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I
Quando jovem frequentava as reuniões de estudos religiosos que eram
realizadas aos sábados à tarde na sede da Congregação Mariana, um
pequeno salão localizado a poucos metros da Casa Paroquial, construção
de sala única onde existia um nicho com a imagem da Virgem Maria, mãe de
Jesus, e ao centro, ladeada por cadeiras, uma mesa de pingue-pongue, que
fazia a alegria dos jovens devotos.
Era uma espécie de “clube do bolinha”.
Embora não fossem impedidas de entrar, as jovens Filhas de Maria, salvo
raras ocasiões, não frequentavam o local. A elas era reservada a “sala
do órgão”, um amplo espaço em forma de meia-lua localizado no pavimento
superior da igreja.
Preparava-me para integrar o “particular” grupo dos Congregados
Marianos, uma associação religiosa constituída por leigos cristãos que
professam a religião católica e distinguem-se pela especial devoção à
Santíssima Virgem Maria. Isso trazia certo orgulho.
Os congregados ocupavam, nas missas, os primeiros lugares nos bancos da
igreja e ostentavam uma fita azul pendurada no peito, tendo na
extremidade uma medalha com a imagem de Maria de um dos lados e do outro
a do Sagrado Coração de Jesus.
Também nas procissões destacavam-se em ala especial. A “ala dos
congregados”.
À frente, ocupando posição central ia a bandeira da Congregação,
conduzida, via de regra, pelo membro mais antigo. Todos olhavam os
jovens marianos com aparente respeito.
As beatas, tricoteiras da vida alheia, frequentadoras de todas as
missas, novenas e procissões, admiravam os meninos vocacionados,
destacadamente os mais velhos e, eram eles, os congregados marianos, os
responsáveis pelo cesto de doações. Restringia-se a uma vara comprida, com um saco encarnado na ponta.
Com esse particular instrumento, disputadíssimo entre os meninos, era
possível recolher doações à distância, chegando com facilidade aos
andares superiores das casas assobradadas. O mesmo era também utilizado
nas missas, com o mesmo fim. Era o máximo.
Ao término o dinheiro era recolhido e a contagem feita, cautelosamente,
pelo sacristão. Autoridade máxima para esses assuntos e irmão do pároco.
Mas, o caminho para a congregação e o direito de ostentar no peito a
medalha mariana era árduo.
As aulas preparatórias, moldadas no mais absoluto rigor cristão de
obediência e respeito, que conduziam ao ingresso no apostolado mariano,
eram ministradas pelos membros mais antigos da congregação e encerradas,
sempre que possível, pelo pároco.
Os encontros começavam com a oração de louvor a Maria, Salve Rainha,
e lembro-me da estranheza que me causavam versos como A vós
suspiramos gemendo e chorando neste vale de lágrimas. Achava
assustador.
A situação agravava-se quando o pároco aparecia de surpresa às aulas e,
com sua autoridade paroquial, abroquelado por sua batina preta, indicava
alguém para recitar, de memória, uma oração escolhida por ele
aleatoriamente. O Credo Apostólico perseguia-me. Sempre o dedo
paroquial apontava em minha direção. Eu, costumeiramente, congelava.
Lembro-me, contudo, que um dos meninos, de olhar perdido e um cabelo
esquisito, não só recitava a oração de memória, mas também a recitava em
latim. Era um espetáculo de horror. Mas todos viam nele um pequeno
gênio. Talvez um futuro sacerdote. O que eu podia fazer? De toda
maneira, sentia-me feliz.
Minha má sorte teve início quando em plena e
pueril inocência perguntei, em uma das aulas preparatórias, como era
possível existirem três pessoas em uma só?, referindo-me, logicamente, à
Santíssima Trindade.
Pelo espanto geral da turma associado ao olhar
penetrante do desajeitado orientador de estudos diante de tão inocente
pergunta, senti, na hora, que havia caído em desgraça.
