REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 44 | fevereiro-março | 2014

 
 

 

JOSÉ ROBERTO BAPTISTA

 

Algumas questiúnculas religiosas

 

José Roberto Baptista (Brasil). Editor da ARTE-LIVROS Editora. Foi professor universitário e Diretor-Acadêmico de tradicionais instituições de ensino superior em São Paulo. É estudioso da fenomenologia parapsicológica e autor, entre outros, do livro Introdução ao Estudo da Parapsicologia (Arké, 2007), além de já ter escrito vários artigos sobre o tema. Dirigiu o IEP-SP - Instituto de Estudos Psicobiofísicos de São Paulo voltado, exclusivamente, ao estudo e ao ensino da Parapsicologia.

 

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I

            Quando jovem frequentava as reuniões de estudos religiosos que eram realizadas aos sábados à tarde na sede da Congregação Mariana, um pequeno salão localizado a poucos metros da Casa Paroquial, construção de sala única onde existia um nicho com a imagem da Virgem Maria, mãe de Jesus, e ao centro, ladeada por cadeiras, uma mesa de pingue-pongue, que fazia a alegria dos jovens devotos.

            Era uma espécie de “clube do bolinha”.

            Embora não fossem impedidas de entrar, as jovens Filhas de Maria, salvo raras ocasiões, não frequentavam o local. A elas era reservada a “sala do órgão”, um amplo espaço em forma de meia-lua localizado no pavimento superior da igreja.

            Preparava-me para integrar o “particular” grupo dos Congregados Marianos, uma associação religiosa constituída por leigos cristãos que professam a religião católica e distinguem-se pela especial devoção à Santíssima Virgem Maria. Isso trazia certo orgulho.

            Os congregados ocupavam, nas missas, os primeiros lugares nos bancos da igreja e ostentavam uma fita azul pendurada no peito, tendo na extremidade uma medalha com a imagem de Maria de um dos lados e do outro a do Sagrado Coração de Jesus.

            Também nas procissões destacavam-se em ala especial. A “ala dos congregados”.

            À frente, ocupando posição central ia a bandeira da Congregação, conduzida, via de regra, pelo membro mais antigo. Todos olhavam os jovens marianos com aparente respeito.

            As beatas, tricoteiras da vida alheia, frequentadoras de todas as missas, novenas e procissões, admiravam os meninos vocacionados, destacadamente os mais velhos e, eram eles, os congregados marianos, os responsáveis pelo cesto de doações.  Restringia-se a uma vara comprida, com um saco encarnado na ponta.   

            Com esse particular instrumento, disputadíssimo entre os meninos, era possível recolher doações à distância, chegando com facilidade aos andares superiores das casas assobradadas. O mesmo era também utilizado nas missas, com o mesmo fim. Era o máximo.

            Ao término o dinheiro era recolhido e a contagem feita, cautelosamente,  pelo sacristão. Autoridade máxima para esses assuntos e irmão do pároco.

            Mas, o caminho para a congregação e o direito de ostentar no peito a medalha mariana era árduo.

            As aulas preparatórias, moldadas no mais absoluto rigor cristão de obediência e respeito, que conduziam ao ingresso no apostolado mariano, eram ministradas pelos membros mais antigos da congregação e encerradas, sempre que possível, pelo pároco.

            Os encontros começavam com a oração de louvor a Maria, Salve Rainha, e lembro-me da estranheza que me causavam versos como  A vós suspiramos gemendo e chorando neste vale de lágrimas. Achava assustador.

            A situação agravava-se quando o pároco aparecia de surpresa às aulas e, com sua autoridade paroquial, abroquelado por sua batina preta, indicava alguém para recitar, de memória, uma oração escolhida por ele aleatoriamente. O Credo Apostólico perseguia-me. Sempre o dedo paroquial apontava em minha direção. Eu, costumeiramente, congelava.

            Lembro-me, contudo, que um dos meninos, de olhar perdido e um cabelo esquisito, não só recitava a oração de memória, mas também a recitava em latim. Era um espetáculo de horror. Mas todos viam nele um pequeno gênio. Talvez um futuro sacerdote. O que eu podia fazer? De toda maneira, sentia-me feliz.

