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Antes de apresentar
brasileiros que poderiam ser vinculados ao Surrealismo e especificar
suas relações com esse movimento, convém verificar o que a crítica
literária tem a dizer a respeito. Até há pouco, a palavra final era
aquela de José Paulo Paes: “Do surrealismo literário no Brasil quase se
poderia dizer o mesmo que da batalha de Itararé: não houve”. Isso, no
ensaio “O surrealismo na literatura brasileira”,
publicado na coletânea
Gregos e Baianos (Brasiliense, 1985), onde expunha razões pelas
quais expoentes do Modernismo como Mário de Andrade não o haviam
endossado.
Ao mesmo tempo, Paes
comentava escritores que, pela escrita onírica ou delirante, podiam ser
associados a esse movimento. Teve o mérito, por isso, de chamar a
atenção para figuras à margem: o narrador Adelino Magalhães (1887-1963),
catalogado como impressionista, e que, cronologicamente, só poderia ser
arrolado como precursor; Prudente de Morais Neto (1895-1961), jornalista
que, participando do mo0vimento modernista, dirigiu a revista Estética
junto com Sergio Buarque de Holanda; e Sosígenes Costa (1901-1968),
poeta original, com algo de “maldito”, assim novamente contribuindo para
seu resgate.
Paes voltaria ao assunto ao
resenhar a coletânea de entrevistas e traduções
Escritura Conquistada de
Floriano Martins, utilizando, a propósito das suas preocupações e das
escolhas de entrevistados, a expressão “tardosurrealismo”
(em “Uma América para-surrealista”,
Jornal da Tarde, São Paulo,
11/07/98). Sua morte, logo a seguir, impossibilitou uma discussão
que só poderia ser produtiva e esclarecedora. De qualquer modo, idéias
expostas em “O surrealismo na literatura brasileira” mostram que houve
uma convergência de julgamentos por figuras de primeiro plano da crítica
brasileira: Antonio Candido, Silviano Santiago (citados no ensaio de
Paes) e Wilson Martins (em
“Continente de poetas”, Suplemento Prosa & Verso do jornal O Globo, Rio
de Janeiro, 29/08/98). Abarcou, além dos gregos e baianos do título
daquela coletânea de ensaios, os próprios gregos e troianos da crítica
brasileira, qual gatos do mesmo saco.
O artigo “Surrealismo
no Brasil” de Antonio Candido (em Brigada Ligeira e outros
escritos, Editora Unesp), invocado por José Paulo Paes, trata de
O Agressor, romance de Rosário Fusco (1910-1977) publicado em 1943.
Provoca espanto como esse texto pode estar na seqüência, nesse livro, do
que ele escreveu sobre Clarice Lispector. É como se fossem dois
críticos, adotando paradigmas opostos. Perto do Coração Selvagem,
em uma apreciação pioneira que exemplifica sua enorme contribuição à
crítica, é, para Candido, uma “verdadeira
reforma do pensamento literário”; a ruptura com “um
certo conformismo estilístico” que afetaria grandes nomes da
narrativa realista: fez, portanto, revisão crítica do realismo, a
corrente literária então de maior prestígio, quando não dominante.
Já O Agressor
de Fusco ensejou reparos ao “super-realismo”;
a uma “tendência
irracionalista” reduzida à “crise
desse espírito, desintegrado pelo individualismo burguês e, em seguida,
pela crise do capitalismo”. Interessaria como “ilustração
desta crise”. Em um paralelo de Rosário Fusco com o Kafka de O
Processo, afirmou: “No
livro de um brasileiro, não poderá subjazer necessidade vital alguma de
tal ordem, a não ser a título de abstração intelectual”. Isso
podia ser assinada por um defensor do “realismo socialista”. Aliás, a
crítica soviética ao surrealismo e à literatura do absurdo foi
exatamente essa, apontando-o como sintoma da decadência burguesa ao lado
da psicanálise e tudo que não se ajustasse à cartilha determinista. É
como se o Lukács mais dogmático, de “O assalto à razão”, contendor não
só do surrealismo mas do romantismo, existencialismo e literatura do
absurdo, tivesse, naquele momento, baixado, encarnado em Antonio Candido
– se foi isso o que aconteceu, felizmente, logo afastou-se.
