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Antes da reapropriação do tema da consagração do solo, no fim do
primeiro parágrafo, o pequeno discurso começa reevocando o nascimento do
país, dando-lhe a conotação de “conceived
in Liberty”. E aqui já se insinuam as magnificências do texto.
To conceive
tem o mesmo campo semântico de
conceber em português: gerar seres e imaginar coisas. Lincoln faz
então uso simultâneo dos dois sentidos, ao cercar e modular o verbo com
reforços semânticos. Ao lado de um conceito abstrato como
liberdade,
conceber tende a ser imaginar;
porém o verbo é antecedido, no mesmo parágrafo, pela palavra
father, que faz pensar em
gestação, e seguido, na frase seguinte, pela expressão “all men are created
equal”, em que a polissemia se reforça e se evidencia: “criados iguais”,
ou seja, “concebidos iguais”.
“Conceived in Liberty” se
torna, enfim, concebida sob o
conceito de liberdade e
concebida no ventre da liberdade.
Do nascimento do país o texto passa, então,
para o momento histórico presente, da guerra civil entre Norte e Sul, e
daí para o seu futuro, unificando os três tempos sob os princípios
iluministas da liberdade e da igualdade e, portanto, da democracia –
razão da luta contra a escravidão.
3 (Interregno discursivo: causas e razões da guerra)
O compreensível cinismo contemporâneo tem dificuldade de aceitar e de
compreender, e de aceitar porque de compreender, que Estados não agem
apenas por interesses, mas também por valores. Apesar do que reza certo
marxismo vulgar, Estados não são meros reféns de empresas, muito menos
são uma empresa. De fato, empresas não têm valores, a não ser os
patrimoniais, portanto, têm apenas interesses, no sentido financeiro.
Estados, no entanto, por não serem empresas, e por representarem, em
alguma medida (com exceção dos governos totalitários), suas sociedades,
incorporam, também em alguma medida, os valores dessas sociedades – para
o bem e para o mal. Os navegadores portugueses do século XVI não estavam
apenas atrás de ouro, mas também de almas (para converter ao
catolicismo, no contexto da recente perda de milhões de seguidores para
o protestantismo): a fé os impulsionava tanto quanto a ganância. Lincoln
fora eleito, em 1861, presidente de um país que se estendia do Canadá ao
México e ao Caribe, e do Atlântico ao Pacífico, com 33 Estados – além de
um vasto Território Central (todo o Meio-Oeste), ainda não incorporado.
Não pretendia, então, terminar como presidente de um país 50% menor
(eram 15 os Estados escravistas do sul), numa estreita faixa entre os
Estados Confederados e o Canadá. Mas também não desejava que os novos
Estados, a serem criados no Território Central, fossem escravocratas. A
guerra civil americana foi, entre inúmeras outras coisas, além de uma
luta pela preservação (ou pela abolição) da escravidão no Sul, também
uma luta pela natureza político-econômica dos novos Estados. Ou seja: ou
eles ampliariam o poder e a influência da economia e da política do
Norte não-escravista, ou do Sul escravocrata (entre os novos Estados
criados no Território Central depois da guerra civil estão Kansas,
Oklahoma, Novo México, Arizona, Nevada etc.).
Havia muitos e poderosos interesses envolvidos. Mas tais interesses, por
muitos e poderosos que fossem, não monopolizavam os motivos da guerra.
Ainda havia espaço para alguns – e não menos poderosos – valores. Na
verdade, valores e interesses se confundiam, eram inseparáveis. Como a
escravidão no Sul criava a possibilidade de ela se estender ao
Território Central, os EUA corriam o risco de ver o escravismo se
fortalecer, em vez de se enfraquecer, e se expandir, em vez de diminuir,
apontando para a possibilidade de um país inteiramente escravocrata.
Como era, aliás, o Brasil da época, uma conhecida referência tanto para
sulistas quanto para nortistas norte-americanos. A escravidão no Sul era
um risco e uma ameaça aos interesses mas também aos valores do Norte.