Minha má sorte teve início quando em plena e pueril inocência perguntei, em uma das aulas preparatórias, como era possível existirem três pessoas em uma só?, referindo-me, logicamente, à Santíssima Trindade.

Pelo espanto geral da turma associado ao olhar penetrante do desajeitado orientador de estudos diante de tão inocente pergunta, senti, na hora, que havia caído em desgraça.

O colega de classe, de olhar perdido, que recitava orações em latim, pela primeira vez fitou-me, desmedidamente, sem, contudo, expressar qualquer reação. Roboticamente, diria hoje.

O irmão orgulhoso do orientador de estudos, que já recebera a medalha mariana e auxiliava nas tarefas de organização, garoto com nariz aquilino que usava brilhantina em excesso nos cabelos e não me considerava boa companhia em virtude de um boato que dizia ser eu o responsável pelos nós dados nas batinas do pároco que ficavam penduradas na sacristia, levantou as sobrancelhas ao mesmo tempo que abria a boca, indignado – como se dissesse -  “mas o que é isso?”.

Quanta solidariedade cristã.

Mas, como tudo que está ruim pode piorar, não tardou para que o pároco fosse devidamente informado sobre o ocorrido e viesse conversar comigo.

Após poucos e impacientes minutos e diante da minha visível “incapacidade” de compreender, hoje diria aceitar a doutrina Trinitária, um dos dogmas centrais da fé cristã, julgou-me despreparado para receber a medalha mariana e, consequentemente,  integrar o “seleto” grupo dos Congregados Marianos. Deveria, portanto, preparar-me melhor.

A questão, contudo, é mais complexa.  

Manuel Sousa Figueiredo em Deus, o Homem e a Verdade, faz um levantamento sobre esse assunto, consultando documentos eclesiásticos.

Assim nos coloca a problemática:

“Deus é a Santíssima Trindade. É, apenas e exclusivamente, um só. Mas em três pessoas, Pai, Filho e Espírito Santo, sendo cada uma delas um Deus completo, e não uma sua divisão. É a ‘Trindade consubstancial’ (II Concílio de Constantinopla). Assim, ‘O Pai é aquilo mesmo que o Filho, o Filho aquilo mesmo que o Pai, o Pai e o Filho aquilo mesmo que o Espírito Santo, ou seja, um único Deus por natureza’ (XI Concílio de Toledo).

Mas as Pessoas são distintas entre si. “Aquele que é o Filho não é o Pai, e Aquele que é o Pai não é o Filho, nem o Espírito Santo é Aquele que é o Pai ou Filho” (XI Concílio de Trento). “N’Eles, tudo é um [...]. Por causa desta unidade, o Pai está todo no Filho e todo no Espírito Santo, o Filho está todo no Pai e no Espírito Santo, o Espírito Santo está todo no Pai e todo no Filho” (Concílio de Florença).

“O Mistério da Santíssima Trindade é o mistério central da fé e da vida cristã. Só Deus pode dar-nos o seu conhecimento, revelando-se como Pai, Filho e Espírito Santo” (Catecismo da Igreja Católica). (Figueiredo, s.d, p.11)

De fato, tal mistério permanecerá, por ser um mistério, inacessível a todos os mortais. Em que isso nos ajuda?

 

II

Um dos maiores e discutíveis méritos das religiões é o de transformar questões de extrema complexidade em lugares comuns.

No geral, os religiosos atribuem a incapacidade de compreensão daquilo que acreditam terem recebido por “revelação” a um despreparo para a fé. Os milagres são bons exemplos.

O constantemente citado David Hume - e por que não citá-lo novamente - em sua Investigação acerca do entendimento humano diz ser o milagre “uma violação das leis da natureza”. (Hume, s.d, p.140)

De fato, só podemos atribuir um fato como milagroso se este ocorrer fora do curso normal da natureza. Mas isto, parece-me, ser mais complexo do que o próprio milagre, uma vez que nesta fórmula poderíamos incluir tudo aquilo que não sabemos explicar e, ainda, abriríamos um precedente indesejável.

