhas supostamente convergentes.
Esboços de esboços.
Improvisos de letra sobre letra.
Desmorono,
pedra a pedra,
a horizontalidade do naufrágio do filho que reescrevo.
Resgato preciosidades a que me agarro.
O poeta cego apalpou a nervura da página e enterrou as mãos
no barro.
O desejo aluado estalou de encontro à rasura da pele,
Reduzindo o silêncio ao desespero obsessivo da procura
de palavras.
Na geografia da garganta o turbilhão arranha gritos na tábua rasa
e em êxtase o mar revolto galga as margens da cidade dilacerando quem o
enfrenta.
A criança-homem monta o dorso insubmisso e doma-lhe
o desejo, fincando-se-lhe nas ancas com esticões nas rédeas.
Alucinados,
trocam sangue e saliva
e escoiceiam irados os fluidos das paixões violentas.
A escrita começa onde o homem acaba e o mundo principia.
ARNALDO SALDANHA ABREU
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