A propósito de correntes
dominantes na crítica brasileira, e da convergência de opostos na
rejeição do surrealismo, há, ainda, uma crítica formalista, bem
representada por Haroldo de Campos em “Poesia
Concreta – Linguagem – Comunicação”, publicado em Teoria da
Poesia Concreta – Textos críticos e manifestos
(Livraria Duas Cidades, 1975). O poeta e pensador do concretismo
estabeleceu “uma distinção
fundamental entre o poema concreto e o poema surrealista.
O surrealismo, defrontando-se
com a barreira da lógica tradicional, não procurou desenvolver uma
linguagem que a superasse”. Por isso,
embora se insurja contra a
lógica, é apenas o filho bastardo dessa”.
A poesia e crítica
concretista ainda transitaria por vias mais amplas que as da sua
afirmação enfática nos anos 50, e Haroldo de Campos sabia que a
“barreira da lógica” é negada pelo pensamento analógico, que desconhece
o princípio da identidade. Talvez nem fosse preciso perguntar-lhe
porque, então, o que registramos ao sonhar se parece a obras
surrealistas, e não a poemas concretos; esses, ao menos em sua
manifestação mais ortodoxa, resultado de um hiper-racionalismo fundado
no cientificismo, nem em pesadelos.
Revisões desse tipo de
julgamento, rechaçando o surrealismo, demorariam para vir. Um de seus
marcos, a coletânea Surrealismo e
novo mundo, organizada por Robert Ponge (Editora da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, 1999), com dois ensaios, “Modernismo,
vanguardas e surrealismo no Brasil” de Valentim Facioli, e “Surrealismo
no Brasil: mestiçagem e seqüestros” de Sérgio Lima. Facioli, que
organizou Breton-Troski: por uma
arte revolucionária independente (Paz e Terra, 1985), fala em
“perversão, apagamento da memória, soterramento, verdadeiro exílio das
culturas dos dominados e das obras libertárias”, a propósito de
marginalização de
“manifestações surrealistas que se produziram - e se produzem - na
América Latina”. Associa-a ao nacionalismo anti-cosmopolita como
política de estado, a serviço da “modernização conservadora e seletiva,
constituídas por um moderno atrasado ou um atraso modernizado”; ou seja,
do Estado Novo brasileiro, conduzido por Getulio Vargas. Para Facioli,
correntes tão antagônicas como integralistas, comunistas da ALN e do
PCB, e, sem mencioná-lo explicitamente, agentes da política cultural
pública como Mário de Andrade, seriam componentes dessa configuração
nacionalista-retrógrada avessa ao surrealismo.
Sérgio Lima, autor de
A Aventura Surrealista (tomo
1 pelas editoras Vozes/ Unesp/ Unicamp, 1995; tomo 2 pela Edusp, 2010),
fala em “seqüestro”, adotando a metáfora de Haroldo de Campos para a
exclusão do barroco de Gregório de Matos e Antonio Vieira de histórias
da literatura brasileira. Revê cronologias para demonstrar que havia,
sim, atividade surrealista importante associada ao modernismo
brasileiro, convertida em história subterrânea, a ser relatada, assim
cobrindo espaços em branco, corrigindo datas alteradas em biografias e
cronologias. Enquanto se supõe que a escrita de Murilo Mendes e Jorge de
Lima teria se tornado onírica, com maior riqueza de imagens, a partir da
conversão ao catolicismo em 1933, Sérgio diz que não, que ambos já
tinham conhecimento e contato com o surrealismo francês
antes. Assim, quando
supostamente estariam entrando
no surrealismo, na verdade estariam
saindo. Declarações de Murilo
Mendes sobre a adoção de um “estilo”, apenas, do surrealismo, e “à moda
brasileira”, não denotariam adesão, porém abandono. Não só no caso
desses dois grandes nomes de nossa literatura, mas em outros, como o dos
autores que se reuniram ao redor da revista
Verde, de Cataguazes,
liderados por Rosário Fusco, haveria uma história não revelada de
envolvimento com esse movimento.
