REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 44 | fevereiro-março | 2014

 
 

 

 

 RICARDO DAUNT


 Um parafuso nas lajes 

(Prefácio para uma futura edição portuguesa da obra Cesário Verde: um poeta no meio-fio do paraíso) 

 

Foto: Philip Shellard

Ricardo Daunt (Brasil). Ensaísta e ficcionista. Tem publicado livros desde 1975. É doutor pela USP em literatura portuguesa, com dois pós-doutorados realizados fora do Brasil. Um deles sobre o modernismo de Portugal, que resultou em inúmeros trabalhos sobre o Orpheu. O outro sobre Eliot e Pessoa, que resultou na obra  T. S. Eliot e Fernando Pessoa: diálogos de New Haven, publicada pela Landy e adotado em inúmeros cursos de pós-graduação de diversos países.

 

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      Há décadas, mais precisamente nos anos 80, conjuminando pelos jardins da Universidade de São Paulo meus planos de doutoramento, abri o exemplar raquítico de um livro de poemas que acabara de comprar.

     Abri ao acaso, e o primeiro verso que li foi:

 

           "Um parafuso cai nas lajes, às escuras"

 

   Aquilo doeu-me maravilhosamente os tímpanos; àquele tempo já me afeiçoara aos movimentos sutis que povoam o corpo vivo dos poemas, não fosse eu próprio um poeta, já naquele tempo de longa data. E fez me sentar no banco mais próximo e erguer a vista fingindo para mim mesmo que o fazia para ver se ia chover ou fazer sol, quando na verdade pressentia que alguma coisa muito especial estava acontecendo em minha vida.

   Trazia alguns outros livros junto ao corpo. A maioria de Almada- Negreiros, cuja obra eu inscrevera em meu espírito como candidata predileta a objeto de minha tese de doutoramento. Depus os livros ao lado do banco.

   Realmente fazia sol, embora ali, naquele banco, a sombra de uma amendoeira se projetasse sobre minha cabeça, impedindo que seus raios me alcançassem em cheio.

   Retomei o livrinho que comprara, relendo o verso e erguendo os olhos até a primeira quadra do trecho que o poeta denominou 'Horas mortas' e que corresponde -- mais tarde me dei conta -- à última das 4 partes de "O  sentimento dum ocidental". Reli a primeira e a segunda quadra dessa parte: 

 

 

         Horas Mortas

 

         O teto fundo de oxigênio, de ar,

Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;

Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,

Enleva-se a quimera azul de transmigrar.

 

         Por baixo, que portões! Que arruamentos!

Um parafuso cai nas lajes, às escuras:

Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,

E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.  

 

   Li todo o poema, que se intitulava "O sentimento dum ocidental" e me dei conta de que era uma enunciação a respeito de um caminhar noturno pelas ruas de Lisboa. Esse movimento pela cidade tem início quando surge a noite, na parte denominada 'Ave-Maria', em cujos primeiros versos são convocados de pronto sentimentos ambíguos, como a "melancolia" e "um desejo absurdo de sofrer" (primeira estrofe), entrecruzamento de emoções que, como observou Óscar Lopes, antecipam o unanimismo de Whitman. Vou reproduzir a estrofe.

 

         Nas nossas ruas, ao anoitecer,

Há tal soturnidade, há tal melancolia,

que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia

Despertam-me um desejo absurdo de sofrer. 

 

   Essa circunvagação citadina termina justamente quando a noite se despede e o dia começa a dar sinais de que vai chegar, ocasião em que o sujeito do poema  enuncia a presença de um céu azulado, ("teto fundo de oxigênio, de ar") -- e não mais negro e impenetrável, como sói acontecer em noites sem lua. Como também quando o poeta acusa o cansaço dos astros:  "astros com olheiras"; astros que, humanizados pelo poeta, apenas projetam "lágrimas de luz" e não mais luzes intensas e renovadas, o que ocorre na noite plena, e sem lua, necessariamente.