Isso não era novo, mas chegara a um ponto de ruptura. Apenas a abolição
no Sul, a completa extinção da escravidão em todo o território
norte-americano era agora aceitável. E apenas a guerra podia realizá-la.
Podemos então retornar ao discurso de Lincoln em Gettysburg.
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Discurso que se volta, afinal, para o presente mais imediato,
referindo-se ao motivo de estarem ali reunidas as pessoas que o escutam
– e que Lincoln declara ser inútil.
A ocasião era, como referido, a dedicação, a consagração de um campo de
batalha, agora transformado em cemitério de soldados. Lincoln, porém,
afirma que os presentes não podem dedicá-lo, não podem consagrá-lo,
porque já fora consagrado por gente de valor muito superior, os próprios
mortos que ali jazem. Resta somente uma alternativa, que se impõe então
como uma necessidade moral. Lincoln retira o verbo
dedicate da expressão “dedicate
this ground”, “consagrar este solo”, e passa a usá-lo,
polissemicamente, no sentido de dedicar-se a algo. Se os vivos ali presentes são impotentes e
ociosos para consagrar ou dedicar o solo aos mortos que a ele dedicaram
suas vidas, podem e, portanto, devem,
consagrar a si mesmos à dedicação
da causa pela qual morreram.
Ao mesmo tempo em que modula assim o sentido de
consagrar, de
dedicar, Lincoln inverte o
movimento temporal, indo do presente imediato, a cerimônia de dedicação,
para o presente mediato, ou seja, a “tarefa que permanece a nossa
frente”. Essa tarefa é, na verdade, múltipla: devotar-se à mesma causa a
que os mortos devotaram suas vidas; garantir que sua morte não tenha
sido em vão; fazer com que a liberdade renasça e que a democracia não
morra.
Se o jogo semântico entre a morte dos mortos, o renascer da liberdade e
o não-perecer (literalmente, “not
perish”) da democracia é evidente, nem por isso é menos poderoso.
Primeiro, porque impregna de denotação a metáfora, fortalecendo o
sentido metafórico (a literal morte dos mortos
versus o renascimento
metafórico da liberdade e da democracia). Segundo, porque assim impregna
com o que é concreto, os mortos, o que era abstrato, a liberdade, e o
que era ao mesmo tempo concreto e abstrato, a democracia.
A
própria democracia não é, porém, jamais nomeada. Ela aparece, e só ela,
por antonomásia
– recurso cujo nome é feio, mas cujo efeito,
nas mãos certas, é ao mesmo tempo belo, eficiente e emocionante.
Trata-se de um caso particular de renomeação, ou de metonímia, em que o
nome da coisa é substituído por aquilo que a caracteriza. Lincoln
substitui a palavra democracia por sua mais perfeita, sucinta e poderosa definição
– que se tornaria, a partir de então,
uma das mais conhecidas: “o governo do povo, pelo povo, para o
povo”.
Mas isso ainda não é o fim. Pois Lincoln promove um último salto, agora
geográfico, depois de todos os saltos temporais, e saindo do campo de
Gettysburg, do estado da Pensilvânia e dos EUA, envolve todo o planeta:
Earth é a última palavra do
texto. Numa última migração-evolução semântica, o
campo de
campo-de-batalha (batle-field)
que se tornara o solo (ground)
do novo cemitério, torna-se afinal
a terra, mas no sentido do planeta – ou seja, em mais uma metáfora,
a humanidade inteira.
O que começara com uma evocação do nascimento americano da liberdade
culmina com uma afirmação do caráter universalista da democracia. Nada
mais iluminista. Nada mais moderno. Nada mais oportuno.
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Há, portanto, inúmeros motivos para retraduzir o “Discurso de
Gettysburg”: mesmo porque, apesar de toda sua notoriedade e do grande
número de traduções, ele não tem em português, até onde pude constatar,
uma tradução que contemple satisfatoriamente suas sutilezas e seus
rigores. Mas talvez o mais importante: como toda grande obra de arte,
ele transcende os gêneros a que os talentos menores devem, ou se
submeter, ou ver-se submetidos, e se revela uma verdadeira “lição de
coisas” para a literatura de qualquer tempo e lugar (particularmente
para a desta época).