Diante da controvérsia e do
grau de confusão já lançada sobre o tema, convém deixar claro do que
estamos falando, evitando o surrealismo de cada um, significante à
deriva, ao sabor de uma diversidade de sentidos. Figurando entre os
movimentos catalogados como vanguardas, foi aquele que mais resistiu a
essa classificação, entre outras razões, pela duração. Desempenhou um
papel importante na década de 30, período de internacionalização e
participação ativa nos debates que antecederam e anteviram a catástrofe
da Segunda Guerra. Nos anos 40 e 50, de modo precursor, questionou a
dicotomia imposta pela Guerra Fria entre estalinismo e macarthismo. Sob
a ótica surrealista, que deveria ser levada em conta, vanguardas teriam
se preocupado com questões formais, de estética, ligadas à expressão
artística e literária. Já o surrealismo estava preocupado com a vida,
com a transformação do mundo. A produção artística e literária foi o
modo de expressar esse ímpeto transformador.
Não deixa de ser um
estimulante paradoxo que, recusando o confinamento ao campo das artes e
literatura, ao mesmo tempo houvesse constituído um impressionante
conjunto de realizações em literatura e artes, inclusive objetos,
colagens e fotografia, cinema, e o que viria a ser chamado de happening,
performance, intervenção. Contudo, tem que ser considerado, em primeira
instância, como movimento de
idéias, reflexão sobre a relação entre poesia e sociedade, arte e
política, criação e vida. A busca da unidade é seu fundamento,
justificando os paralelos com doutrinas orientais por Octavio Paz, em
La búsqueda del comienzo.
Por isso, a dimensão
filosófica é inseparável da produção artística. Não existe “forma”
surrealista, uma exterioridade dissociada das idéias, e a atenção à sua
“estética” pode fazer passar desapercebido o que é realmente subversivo
nesse movimento. Não há contradição entre essa dimensão e a afirmação da
autonomia do mundo simbólico nas páginas iniciais do
Primeiro Manifesto, em uma veemente crítica à visão cientificista e
mecanicista do mundo: “...a atitude realista (...) parece-me hostil a
todo impulso de liberação intelectual e moral”.
Daí o elogio à imaginação, identificada
à “maior liberdade de
espírito”.
Isso não impede que se
identifique uma poética surrealista, usando a idéia de
imagem tal como formulada por
Pierre Reverdy, que desse modo codificou as operações sobre a linguagem
da vertente radicalmente inovadora do Simbolismo, dos Rimbaud, Corbiére,
Germain Nouveau, Jarry, e, principalmente, Lautréamont. Para Reverdy, a
imagem poética se dá através da “aproximação de realidades diferentes”;
e será tanto mais forte “quanto mais distantes forem essas realidades”
assim aproximadas. No autor de
Sources du Vent, tais idéias se realizam através de um modo poético
que iria reaparecer, de forma radical, na lírica surrealista, em
passagens como esta de Je sublime
de Benjamin Péret: “Rosa de jasmim na noite da lavagem dos linhos/ Rosa
de casa assombrada/ Rosa de floresta negra inundada de selos azuis e
verdes/ Rosa de papagaio-de-papel sobre um terreno baldio onde brigam
crianças/ Rosa de fumaça de charuto/ Rosa de espuma de mar feita
cristal/ Rosa” (Amor Sublime -
Ensaio e poesia, Editora Brasiliense, 1985, tradução de Sérgio Lima
e Pierre Clemens). E em tantos outros autores e obras assimiláveis a
esse movimento, além dos que dele participaram e depois se se afastaram,
integrando igualmente o melhor da lírica do século XX, a exemplo de
Jacques Prévert e René Char.
