Ferry Street rua da palavra
preâmbulo
antes que seja tarde repetias
como quando te escutava pela tarde
dizer tantas vezes: vem, vem
meu tempo, que te espero,
antes da tarde
e enquanto há tempo para escutar
o vento e as vozes desse tempo,
desse tarde que antecede o outro vento
que narra o pensamento nas palavras ...
quero correr o mundo enquanto é tempo
na ânsia de vencer o instante e o momento
em que já pouco restará da história; pela
tarde
lançarei a minha voz solta no vento,
acalmarei a centelha que por dentro arde
e beijarei uma vez mais a vida
antes que seja tarde...
depois, pediste mais palavras que salvassem
da morte as pedras e os anos de outrora
as memórias dos gestos, mesmo os mais
pequenos,
que constroem os homens e os sonhos
e os grãos que fizeram tijolos e argamassa
com que as casas se mantêm contra o tempo;
as cores de fora serão baças
num ar quase artificial, mortiço, e as de
dentro
paredes de cores vivas,
as línguas faladas lá, por dentro
onde pulsam sotaques, tradições,
paixões e memórias muito vivas
entre viagens à terra e o movimento,
aos mares, portos, campos e aldeias
de beira rio, montanhas e planuras,
onde a distância de então era tão longe
como a distância que hoje nos separa
do sonho que nos mantem unidos.
1. PALAVRA
rua da palavra 1
palavra de rua palavras na rua
palavra que é minha palavra que é tua
palavra quebrada o corpo é que sua
palavra da noite pintada na lua
palavra de amor ou palavra nua
palavra que é o nome da rua
2. VIAGEM
Um comboio e um relógio
e uma rua pelo meio...
um antes do comboio e das linhas de ferro,
outro mundo para lá
do relógio, das pontes, do rio, do mar.
Antes do comboio, ou seria um avião,
os sonhos chegavam de barco,
que importa: em qualquer lado
há sempre uma estação:
escadas, bilhetes, papéis, sonhos,
malas, malas, caixotes e mais sonhos,
e uma língua amada, muitas línguas,
e outra língua nova ignorada.
Para trás ficavam outros sonhos, sons,
línguas,
palavras, corações, razões para dizer não,
o que sempre vinha era a vontade,
a força da mente e dos braços, das mãos....
e das palavras
rua da palavra 2
rua da palavra palavra
rua palavra que é minha
tua palavra quebrada
palavra tua
amor ou palavra nua
na lua palavra de amor
palavra da noite palavra
nua palavra
palavra
palavra palavra ...
palavra palavra palavra ...
palavra palavra palavra ...
palavra rua
No largo da chegada havia caminhos cruzados,
transversais, avenidas, pedaços de uma
história nova
construídos com nomes antigos, familiares.
As esquinas que pareciam um cantinho
à beira rio, à beira serra, à beira mar
atlântico, tão perto e tão distante.
todas
redondas
eram as janelas
para te ver
arredondada
por te olhar
vou abrir
o meu olhar
para ver
quem me atravessa
nos quadrados
das cortinas
uma sombra
se desdobra
todas
redondas
eram
as sombras
apareces
e não escondes
sinais de mãos
e sorrisos
como o sol
de roda em roda
dá volta
à tua janela
no interior
a tua luz
bem perto
do meu desejo
a tua voz
a chamar
- deixa a porta
entreaberta!
todos
redondos
são os sonhos
nas transparentes
janelas
do teu rosto
todas redondas eram as janelas…
todos redondos eram os desejos…
todas redondas eram as sombras…
todos redondos eram os olhares…
todos redondos eram os sinais…
todas redondas eram as palavras
E aquela palavra, só deles, sem paralelo
nos outros falantes?
("não se diz alto -
dizia ela
- que pode dar azar...")
3. PAIXÃO
não a sigo fisicamente porque
não estou lá na hora
em que todos os desejos
e frustrações do mundo (todos
ou quase) alguns cansaços
estampados nos vestidos
desaguam na ferry street.
será seu nome: são ou
maria da encarnação dos sonhos
e dos pesadelos transportados
nos comboios da grande cidade.
debaixo do braço a magra bolsa
quase se confunde com a magreza
que dá forma à blusa amachucada.
mas todos os dias à mesma hora
ela e a mesma tristeza do mesmo comboio
percorrem os passeios da street
(chamar-lhe-ão talvez por isso
ferry dos stristes) não sei...
e
duvido que os nomes sejam
apenas marias ou são ou ...
todos os nomes de todas as marias
esquecidas do relógio e das horas
do jantar que as espera porque
serão ainda elas que irão
aquecer os filhos e filhas
que a aguardam sem querer
saber dos outros minutos.
sigo-a à distância de dois corações
que ainda batem com a mesma
velocidade com que os pés
pisam o cimento
com um eco um som igual
ao que lhe tortura a memória
sem ainda saber do futuro
por ler nas linhas do comboio.
não teve tempo nem a esperança
das luzes do túnel apagadas
no regresso à realidade
da pequena cidade que a grande
já fica para trás. traz a mensagem
cono quem transporta um bilhete
de castigo por falhas que
não são suas nem das outras
vidas incompletas. há olhares
paralelos enquanto viajo longe
noutro transporte de ferry
que as águas levarão
lavando as marcas como a chuva
a escorrer palavras no rosto.
e as folhas descoloridas
não trazem promessas. amanhã
novamente caminharei na ferry
e esperarei no largo o comboio.
aquelas. outras. porquê? não sei
porque são...
(...)
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