   Faço essas observações apenas para ressaltar que efetivamente "O sentimento dum ocidental” tenta capturar  os movimentos de uma cidade, entre o entardescer e amanhecer, testemunhados por um transeunte que arregimentou todos os seus sentidos na tarefa de registrar suas impressões. (David Mourão Ferreira vê nesse poema também "uma alucinante despedida de amor"[1] entre outras coisas). Talvez seja o registro de um caminhar de alguém em busca de si mesmo, ou, mais apropriadamente, um périplo citadino de um observador com uma filmadora poética em funcionamento, tudo capturando e processando.  Abstenho-me de fechar a questão, embora implicitamente prefira a última alternativa.

 

   Depois daquele encontro com Cesário Verde na USP, pois evidentemente é ele o autor do poema mencionado, passei a examinar nos dias seguintes seus versos.

   Algum tempo depois parti para Portugal, por alguns meses, com apoio do CNPq e da Fundação Calouste Gulbenkian, para resgatar a fortuna crítica do poeta e desenvolver minha tese sobre sua obra. (Efetivamente, ao depor os livros de Almada sobre o banco daquele jardim, depunha também o projeto de defender uma tese sobre ele, embora jamais tenha deixado de interessar-me por suas realizações literárias e extraliterárias, Almada que foi o mais persistentemente órfico dentre todos.)

   De regresso de Portugal, trazia na bagagem um material farto e algumas convicções, uma delas era fundamental: estava muito presente na fortuna crítica de Cesário Verde, de maneira geral, uma certa miopia acerca de sua obra poética. Em parte porque ao fixarem seu nome entre os realistas, obscureciam sua veia intensamente imaginativa e sua aguçada sensibilidade disposta ao corpo-a-corpo com o instante, bem como o equilíbrio sonoro de seus versos.  Suas investidas sistemáticas contra o real, o que era um fato incontestável, acobertavam de essa sensibilidade da qual se servia para colher, registrar e organizar suas impressões. Impressões estas que eram enunciadas de um modo muito particular. Cesário Verde lera Baudelaire, é fato, como lera Junqueiro, João de Deus, Victor Hugo e outros. Concordo que o relacionamento intertextual entre a poesia cesarina e a do francês é mais óbvia, mais frequente e mais determinante do que a que entreteve com outros poetas. O diálogo intertextual entre as duas poéticas é notório. Mas é também fato que o verso cesarino organizava-se quase sempre não como uma experiência revisitada no gabinete de poeta, como em Baudelaire, mas como uma experiência que estaria acontecendo no agora poético (ao menos na maioria de seus poemas urbanos), no espaço da experiência imediata do tempo poético (Bachelard). Há uma lógica estrutural na poesia de Cesário Verde que é diversa da de Baudelaire, e é justamente em virtude dessa lógica estrutural que a poesia de Cesário Verde se liberta da força do predecessor francês (para usar uma expressão cunhada por  Harold Bloom) e se individualiza. Mas não apenas por isso. Seu racionalismo incomum, contrariamente ao que pensam as almas líricas foi um antídoto que o impediu de reproduzir os impasses místico-demoníacos de Baudelaire, e seguir caminho próprio. Razão e sensibilidade em uma combinação raríssima na língua portuguesa é o que logrou realizar Cesário Verde.

   Com efeito, é preciso que se registre que a designação de poesia realista para aquela que se serve com mais evidência do cotidiano, do real, enfim, é uma expressão infeliz, pois há nela uma contradição insuperável. Afinal, de que é feito um poema lírico? Qual sua substância? Certamente a enunciação poética não decorre de uma escolha realizada a partir de um projeto alicerçado sobre a neutralidade e a isenção, ou mesmo construído   a partir de escolhas integralmente patrocinadas pela busca da objetividade, embora tudo isso possa e deva estar presente na grande poesia. Nesse sentido, e isso tem muito a ver com Cesário, a impressão tem papel muito mais determinante em sua poesia que a neutra observação. E a impressão é sempre subjetiva. Nesse embate entre forças quase antagônicas a poética cesarina se estrutura e nasce, sem anular o espírito do observador, e sem inibir a sensibilidade abalada pela impressão imediata.

   Indago, por exemplo, retoricamente, como o Eça de Queirós de A cidade e as serras dialoga com o autor da famosa conferência que teve lugar certo dia no Casino Lisbonense? Será em última instância Eça de Queirós um autor  realista,  naquele sentido em que buscou fixar o programa realista em sua conferência? Não. Em Eça a realidade concorre com a fantasia; a objetividade se inclina na direção da impressão fugaz, plástica; e a busca pela colheita nos campos do mundo real se enche de contrastes estimulados por um espírito inclinado sempre para a consecução do belo.