Enfim, há dois modos de olhar
o surrealismo. Um deles, voltado a um surrealismo manifesto, mais
evidente, que examina obras, poéticas inclusive, mostrando nelas a
ocorrência da imagem. O outro desloca o foco para o autor e para uma
atitude surrealista. Se um de
seus fundamentos é a busca da unidade do real e imaginário, simbólico e
factual, conseqüentemente, de autor e obra, tais olhares não são
excludentes, porém complementares. Mas, conforme a atenção maior a um ou
outro, obra ou autor, produção ou atitude, a história do surrealismo no
Brasil muda consideravelmente.
Tomando a poesia no sentido
estrito, como gênero literário, os dois grandes nomes associados ao
surrealismo no Brasil são mesmo Murilo Mendes e Jorge de Lima. Quanto a
Murilo Mendes, independentemente de adotar-se a cronologia vigente de
sua obra ou a revisão sugerida por Sérgio Lima, o fato é que, a partir
de 1930, a exacerbação da experiência religiosa resulta na busca de
traduzir o indizível, a experiência revelada; em suas palavras, a
Poesia em Pânico, movido pela
urgência diante de um apocalipse que acaba por realizar-se nos horrores
da Segunda Guerra Mundial. Seus antecedentes estão, nem tanto no
Surrealismo, mas em um exasperado e até bombástico catolicismo literário
francês cujo expoente foi Léon Bloy. Contudo, o rótulo de “poeta
católico” reduz o alcance de uma lírica plural, na qual, tomando o
conjunto de sua obra, se encontra o que houve de inovador e relevante em
seu tempo. Há uma linha evolutiva, da “poesia em Cristo”, escrita como
se fosse para substituir a oração, até o ganho em síntese e vigor de
As Metamorfoses, de 1941:
“Estamos vestidos de alfabeto,/ Não sabemos nosso nome.// Cavalos
brancos vermelhos/ Mastigam o mundo:/ Olhai a sombra da terra,/ Uma
enorme guilhotina.// Galopa fantasma/ Vida contra a vida”. O misticismo
é associado ao lirismo e até ao erótico, retomando o que escrevia antes,
como em “O Visionário”: “O rio da noite banha/ O alicerce das tuas
pernas”. Poeta de imagens visualmente sugestivas, que poderiam passar
por descrições de quadros de Magritte, Delvaux, Dali e do próprio Ismael
Nery, resumiu, em 1935, uma questão à qual Breton dedicaria páginas de
O amor louco logo a seguir,
em 1938: “Muro, nuvem do pintor”.
Tudo o que há para ser dito
sobre Murilo Mendes vale, em maior grau, para Jorge de Lima. Mesmo
admitindo, como quer Sérgio Lima, a precedência surrealista, mais
evidente com a atenção à sua prosa e produção como artista plástico,
incluindo “fotomontagens”, na verdade colagens, Jorge de Lima é um poeta
de fases, de etapas na criação poética. Teve o período parnasiano,
nativista-regionalista, católico, onírico-surreal, até a grande síntese,
Invenção de Orfeu. O
onírico-surreal está em
Anunciação e encontro de Mira-Celi, série de poemas, alguns em
prosa, como se fossem paisagens de sonho, onde os contornos se dissolvem
e as coisas se metamorfoseiam. Sem perder a riqueza de imagens, retoma
as formas fixas no Livro de
Sonetos, quem sabe o ponto máximo do gênero em nossa literatura do
século 20, a uma enorme distância dos preciosismos parnasianos: “Entre a
raiz e a flor: o tempo e o espaço,/ e qualquer coisa além: a cor dos
frutos,/ a seiva estuante, as folhas imprecisas/ e o ramo verde como um
ser colaço”. Apresenta uma reflexão sobre a poesia, afim a idéias
surrealistas: “Não procureis qualquer nexo naquilo/ que os poetas
pronunciam acordados,/ pois eles vivem no âmbito intranqüilo/ em que se
agitam seres ignorados”. São palavras que anunciam a poesia hermética e
cósmica de Invenção de Orfeu,
onde reitera a idéia do poeta sonâmbulo, em transe febril ao descer a um
mundo arquetípico, pré-verbal e pré-civilizado: “O céu jamais me dê a
tentação funesta/ de adormecer ao léu, na lomba da floresta,// onde há
visgo, onde certa erva sucosa e fria/ carnívora de certo o sono nos
espia (...) Minha cabeça
estava em pedra, adormecida,/ quando me sobreveio a cena pressentida.//
Em sonâmbulo arriei os pés e as mãos culpados/ dos passos e dos gestos
em vão desperdiçados.(...) Pra unidade deste poema,/ ele vai durante a
febre”.