Lição de prosa, na complexa mas clara articulação formal e semântica de
suas frases precisas, no uso de palavras incomumente comuns para esse
tipo de texto (principalmente em sua época) e na igualmente incomum
simplicidade gramatical (sem inversões da ordem natural e outras
idiossincrasias).
Lição de poesia, no extremo rigor (como num poema que merece o nome,
nenhuma palavra pode ser substituída sem que o conjunto se comprometa),
no controle do ritmo (das frases e dos parágrafos, que são crescentes) e
no uso de figuras como a aliteração (“Four
score and seven years ago”;
new nation; engaged in a great;
poor power) e a
assonância (como na série
engaged-great-dedicate-gave). Porém a figura poética dominante é,
como referido, a polissemia.
Lição de retórica, na precisão e na clareza, mas também no uso
parcimonioso e poderoso da anáfora (repetição
em início de frase). A primeira anáfora
ocorre no ponto de inflexão do texto, que ela marca e dramatiza: “Nós
não podemos dedicar, nós não podemos consagrar, nós não podemos
santificar este solo”. A segunda anáfora marca a reapropriação
definitiva do verbo dedicar:
“Cabe a nós os vivos, então, sermos dedicados [...]. Cabe a nós, então,
sermos dedicados [...]”. A terceira e última anáfora, uma quádrupla
reiteração em “que” (“that”),
é a mais famosa da história moderna,
culminando e concluindo o pequeno grande discurso.
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DEDICATORY REMARK (GETTYSBURG ADDRESS)
Four score[1] and seven years ago our fathers brought forth on this continent a new
nation, conceived in Liberty, and dedicated to the proposition that
all men are created equal.
Now we are engaged in a great civil war, testing whether that nation, or
any nation, so conceived and so dedicated, can long endure. We are met
on a great battle-field of that war. We have come to dedicate a portion
of that field, as a final resting place for those who here gave their
lives that that
nation might live. It is altogether fitting and proper that we should do
this.
But, in a larger sense, we can not dedicate — we can not consecrate — we
can not hallow — this ground. The brave men, living and dead, who
struggled here, have consecrated it, far above our poor power to add or
detract. The world will little note, nor long remember what we say here,
but it can never forget what they did here. It is for us the living,
rather, to be dedicated here to the unfinished work which they who
fought here have thus far so nobly advanced. It is rather for us to be
here dedicated to the great task remaining before us — that from these
honored dead we take increased devotion to that cause for which they
gave the last full measure of devotion — that we here highly resolve
that these dead shall not have died in vain — that this nation, under
God, shall have a new birth of freedom — and that government of the
people, by the people, for the people, shall not perish from the earth.
COMENTÁRIO DA DEDICAÇÃO (DISCURSO DE GETTYSBURG)
(trad. L.D.)
Oitenta e sete anos atrás, nossos pais criaram neste continente uma nova
nação, concebida em liberdade, e consagrada ao princípio de que todos os
homens nascem iguais.
Agora estamos envolvidos em uma grande guerra civil, pondo à prova se
esta nação, ou qualquer nação assim concebida e assim consagrada, pode
perdurar. Aqui estamos em um grande campo de batalha dessa guerra.
Viemos dedicar parte desse campo como último descanso dos que deram a
vida para que a nação possa viver. É inteiramente justo e correto
fazermos isto.
Mas, num sentido mais amplo, nós não podemos dedicar, nós não podemos
consagrar, nós não podemos santificar este solo. Os homens corajosos,
vivos e mortos, que aqui lutaram, já o consagraram muito além do que
nosso pobre poder pode aumentar ou diminuir. O mundo pouco notará e por
pouco tempo lembrará o que aqui dissemos, mas não poderá jamais esquecer
o que eles aqui fizeram. Cabe a nós os vivos, então, sermos dedicados ao
trabalho inacabado que os que aqui lutaram levaram tão longe, e tão
nobremente. Cabe a nós, então, sermos dedicados à grande tarefa que
permanece à nossa frente – que dessas mortes honradas tiremos uma
devoção crescente à causa pela qual eles deram a medida cabal de sua
devoção; que decidamos aqui solenemente não terem os mortos morrido em
vão; que esta nação, sob Deus, viva um novo nascimento da liberdade; e
que o governo do povo, pelo povo, para o povo, jamais pereça sobre a
Terra.