   Retomemos o fio narrativo deste prefácio.

 

   Tomada a decisão de produzir uma tese de doutoramento sobre a obra de Cesário Verde, enfrentei, ao longo do trabalho, algumas experiências desconfortáveis e inesperadas. Diversos ‘intelectuais’ com os quais  animadamente expunha meu projeto de tese, olhavam-me com uma estranha expressão de desdém, quando não de escárnio, como se dissessem em tom de pergunta: “por que não se dedica a alguma coisa que realmente valha a pena?”

   Cesário Verde era desconhecido no Brasil, e os poucos que haviam travado conhecimento com a sua obra não reconheceram a sua importância como o grande precursor do modernismo português. ‘É um tipo realista, ainda vivendo certa crise romântica, e que não aderiu ao parnasianismo, nem se opôs a ele’, diziam, como também diziam que Cesário fora um intérprete de Baudelaire mais amaneirado, mais suave (o que parece falta de perspicácia, mesmo porque  sua poesia não se restringiu a isso; trilhou caminho próprio), nada mais  --  e não o distinguiam de seus pares epocais, como Guilherme d’Azevedo, Crespo e Gomes Leal (omiti propositadamente o nome de Antero de Quental, pois é o mais distante de Cesário dentre todos os autores mencionados).

   Não, não há o menor demérito em ser comparado a esses grandes nomes da nossa literatura, mas enfiá-los todos apressadamente em um saco de serrapilheira não me parecia a medida mais adequada para qualquer pretendente a scholar.  Era preciso investigar mais, buscar uma atitude de isenção. Compreender as diferenças. Afiar os instrumentos de análise, evitar as conclusões sem fundamento. Foi, creio eu, o que fiz ou tentei fazer, quando escolhi a poesia cesarina como objeto de doutoramento.

   De lá para cá, tudo parece ter mudado e não seria exato afirmar que essa mudança se deveu a minha tese, mas a inúmeros fatores combinados (inclusive a existência da minha tese); lentamente, com o passar dos últimos anos, os literatos, críticos e professores, no Brasil e em Portugal, passavam a levar em consideração, ao se depararem com os versos cesarinos, cada vez mais o fato hoje tão conhecido que fora a importância e o relevo que os modernistas emprestavam ao legado desse predecessor; a reconhecer que não era absolutamente por acaso que um nome como o de Fernando Pessoa o considerasse um mestre. “Havia então alguma coisa naqueles versos, de que não se tinham dado conta”, concluíram.

   Rever preconceitos é sempre melhor do que fingir que não existem e é sempre uma medida que contribui em muito para o sucesso de uma empreitada intelectual. Penso que nesse estágio principiou uma certa revisão crítica, levada a cabo pelas hostes acadêmicas, acerca da obra poética de Cesário Verde, bem como sobre o seu posicionamento na literatura portuguesa.

   Acompanhando a atitude revisionista, surgiu, no espaço da crítica literária, em suma, a necessidade de buscar um ângulo de visão mais adequado e preciso para compreender e avaliar melhor o dinamismo da história literária portuguesa no denso e cambiante  período que vai de 1860 a 1890, e que abarca os anos em que Cesário Verde viveu. Esse esforço favoreceu o surgimento de um olhar mais agudo e percuciente sobre o posicionamento de Cesário Verde na historiografia literária de Portugal e estimulou o surgimento de uma compreensão mais refinada e precisa de seu verso. Todos certamente --  críticos, leitores, amantes da boa literatura -- ganhamos com isso, e mais ainda a obra desse grande poeta, que desperta o interesse de um número cada vez maior de pessoas que apreciam a poesia, ampliando assim de maneira considerável a recepção de seu trabalho, nos dias de hoje.

  

  

                                                                                   Ricardo Daunt 

 

  [1]Cf. FERREIRA, David Mourão -- "Saudades de Lisboa". Em sua: Tópicos de crítica e de história literária. Lisboa, União Gráfica, 1969, p. 85-107
 

 

© Maria Estela Guedes
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