Uma questão insuficientemente
examinada é aquela do surrealismo como
instrumento de leitura, para
enriquecer compreensão de obras, independentemente de seu vínculo
direto. Pois bem: incorporando o olhar surrealista, tornando-o
instrumento de leitura, Murilo Mendes e Jorge de Lima crescem,
consolidam-se como vultos de primeira grandeza na literatura brasileira.
A propósito, pode-se observar, na ensaística de Breton e outros autores
ligados ao movimento, após o desprezo pelo literário da “fase heróica”
sob o impulso de Dada, a identificação entre o surreal e o poético.
Vê-se subentendido, na adoção de outros autores como antecedentes, já na
Anthologie de l’humour noir,
bem como a retomada das demonstrações de admiração por um Victor Hugo,
por exemplo; de que, quanto maior seu valor poético, tanto mais será
afim ao Surrealismo..
Contudo, introduzir o viés
surrealista na discussão da poesia brasileira significa identificar
autor e obra, falar de um quando se fala da outra, na busca da unidade
entre arte e vida. Da impossibilidade de separar autor e obra decorre a
preocupação com uma ética,
aparentemente paradoxal, ao elevar a transgressão à categoria de
valores, porém indissociável de uma
estética, da qual resultaram
exclusões e ataques. Por exemplo, os escandalosos panfletos contra
Anatole France e Paul Claudel voltavam-se, nem tanto contra o que
escreviam, mas contra sua conduta, o oficialismo, a política literária,
etc.
Voltando a Jorge de Lima, a
coerência, inseparável de qualidades da obra, faz sua estatura crescer.
Em seu processo criativo, os transes, despertando no meio da noite para
escrever, foram reais, fatos biográficos (.quem chegou a comentar comigo
essas ocorrências em Jorge foi Lúcio Cardoso, fonte autorizada, pela
amizade de ambos). Permitem aproximações à escrita automática e ao sono
hipnótico. Demonstram fidelidade ao impulso criador, realizando a frase
de Octavio Paz: “O poeta não se serve das palavras. É o seu servidor”.
Além disso, abraçando o catolicismo, foi mais longe e o ultrapassou,
para chegar à religiosidade primordial que incorpora o êxtase pagão. Daí
o apelo ao telúrico em Invenção
de Orfeu, a temática do mineral, do subsolo, signo da descida ao
inconsciente e da experiência religiosa arcaica.
Olhando o vivido, e não só o
escrito, encontramos surrealismo na manifestação mais significativa
associada ao Modernismo, a Antropofagia. O sentido do que Oswald,
Tarsila e Bopp desenvolviam torna-se evidente pela acolhida a Bejamin
Péret em sua vinda ao Brasil em 1929, um capítulo importante, não de
literatura ou arte, mas daquilo que a precede, a
aventura surrealista.
Preocupações do grupo antropófago convergiam com a busca do outro, da
alteridade por Péret, levando-o à compilação de mitos de índios
brasileiros, ao contato com os rituais sincréticos, umbanda e candomblé,
e a examinar episódios mal contados da nossa história, do que resultou
um livro sobre o “almirante negro” João Cândido, líder da Revolta da
Chibata. A estada de Péret, que se casou com a cantora carioca Elsie
Houston, encerrou-se com sua prisão e deportação, e com a destruição
pela polícia dos originais daquele livro. Sua volta ao Brasil se daria
em 1951, quando coligiu novo material para
Mithes et légendes des peuples de
L’Amérique Latine.
