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Há décadas, mais
precisamente nos anos 80, conjuminando pelos jardins da Universidade de
São Paulo meus planos de doutoramento, abri o exemplar raquítico de um
livro de poemas que acabara de comprar.
Abri ao acaso, e o
primeiro verso que li foi:
"Um parafuso cai nas lajes, às escuras"
Aquilo doeu-me
maravilhosamente os tímpanos; àquele tempo já me afeiçoara aos
movimentos sutis que povoam o corpo vivo dos poemas, não fosse eu
próprio um poeta, já naquele tempo de longa data. E fez me sentar no
banco mais próximo e erguer a vista fingindo para mim mesmo que o fazia
para ver se ia chover ou fazer sol, quando na verdade pressentia que
alguma coisa muito especial estava acontecendo em minha vida.
Trazia alguns outros
livros junto ao corpo. A maioria de Almada- Negreiros, cuja obra eu
inscrevera em meu espírito como candidata predileta a objeto de minha
tese de doutoramento. Depus os livros ao lado do banco.
Realmente fazia sol,
embora ali, naquele banco, a sombra de uma amendoeira se projetasse
sobre minha cabeça, impedindo que seus raios me alcançassem em cheio.
Retomei o livrinho
que comprara, relendo o verso e erguendo os olhos até a primeira quadra
do trecho que o poeta denominou 'Horas mortas' e que corresponde -- mais
tarde me dei conta -- à última das 4 partes de "O sentimento dum
ocidental". Reli a primeira e a segunda quadra dessa parte:
Horas Mortas
O teto fundo de oxigênio, de ar,
Estende-se ao comprido, ao
meio das trapeiras;
Vêm lágrimas de luz dos
astros com olheiras,
Enleva-se a quimera azul de
transmigrar.
Por baixo, que portões! Que arruamentos!
Um parafuso cai nas lajes,
às escuras:
Colocam-se taipais, rangem
as fechaduras,
E os olhos dum caleche
espantam-me, sangrentos.
Li todo o poema, que
se intitulava "O sentimento dum ocidental" e me dei conta de que era uma
enunciação a respeito de um caminhar noturno pelas ruas de Lisboa. Esse
movimento pela cidade tem início quando surge a noite, na parte
denominada 'Ave-Maria', em cujos primeiros versos são convocados de
pronto sentimentos ambíguos, como a "melancolia" e "um desejo absurdo de
sofrer" (primeira estrofe), entrecruzamento de emoções que, como
observou Óscar Lopes, antecipam o unanimismo de Whitman. Vou reproduzir
a estrofe.
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal
melancolia,
que as sombras, o bulício, o
Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo
absurdo de sofrer.
Essa circunvagação
citadina termina justamente quando a noite se despede e o dia começa a
dar sinais de que vai chegar, ocasião em que o sujeito do poema
enuncia a presença de um céu azulado, ("teto fundo de oxigênio,
de ar") -- e não mais negro e impenetrável, como sói acontecer em noites
sem lua. Como também quando o poeta acusa o cansaço dos astros:
"astros com olheiras"; astros que, humanizados pelo poeta, apenas
projetam "lágrimas de luz" e não mais luzes intensas e renovadas, o que
ocorre na noite plena, e sem lua, necessariamente.
Faço essas
observações apenas para ressaltar que efetivamente "O sentimento dum
ocidental” tenta capturar os
movimentos de uma cidade, entre o entardescer e amanhecer, testemunhados
por um transeunte que arregimentou todos os seus sentidos na tarefa de
registrar suas impressões. (David Mourão Ferreira vê nesse poema também
"uma alucinante despedida de amor"[1] entre outras coisas). Talvez seja
o registro de um caminhar de alguém em busca de si mesmo, ou, mais
apropriadamente, um périplo citadino de um observador com uma
filmadora poética em
funcionamento, tudo capturando e processando.
Abstenho-me de fechar a questão, embora implicitamente prefira a
última alternativa.