Se um homem de avançada idade submete-se a uma delicada cirurgia, de grande risco, e sai ileso,  é obra de Deus. Foi um milagre. Contudo, se uma criança vai para a mesa cirúrgica operar um apêndice e morre foi o destino. É assim.

Contudo, quando inquiridos sobre essas ocorrências, crentes de diversas crenças apelam para a mediocridade intelectual: “Então, explique isso?”.

Ora, esse tipo de indagação, natural em mentes entorpecidas, é inaceitável. Não se ter uma explicação racional para uma determinada ocorrência não é o mesmo que dizer que tal ocorrência esteja fora do curso normal da natureza e, some-se a isso,  não termos uma explicação racional para um determinado fato não significa, em tempo algum, que nunca teremos uma explicação racional que o explique.  

Por que Deus faria milagres? Como prova inconteste de seu poder?

Ao afogar toda a humanidade, crianças inocentes, velhos indefesos, homens e mulheres, deixando meia dúzia de escolhidos navegando sem destino pela Terra já não teria demonstrado suficientemente seu incalculável poder? Será necessário ainda mais?

A reação daqueles que creem, quando contrariados é sempre escapadiça: acredito pela fé.

Contudo, quanta fé é preciso para acreditarmos e, mais que isso, aceitarmos o fato que Deus falou pela boca de uma jumenta vidente a Balaão? Convenhamos, a qualquer tempo, em qualquer contexto, isso seria um espetáculo de horror.

“Acreditar pela fé” não passa de um eufemismo para dizer que embora não tenhamos a menor compreensão, a menor evidência sobre o que estamos afirmando, aceitamos o fato como verdade. Nada mais.

Mas, há na expressão algo de perverso à medida que funciona como uma blindagem contra todo e qualquer argumento contrário.

Consagra, ou pelo menos pretende consagrar, uma determinada crença particular em uma “verdade” universal, cujo acesso só pode se dar pela submissa aceitação, nunca pela razão. Daí não nos causar o menor espanto um menino nascer de uma jovem virgem; mortos serem ressuscitados e a relação abusiva, diga-se, não tem fim.

Os religiosos pós-diluvianos de final de tarde dizem repetidamente, como um mantra, que não podemos entender os desígnios de Deus - outra maneira de dizer que não têm a menor ideia sobre aquilo em que acreditam – e falam.

Choca-me o fato de pessoas honradas, cultas e bem intencionadas, afirmarem que Deus, ao mandar seu único filho como Salvador da Humanidade, permitiu que Ele fosse chicoteado, humilhado, morto por crucificação e no final, tais pessoas veem nisso um ato de amor. Mas, no mundo real, devemos considerar – pelo menos considerar - a imoralidade na aceitação de que alguém pague por nossos erros. Numa palavra: abominável.

Convenhamos, até para a insanidade deve haver limites.

III

Muitos religiosos arvoram-se em citações sobre descobertas arqueológicas que confirmariam a veracidade dos textos “revelados”. “A ciência comprova a fé”. Contudo, por pura desinformação, desconsideram que a crença não se fundamenta naquilo que podemos comprovar. Aquilo que podemos comprovar não se chama crença. Chama-se conhecimento. Portanto, não confundamos “alhos com bugalhos”.   

Imaginemos, apenas como exercício para reflexão, se escavações arqueológicas chegassem, por exemplo, à certidão de nascimento de Jesus. Pois bem. O que traria tal descoberta?

A comprovação objetiva de ter havido um Jesus, filho da jovem Maria, a virgem,  e José, o carpinteiro. Todavia, em nada mudaria àquilo que importa a fé. Inclusive, grande parte dos pesquisadores concordam com a existência de Jesus. E daí?

A comprovação de ter existido um Jesus histórico, não fortalece, nem comprova, em tempo algum, que Jesus foi o Cristo, o Messias, o próprio Deus encarnado. Esta é a grande questão.

Consideremos, a crença, como já o disseram antes de mim, liga-se ao desejo de como as coisas deveriam ser. O conhecimento, diferentemente, liga-se ao esforço de explicar como as coisas são. Isso, inclusive, para os desavisados, chama-se ciência.