O colega de classe, de olhar perdido, que
recitava orações em latim, pela primeira vez fitou-me, desmedidamente,
sem, contudo, expressar qualquer reação. Roboticamente, diria hoje.
O irmão orgulhoso do orientador de estudos, que
já recebera a medalha mariana e auxiliava nas tarefas de organização,
garoto com nariz aquilino que usava brilhantina em excesso nos cabelos e
não me considerava boa companhia em virtude de um boato que dizia ser eu
o responsável pelos nós dados nas batinas do pároco que ficavam
penduradas na sacristia, levantou as sobrancelhas ao mesmo tempo que
abria a boca, indignado – como se dissesse - “mas o que é isso?”.
Quanta solidariedade cristã.
Mas, como tudo que está ruim pode piorar, não
tardou para que o pároco fosse devidamente informado sobre o ocorrido e
viesse conversar comigo.
Após poucos e impacientes minutos e diante da
minha visível “incapacidade” de compreender, hoje diria aceitar a
doutrina Trinitária, um dos dogmas centrais da fé cristã, julgou-me
despreparado para receber a medalha mariana e, consequentemente,
integrar o “seleto” grupo dos Congregados Marianos. Deveria, portanto,
preparar-me melhor.
A questão, contudo, é mais complexa.
Manuel Sousa Figueiredo em Deus, o Homem e a
Verdade, faz um levantamento sobre esse assunto, consultando
documentos eclesiásticos.
Assim nos coloca a problemática:
“Deus é a Santíssima Trindade. É, apenas e
exclusivamente, um só. Mas em três pessoas, Pai, Filho e Espírito Santo,
sendo cada uma delas um Deus completo, e não uma sua divisão. É a
‘Trindade consubstancial’ (II Concílio de Constantinopla). Assim, ‘O Pai
é aquilo mesmo que o Filho, o Filho aquilo mesmo que o Pai, o Pai e o
Filho aquilo mesmo que o Espírito Santo, ou seja, um único Deus por
natureza’ (XI Concílio de Toledo).
Mas as Pessoas são distintas entre si. “Aquele
que é o Filho não é o Pai, e Aquele que é o Pai não é o Filho, nem o
Espírito Santo é Aquele que é o Pai ou Filho” (XI Concílio de Trento).
“N’Eles, tudo é um [...]. Por causa desta unidade, o Pai está todo no
Filho e todo no Espírito Santo, o Filho está todo no Pai e no Espírito
Santo, o Espírito Santo está todo no Pai e todo no Filho” (Concílio de
Florença).
“O Mistério da Santíssima Trindade é o mistério
central da fé e da vida cristã. Só Deus pode dar-nos o seu conhecimento,
revelando-se como Pai, Filho e Espírito Santo” (Catecismo da Igreja
Católica). (Figueiredo, s.d, p.11)
De fato, tal mistério permanecerá, por ser um
mistério, inacessível a todos os mortais. Em que isso nos ajuda?
II
Um dos maiores e discutíveis méritos das
religiões é o de transformar questões de extrema complexidade em lugares
comuns.
No geral, os religiosos atribuem a incapacidade
de compreensão daquilo que acreditam terem recebido por “revelação” a um
despreparo para a fé. Os milagres são bons exemplos.
O constantemente citado David Hume - e por que
não citá-lo novamente - em sua Investigação acerca do entendimento
humano diz ser o milagre “uma violação das leis da natureza”. (Hume,
s.d, p.140)
De fato, só podemos atribuir um fato como
milagroso se este ocorrer fora do curso normal da natureza. Mas isto,
parece-me, ser mais complexo do que o próprio milagre, uma vez que nesta
fórmula poderíamos incluir tudo aquilo que não sabemos explicar e,
ainda, abriríamos um precedente indesejável.
Se um homem de avançada idade submete-se a uma
delicada cirurgia, de grande risco, e sai ileso, é obra de Deus. Foi um
milagre. Contudo, se uma criança vai para a mesa cirúrgica operar um
apêndice e morre foi o destino. É assim.