Traços desse momento podem
estar em passagens de Oswald, como o poema-colagem
O Escaravelho de Ouro, de
1946: “Eliminarás a doença e o bário/ Restará o deleite dos homens/
Porque foste o andrógino”. Contudo, se a vida interessa, em conexão com
a obra, há mais a relatar. Principalmente, o modo como uma vanguarda
intelectual e política articulou-se, através de Péret, com o
surrealismo. Incluiu nomes ligados a um movimento antropófago e à
formação de uma esquerda trotskista: Patrícia Galvão, a Pagu, Flávio de
Carvalho e Mário Pedrosa. Pagu e Flávio de Carvalho chegaram a ser
hóspedes de Péret e Elsie Houston em Paris, em 1934-35, acompanhando os
debates que moveram Breton a escrever
Position Politique du Surréalisme
(conforme Pagu - Vida e Obra,
de Augusto de Campos, Editora Brasiliense, 1982).
Dando atenção à coerência e
integridade, o nome mais significativo do Surrealismo no Brasil é o de
Flávio de Carvalho. Vista pelo aspecto exterior, sua pintura é associada
ao expressionismo. Mas suas provocações famosas, a intervenção em uma
procissão acarretando um quase linchamento em 1931, e as roupagens
tropicais nos anos 50, são surrealismo autêntico, na exteriorização e
nas intenções. E também sua atuação como arquiteto, esquivando-se a um
mercado emergente de arquitetura “moderna” de orientação funcionalista,
questionando-o, para concentrar-se em uns poucos projetos que o
motivavam. Acima de tudo, o texto teatral
Bailado do deus morto,
proibido pela polícia ao estrear em 1933, resultando no fechamento do
teatro, assim como, logo a seguir, também teria uma exposição proibida.
Coragem, posição clara de recusa da ordem estabelecida, isso sim, é
surrealismo, além da sua assimilação das idéias de Freud, estímulo à
apresentação de manifestações de outros artistas surrealistas, e isso
até 1967, e a valorização da arte dos “alienados”, conforme apontado por
Sérgio Lima (“Os anos modernistas de Flávio de Carvalho”, revista
Xilo, n. 1, Fortaleza, Ceará,
setembro de 1999). A propósito da censura a Flávio de Carvalho, e do
banimento de Péret, convém observar que a circulação restrita do
surrealismo entre nós deve muito à repressão policial, e não só a uma
adesão de nossos intelectuais à razão consciente, à realidade nacional,
ao que fosse.
De fato, sobra pouco, até os
anos 60, para ser indicado como surrealista em nossa poesia. Quanto a
Sosígenes Costa, a qualificação caberia, nem tanto pela poesia
excêntrica, mas, novamente, pela conduta íntegra, ao colocar-se à margem
da vida literária instituída; daí o resgate tardio. Caberia, no capítulo
da expressão surrealista no Brasil, a referência a Paulo Mendes Campos,
esperando-se que a etapa seguinte a seu resgate como cronista seja o
reconhecimento de sua poesia em prosa, de imagens e associações livres,
como o “Poema das Aproximações”. Para essa e outras passagens da sua
obra, vale o que foi dito sobre surrealismo como instrumento de leitura
e recuperação de valores literários. No âmbito da geração de 45, há
autores postos em segundo plano, quase como sua periferia lunática, como
Fernando Ferreira de Loanda e André Carneiro, a demandarem reexame.
Afora isso, onde se vai
encontrar poesia surrealista no Brasil é na prosa. Citar prosadores em
um texto sobre poesia não é incoerente, pois o Surrealismo jamais
aceitou a diferença entre gêneros: antes, aboliu-a em obras como
Nadja e
O Amor Louco de Breton, onde
há de tudo, poesia, prosa, crônica, ensaio. E, desde o primeiro
Manifesto, esconjurou a narrativa realista por seu dualismo, ao
separar entidades, uma delas o texto, outra, a “realidade” retratada ou
mimetizada no texto. Por isso, cabe a menção a uma estirpe de autores à
margem do realismo, dominante no Brasil até o aparecimento de Clarice
Lispector e Guimarães Rosa. Além de Aníbal Machado, outros, pela
condição de “malditos”, se não surrealistas, ao menos foram
lautreamontianos. Principalmente Rosário Fusco, em boa hora reeditado (O
Agressor, Editora ao Livro Técnico, Rio de Janeiro, 2000).