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Luis Dolhnikoff (São Paulo, 1961) estudou Medicina e Letras Clássicas na
USP. É autor de Pãnico
(poesia), São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski;
Impressões digitais (poesia, 1990);
Microcosmo (poesia, 1991), Os
homens de ferro (contos, 1992), os três pela editora Olavobrás (São
Paulo), que criou em 1989 com Marcelo Tápia, e de
Lodo (poesia), São Paulo,
Ateliê, 2009, além do livro infantil
A menina que media as palavras (Mirabilia, 2008) e do inédito
As rugosidades do caos
(poesia, 2012). Tem poemas publicados em
Atlas Almanak 88, São Paulo,
Kraft, 1988, organização Arnaldo Antunes;
Tsé=tsé 7/8 (número especial
com 30 poetas brasileiros contemporâneos), Buenos Aires, outono 2000;
Medusa 10, Curitiba, abr.-mai.
2000; “Moradas provisórias (antologia de poesia brasileira
contemporânea)”, in
Hipnerotomaquia, Cidade do México, Aldus, 2001, organização Josely
V. Baptista; Folhinha, Folha de S. Paulo, 27/07/2002; e nas revistas
Cult 61, SP, out. 2002;
Sibila 3, SP, out. 2002;
18 IV, SP, Centro de Cultura
Judaica, jun.-ago. 2003; Coyote
5, Londrina, outono 2003; Babel
6, Campinas, dez. 2003; Ciência & Cultura 56, SP, Imprensa
Oficial, abri.-jun. 2004;
Ratapallax 11, New York,
spring 2004; Mandorla – New writing from
Américas 8, Illinois, Illinois State University, 2005;
Mnemozine 3 (revista online,
www.cronopios.com.br/mnemozine,
2006), além dos sites
www.sibila.com.br,
www.jornaldepoesia.jor.br,www.germinaliteratura.com.br,
www.bestiario.com.br/maquinadomundo,
www.cronopios.com.br
e
ablogando
(ab-logando.blogspot.com).
Integrou a exposição de poesia visual A Palavra Extrapolada, São Paulo,
SESC Pompeia, ago.-set. 2003, curadoria Inês Raphaelian, e a mostra
Desenhos, de Francisco Faria, ao lado de Josely V. Baptista, Curitiba,
Museu Oscar Niemeyer, mar. 2005 / SP, Instituto Tomie Ohtake, set.-dez.
2005. Traduziu Arquíloco (Fragmentos,
São Paulo, Expressão, 1987), Joyce (Poemas,
São Paulo, Olavobrás, 1992, colaboração Marcelo Tápia), Auden, (Mais!,
Folha de S. Paulo,
06/07/2003), Cervantes (Mais!,
Folha de S. Paulo, 14/11/2004,
colaboração Josely V. Baptista), Yeats
(Etc, Curitiba,
jan. 2005), William Carlos Williams (Sibila,
www.sibila.com.br,
2011) e Ginsberg (Uivo, São
Paulo, Globo, 2012). Entre 1991 e 1994, coorganizou, ao lado de Haroldo
de Campos, o Bloomsday de São Paulo (homenagem anual a James Joyce).
Como crítico literário, colaborou, a partir de 1997, com os jornais
O Estado de S. Paulo,
A Notícia,
Diário Catarinense,
Gazeta do Povo, Clarín e
Folha de S. Paulo, além das revistas
Sibila e Babel e dos sites Cronópios e
Sibila. Recebeu, em 2005, uma Bolsa Vitae de Artes para desenvolver
estudo crítico sobre a obra de Pedro Xisto. Entre 2003 e 2008, foi
colaborador de política internacional, com destaque para as relações
entre política e religião, da
Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo.
luisdkf@uol.com.br |