Depois daquele
encontro com Cesário Verde na USP, pois evidentemente é ele o autor do
poema mencionado, passei a examinar nos dias seguintes seus versos.
Algum tempo depois
parti para Portugal, por alguns meses, com apoio do CNPq e da Fundação
Calouste Gulbenkian, para resgatar a fortuna crítica do poeta e
desenvolver minha tese sobre sua obra. (Efetivamente, ao depor os livros
de Almada sobre o banco daquele jardim, depunha também o projeto de
defender uma tese sobre ele, embora jamais tenha deixado de
interessar-me por suas realizações literárias e extraliterárias, Almada
que foi o mais persistentemente órfico dentre todos.)
De regresso de
Portugal, trazia na bagagem um material farto e algumas convicções, uma
delas era fundamental: estava muito presente na fortuna crítica de
Cesário Verde, de maneira geral, uma certa miopia acerca de sua obra
poética. Em parte porque ao fixarem seu nome entre os realistas,
obscureciam sua veia intensamente imaginativa e sua aguçada
sensibilidade disposta ao corpo-a-corpo com o instante, bem como o
equilíbrio sonoro de seus versos. Suas
investidas sistemáticas contra
o real, o que era um fato incontestável, acobertavam de essa
sensibilidade da qual se servia para colher, registrar e organizar suas
impressões. Impressões estas que eram enunciadas de um modo muito
particular. Cesário Verde lera Baudelaire, é fato, como lera Junqueiro,
João de Deus, Victor Hugo e outros. Concordo que o relacionamento
intertextual entre a poesia cesarina e a do francês é mais óbvia, mais
frequente e mais determinante do que a que entreteve com outros poetas.
O diálogo intertextual entre as duas poéticas é notório. Mas é também
fato que o verso cesarino organizava-se quase sempre não como uma
experiência revisitada no gabinete de poeta, como em Baudelaire, mas
como uma experiência que estaria acontecendo no agora poético (ao
menos na maioria de seus poemas urbanos), no espaço da experiência
imediata do tempo poético (Bachelard). Há uma lógica estrutural na
poesia de Cesário Verde que é diversa da de Baudelaire, e é justamente
em virtude dessa lógica estrutural que a poesia de Cesário Verde se
liberta da força do predecessor francês (para usar uma expressão cunhada
por Harold Bloom) e se
individualiza. Mas não apenas por isso. Seu racionalismo incomum,
contrariamente ao que pensam as
almas líricas foi um antídoto que o impediu de reproduzir os
impasses místico-demoníacos de Baudelaire, e seguir caminho próprio.
Razão e sensibilidade em uma combinação raríssima na língua portuguesa é
o que logrou realizar Cesário Verde.
Com efeito, é preciso
que se registre que a designação de poesia realista para aquela que se
serve com mais evidência do cotidiano, do real, enfim, é uma expressão
infeliz, pois há nela uma contradição insuperável. Afinal, de que é
feito um poema lírico? Qual sua substância? Certamente a enunciação
poética não decorre de uma escolha realizada a partir de um projeto
alicerçado sobre a neutralidade e a isenção, ou mesmo construído
a partir de escolhas integralmente patrocinadas pela busca da
objetividade, embora tudo isso possa e deva estar presente na grande
poesia. Nesse sentido, e isso tem muito a ver com Cesário, a impressão
tem papel muito mais determinante em sua poesia que a neutra observação.
E a impressão é sempre subjetiva. Nesse embate entre forças quase
antagônicas a poética cesarina se estrutura e nasce, sem anular o
espírito do observador, e sem inibir a sensibilidade abalada pela
impressão imediata.
Indago, por exemplo,
retoricamente, como o Eça de Queirós de
A cidade e as serras dialoga com o autor da famosa conferência que
teve lugar certo dia no Casino Lisbonense? Será em última instância Eça
de Queirós um autor realista,
naquele sentido em que buscou fixar o programa realista em sua
conferência? Não. Em Eça a realidade concorre com a fantasia; a
objetividade se inclina na direção da impressão fugaz, plástica; e a
busca pela colheita nos campos do mundo real se enche de contrastes
estimulados por um espírito inclinado sempre para a consecução do belo.