            Algumas mentes perturbadas tentam despersonalizar a ciência ao compará-la a uma forma de religião. Esquecem-se, contudo, que a ciência não trabalha com dados revelados. Só isso já deveria ser suficiente para fazê-los pensar.

            Como ficaria uma discussão entre um rabino, que nega ser Jesus o Messias e um padre da Igreja Católica Apostólica Romana que afirma ser Jesus o Messias? Acredito que jogar uma moeda para ver se cai cara (sim) ou coroa (não) não seria uma boa solução. Sob o domínio da fé, em quem devo acreditar?

Temos ainda pérolas, nascidas de “geração espontânea”, entre elas a acusação de um fundamentalismo científico, que exclui outras formas de pensamento, comuns entre crentes das mais diversas denominações.

Acham que com afirmações desse tipo estão respondendo a alguma coisa. Mas, tais afirmações, não passam de reducionismos intelectuais.

Ora, mesmo admitindo-se, apenas como um exercício para reflexão, essa descabida afirmação, devemos observar que o rotulado “fundamentalismo científico”, ao estabelecer normas de conduta para a obtenção do conhecimento, não exige nenhum tipo de adoração aos seus métodos e também não condena os seus “hereges” a queimarem no fogo do inferno por toda a eternidade. Isso, contudo, não significa dizer que aceitemos a ciência como a única forma de conhecimento. Mas, essa é outra questão.

IV

A moral religiosa abraça o discurso, adaptado mais às circunstâncias do que à verdade, da solidariedade, da compaixão, da compreensão e do perdão, não necessariamente nessa ordem. Mas, isso tudo não são categorias religiosas. São categorias humanas que implicam, necessariamente, reflexão, tomada de decisão, numa única palavra, racionalidade.

Se não matamos e não roubamos, ou se inversamente assim procedemos, isso não se deve a um cânone religioso estabelecido. Essa associação seria risível se antes não fosse desarrazoada. E mais, o que há por trás disso? Que se não houvesse um Deus seríamos naturalmente estupradores, traidores, assassinos seriais?

A fé, sejamos francos, não se basta a si mesma.

Não é pela fé que se mantêm “unidas” as congregações religiosas. Nada mais falso e desonesto.

Basta uma breve visita aos templos e igrejas, destacadamente algumas denominações evangélicas,  espalhados aos quatro cantos para nos confrontarmos com um fiel exército de pedintes, suplicantes, sempre orquestrados pelos  autodenominados “ungidos” conhecedores da palavra, mas que, em sua maioria, não passam de arrogantes animadores de auditório, tiranos moralmente repreensíveis. Esses patéticos falsos profetas, munidos de alto grau de esperteza, desenvolveram a repugnante “teologia da alienação” cuja base está alicerçada na aceitação total das “verdades” reveladas, discurso primordial da servidão voluntaria.*

Incrível coisa é ver o povo subjugado, enganado, extorquido por tais tiranos - em nome de Deus - e o mais espantoso, como La Boétie (1997) já nos ensinou, há mais de 4 séculos - e a lição não foi aprendida - não é necessário nenhuma ação combativa contra o tirano. Não é preciso defendermo-nos dele, nem tirar-lhe nada. Ele será extinto, destruído no dia em que as pessoas apenas  e simplesmente recusarem-se a servi-lo.

“Assim é: os homens nascidos sob o jugo e depois criados na servidão, sem olharem para lá dela, limitam-se a viver tal como nasceram, nunca pensam ter outro direito nem outro bem senão o que encontraram ao nascer, aceitando como natural (e como vontade de Deus, acrescentaríamos nós) o estado que acharam à nascença.” (La Boétie:1997, p. 32)

 

Bibliografia 

FIGUEIREDO, Manuel Sousa. Deus, o homem e a verdade. Lisboa:Argusnauta, s.d

HUME, David. Investigação sobre o entendimento humano. Editora Escala, s.d

LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso sobre a servidão voluntária. Lisboa, 1997

VOLTAIRE, Questões sobre os milagres. Martins Fontes, 2003

  * Termo utilizado por Étienne de La Boétie em Discurso sobre a servidão voluntária.
 

 

© Maria Estela Guedes
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