Contudo, quando inquiridos sobre essas
ocorrências, crentes de diversas crenças apelam para a mediocridade
intelectual: “Então, explique isso?”.
Ora, esse tipo de indagação, natural em mentes
entorpecidas, é inaceitável. Não se ter uma explicação racional para uma
determinada ocorrência não é o mesmo que dizer que tal ocorrência esteja
fora do curso normal da natureza e, some-se a isso, não termos uma
explicação racional para um determinado fato não significa, em tempo
algum, que nunca teremos uma explicação racional que o explique.
Por que Deus faria milagres? Como prova
inconteste de seu poder?
Ao afogar toda a humanidade, crianças inocentes,
velhos indefesos, homens e mulheres, deixando meia dúzia de escolhidos
navegando sem destino pela Terra já não teria demonstrado
suficientemente seu incalculável poder? Será necessário ainda mais?
A reação daqueles que creem, quando contrariados
é sempre escapadiça: acredito pela fé.
Contudo, quanta fé é preciso para acreditarmos
e, mais que isso, aceitarmos o fato que Deus falou pela boca de uma
jumenta vidente a Balaão? Convenhamos, a qualquer tempo, em qualquer
contexto, isso seria um espetáculo de horror.
“Acreditar pela fé” não passa de um eufemismo
para dizer que embora não tenhamos a menor compreensão, a menor
evidência sobre o que estamos afirmando, aceitamos o fato como verdade.
Nada mais.
Mas, há na expressão algo de perverso à medida
que funciona como uma blindagem contra todo e qualquer argumento
contrário.
Consagra, ou pelo menos pretende consagrar, uma
determinada crença particular em uma “verdade” universal, cujo acesso só
pode se dar pela submissa aceitação, nunca pela razão. Daí não nos
causar o menor espanto um menino nascer de uma jovem virgem;
mortos serem ressuscitados e a relação abusiva, diga-se, não tem fim.
Os religiosos pós-diluvianos de final de tarde
dizem repetidamente, como um mantra, que não podemos entender os
desígnios de Deus - outra maneira de dizer que não têm a menor ideia
sobre aquilo em que acreditam – e falam.
Choca-me o fato de pessoas honradas, cultas e
bem intencionadas, afirmarem que Deus, ao mandar seu único filho como
Salvador da Humanidade, permitiu que Ele fosse chicoteado, humilhado,
morto por crucificação e no final, tais pessoas veem nisso um ato de
amor. Mas, no mundo real, devemos considerar – pelo menos considerar - a
imoralidade na aceitação de que alguém pague por nossos erros. Numa
palavra: abominável.
Convenhamos, até para a insanidade deve haver
limites.
III
Muitos religiosos arvoram-se em citações sobre
descobertas arqueológicas que confirmariam a veracidade dos textos
“revelados”. “A ciência comprova a fé”. Contudo, por pura desinformação,
desconsideram que a crença não se fundamenta naquilo que podemos
comprovar. Aquilo que podemos comprovar não se chama crença. Chama-se
conhecimento. Portanto, não confundamos “alhos com bugalhos”.
Imaginemos, apenas como exercício para reflexão,
se escavações arqueológicas chegassem, por exemplo, à certidão de
nascimento de Jesus. Pois bem. O que traria tal descoberta?
A comprovação objetiva de ter havido um Jesus,
filho da jovem Maria, a virgem, e José, o carpinteiro. Todavia,
em nada mudaria àquilo que importa a fé. Inclusive, grande parte dos
pesquisadores concordam com a existência de Jesus. E daí?
A comprovação de ter existido um Jesus
histórico, não fortalece, nem comprova, em tempo algum, que Jesus foi o
Cristo, o Messias, o próprio Deus encarnado. Esta é a grande questão.