Retomemos o fio
narrativo deste prefácio.
Tomada a decisão de
produzir uma tese de doutoramento sobre a obra de Cesário Verde,
enfrentei, ao longo do trabalho, algumas experiências desconfortáveis e
inesperadas. Diversos ‘intelectuais’ com os quais
animadamente expunha meu projeto
de tese, olhavam-me com uma estranha expressão de desdém, quando não de
escárnio, como se dissessem em tom de pergunta: “por que não se dedica a
alguma coisa que realmente valha a pena?”
Cesário Verde era
desconhecido no Brasil, e os poucos que haviam travado conhecimento com
a sua obra não reconheceram a sua importância como o grande precursor do
modernismo português. ‘É um tipo realista, ainda vivendo certa crise
romântica, e que não aderiu ao parnasianismo, nem se opôs a ele’,
diziam, como também diziam que Cesário fora um intérprete de Baudelaire
mais amaneirado, mais suave (o que parece falta de perspicácia, mesmo
porque sua poesia não se
restringiu a isso; trilhou caminho próprio), nada mais
-- e não o distinguiam de
seus pares epocais, como Guilherme d’Azevedo, Crespo e Gomes Leal (omiti
propositadamente o nome de Antero de Quental, pois é o mais distante de
Cesário dentre todos os autores mencionados).
Não, não há o menor
demérito em ser comparado a esses grandes nomes da nossa literatura, mas
enfiá-los todos apressadamente em um saco de serrapilheira não me
parecia a medida mais adequada para qualquer pretendente a
scholar.
Era preciso investigar mais,
buscar uma atitude de isenção. Compreender as diferenças. Afiar os
instrumentos de análise, evitar as conclusões sem fundamento. Foi, creio
eu, o que fiz ou tentei fazer, quando escolhi a poesia cesarina como
objeto de doutoramento.
De lá para cá, tudo
parece ter mudado e não seria exato afirmar que essa mudança se deveu a
minha tese, mas a inúmeros fatores combinados (inclusive a existência da
minha tese); lentamente, com o passar dos últimos anos, os literatos,
críticos e professores, no Brasil e em Portugal, passavam a levar em
consideração, ao se depararem com os versos cesarinos, cada vez mais o
fato hoje tão conhecido que fora a importância e o relevo que os
modernistas emprestavam ao legado desse predecessor; a reconhecer que
não era absolutamente por acaso que um nome como o de Fernando Pessoa o
considerasse um mestre. “Havia então alguma coisa naqueles versos, de
que não se tinham dado conta”, concluíram.
Rever preconceitos é
sempre melhor do que fingir que não existem e é sempre uma medida que
contribui em muito para o sucesso de uma empreitada intelectual. Penso
que nesse estágio principiou uma certa revisão crítica, levada a cabo
pelas hostes acadêmicas, acerca da obra poética de Cesário Verde, bem
como sobre o seu posicionamento na literatura portuguesa.
Acompanhando a
atitude revisionista, surgiu, no espaço da crítica literária, em suma, a
necessidade de buscar um ângulo de visão mais adequado e preciso para
compreender e avaliar melhor o dinamismo da história literária
portuguesa no denso e cambiante período
que vai de 1860 a 1890, e que abarca os anos em que Cesário Verde viveu.
Esse esforço favoreceu o surgimento de um olhar mais agudo e percuciente
sobre o posicionamento de Cesário Verde na historiografia literária de
Portugal e estimulou o surgimento de uma compreensão mais refinada e
precisa de seu verso. Todos certamente --
críticos, leitores, amantes da boa literatura -- ganhamos com
isso, e mais ainda a obra desse grande poeta, que desperta o interesse
de um número cada vez maior de pessoas que apreciam a poesia, ampliando
assim de maneira considerável a recepção de seu trabalho, nos dias de
hoje.
Ricardo Daunt
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