Desse elenco de prosadores,
talvez a inclusão indispensável seja a de Campos de Carvalho, por sua
afinidade declarada, a
narrativa descontínua e onírica, a crítica a valores e categorias do
conhecimento, a qualidade das imagens em sua prosa, e, principalmente, a
ética pessoal. Conforme já sustentei, Campos de Carvalho é surreal no
que escreveu e também no silêncio e isolamento, pelo modo como voltou as
costas ao componente mundano da vida literária.
Na década de 60 reaparece a
identificação de poetas brasileiros com o surrealismo. O que houve nesse
período da nossa literatura obriga a rebater a idéia de um surrealismo
tardio, o “tardosurrealismo” de críticos e comentaristas. Vistas do
século 21, coordenadas temporais tornam-se relativas. Philip Lamantia,
principal nome de um surrealismo na poesia norte-americana, ser uns dez
anos mais velho do que alguns de nós, no plano da História, do tempo
real, não é nada. Assim como é pouco Mário Cesariny e seus companheiros
terem promovido agitações e lançado manifestos, em Portugal, uns dez ou
quinze anos antes de nos movermos nessa direção – e até depois: as
reuniões no Café Gelo foram até 1963, quando já fazíamos anarquia por
aqui. E Juan Calzadilla e os demais venezuelanos do Techo de la Ballena,
movimento e revista lançados em 1963, portanto rigorosamente
contemporâneos? Isso, entre outros exemplos, além das defasagens
anteriores, da ordem de 50 anos no caso do Romantismo, e décadas no
Parnasianismo e Simbolismo. Ao lermos Le Surrealisme Même e La Bréche
(onde seríamos comentados, Sérgio Lima, Roberto Piva e eu, em 1965), ao
comprarmos os volumes da Oeuvre
Complète de Artaud à medida que saíam pela Gallimard, ou livros da
Beat em primeira edição, éramos atualizados, e não atrasados. Até hoje,
promover a leitura, por exemplo, de um
La Liberté ou l’amour! de
Robert Desnos, de 1928 ou de um
Sens-plastique de Malcolm de Chazal, de 1949, é trazer à tona o que
o Brasil desconhece; o novo, independentemente da data originária de
publicação.
Já foi observado o caráter
negativo do conjunto de 20 ou
30 poetas que figuram como Geração 60 em São Paulo: nem beletristas
acadêmicos, nem concretistas, nem engajados de orientação
nacional-populista. Isso, como aspecto de uma negação mais ampla, da
emergente sociedade industrial, da massificação, da própria cidade. Nada
de estranho, portanto, que o mais radical desses poetas, Roberto Piva,
também mostrasse a poesia mais impregnada de surrealismo, desde
Paranóia (Instituto Moreira
Salles, 2000; primeira edição, Massao Ohno, 1963), com seu discurso
veemente na primeira pessoa, pronunciado por um “eu” não apenas lírico,
porém enfurecido, conforme já observei aqui, em Agulha. Em livros
subseqüentes, até Ciclones
(Nankin Editorial, 2000),
manteria a riqueza imagética. A desenvoltura com que não apenas cita,
mas dialoga com poetas como Chazal, Crevel, e os marcos iniciais,
Rimbaud, Lautréamont e Baudelaire, impossibilitam dúvidas sobre como
situá-lo e qualificá-lo; menos ainda, sua biografia de “maldito”
contemporâneo, à margem da ordem estabelecida.