Consideremos, a crença, como já o disseram antes
de mim, liga-se ao desejo de como as coisas deveriam ser. O
conhecimento, diferentemente, liga-se ao esforço de explicar
como as coisas são. Isso, inclusive, para os desavisados, chama-se
ciência.
Algumas mentes perturbadas tentam
despersonalizar a ciência ao compará-la a uma forma de religião.
Esquecem-se, contudo, que a ciência não trabalha com dados revelados. Só
isso já deveria ser suficiente para fazê-los pensar.
Como ficaria uma discussão entre um rabino, que nega ser Jesus o Messias
e um padre da Igreja Católica Apostólica Romana que afirma ser Jesus o
Messias? Acredito que jogar uma moeda para ver se cai cara (sim) ou
coroa (não) não seria uma boa solução. Sob o domínio da fé, em quem devo
acreditar?
Temos ainda pérolas, nascidas de “geração
espontânea”, entre elas a acusação de um fundamentalismo científico, que
exclui outras formas de pensamento, comuns entre crentes das mais
diversas denominações.
Acham que
com afirmações desse tipo estão respondendo a alguma coisa. Mas, tais
afirmações, não passam de reducionismos intelectuais.
Ora, mesmo admitindo-se, apenas como um
exercício para reflexão, essa descabida afirmação, devemos observar que
o rotulado “fundamentalismo científico”, ao estabelecer normas de
conduta para a obtenção do conhecimento, não exige nenhum tipo de
adoração aos seus métodos e também não condena os seus “hereges” a
queimarem no fogo do inferno por toda a eternidade. Isso, contudo, não
significa dizer que aceitemos a ciência como a única forma de
conhecimento. Mas, essa é outra questão.
IV
A moral religiosa abraça o discurso, adaptado
mais às circunstâncias do que à verdade, da solidariedade, da compaixão,
da compreensão e do perdão, não necessariamente nessa ordem. Mas, isso
tudo não são categorias religiosas. São categorias humanas que implicam,
necessariamente, reflexão, tomada de decisão, numa única palavra,
racionalidade.
Se não matamos e não roubamos, ou se
inversamente assim procedemos, isso não se deve a um cânone religioso
estabelecido. Essa associação seria risível se antes não fosse
desarrazoada. E mais, o que há por trás disso? Que se não houvesse um
Deus seríamos naturalmente estupradores, traidores, assassinos seriais?
A fé, sejamos francos, não se basta a si mesma.
Não é pela fé que se mantêm “unidas” as
congregações religiosas. Nada mais falso e desonesto.
Basta uma breve visita aos templos e igrejas,
destacadamente algumas denominações evangélicas, espalhados aos quatro
cantos para nos confrontarmos com um fiel exército de pedintes,
suplicantes, sempre orquestrados pelos autodenominados “ungidos”
conhecedores da palavra, mas que, em sua maioria, não passam de
arrogantes animadores de auditório, tiranos moralmente repreensíveis.
Esses patéticos falsos profetas, munidos de alto grau de esperteza,
desenvolveram a repugnante “teologia da alienação” cuja base está
alicerçada na aceitação total das “verdades” reveladas, discurso
primordial da servidão voluntaria.*
Incrível coisa é ver o povo subjugado, enganado,
extorquido por tais tiranos - em nome de Deus - e o mais espantoso, como
La Boétie (1997) já nos ensinou, há mais de 4 séculos - e a lição não
foi aprendida - não é necessário nenhuma ação combativa contra o tirano.
Não é preciso defendermo-nos dele, nem tirar-lhe nada. Ele será extinto,
destruído no dia em que as pessoas apenas e simplesmente
recusarem-se a servi-lo.
“Assim é: os homens nascidos sob o jugo e depois
criados na servidão, sem olharem para lá dela, limitam-se a viver tal
como nasceram, nunca pensam ter outro direito nem outro bem senão o que
encontraram ao nascer, aceitando como natural (e como vontade de Deus,
acrescentaríamos nós) o estado que acharam à nascença.” (La Boétie:1997,
p. 32)
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