Dos brasileiros do século 20,
Sérgio Lima é quem mais nitidamente poderia ser vinculado ao surrealismo
como movimento organizado, e não apenas modo de expressão, inclinação
pessoal e sistema de idéias. Ao juntar-se ao segmento mais rebelde dos
então “novíssimos”, em 1963, e lançar seu primeiro livro,
Amore (Massao Ohno, São
Paulo, 1963), vinha de Paris e de uma convivência com o movimento
francês. Seus esforços para promover atividade surrealista no Brasil, ao
longo de décadas, resultaram em reuniões e manifestações entre 1963 e
65, com a participação minha e de Piva, entre outros; a seguir, com
Leila Ferraz, Raul Fiker e Paulo Paranaguá, na preparação de uma
Exposição Internacional do Surrealismo e lançamento da publicação
coletiva A Phala, em 1967. E,
depois de um sem-número de intervenções e atividades coletivas entre
1990 e 1996, incluindo um manifesto e uma homenagem a André Breton, com
artistas plásticos e os poetas Juan Sanz Hernandez e Floriano Martins. O
legado de tudo isso está, em primeiro lugar, na obra do próprio Sérgio
Lima, poeta, artista plástico, ensaísta, animador e organizador de
manifestações. Vinculadas a esse ciclo, publicações de Leila Ferraz e
Raul Fiker (O Equivocrata,
Massao Ohno Editor, 1976), e a riqueza imagética de Juan Sanz Hernandes
(Biografia a três, Feira de
Poesia, 1979; Horas queridas,
Massao Ohno, 1985).
A tentativa de um movimento
surrealista brasileiro coincidiu com o ocaso do equivalente francês,
culminando com sua dissolução em 1968; e, em um segundo momento, com a
articulação entre grupos e movimentos em diferentes países para formar
um movimento internacional, mas sem clareza quanto à efetiva expressão
de cada um. Nada havia, nessas balizas externas, que se comparasse ao
vigor e impacto do surrealismo ao longo de quase meio século de
existência como movimento organizado. A década de 60 é lembrada por
acontecimentos ligados à contracultura norte-americana e depois mundial,
ao levante francês de 1968, etc, que correspondem a uma projeção da
rebelião romântica e à realização parcial de fundamentos do surrealismo
(a ponto de integrarem as célebres inscrições do maio parisiense). Foi
quando o movimento surrealista propriamente dito deixou de ser
vanguarda: reunia-se, publicava, porém sem reconhecer o alcance de
manifestações importantes, perdendo a consciência histórica aguda que
contribuiu para torná-lo presente em momentos decisivos das décadas
anteriores.
A tentativa de estruturar um
movimento surrealista no Brasil, a partir de 1963, incorreu, ainda, no
mesmo viés do modernismo brasileiro, que não enxergou seus antecedentes
em matéria de transgressão e inovação. Conforme apontado por inúmeros
estudiosos, Mário, Oswald e seus companheiros da Semana de 22
desconheciam Lima Barreto e seus desvios do beletrismo, bem como a
sugestiva poesia em prosa de Cruz e Souza e poetas mais inventivos que
constituem a marginália do Simbolismo, como Kilkerry; e, principalmente,
Sousândrade, que no século anterior realizara tanta coisa que o
modernismo iria propor. Assim, o empreendimento de 22 concentrou-se no
confronto entre formas abertas de escrever e o parnasianismo então
dominante no Brasil, de modo diverso do surrealismo, que sempre deu
importância ao que Breton denominou “correia de transmissão” com o
simbolismo. Do mesmo modo, nas reuniões surrealistas de São Paulo nos
anos 60 passou-se ao largo de antecedentes e contemporâneos
especificamente brasileiros. Rosário Fusco ainda errava por Cataguazes;
lia-se e apreciava-se Campos de Carvalho; mas ninguém se aproximou deles
para saber que tipo de diálogo seria possível. Reconstituição do
surrealismo no Brasil, suas imediações e afinidades, os excêntricos e
marginalizados pela tradição beletrista e positivista, por sua obra e
sua conduta, isso foi algo empreendido por Sérgio Lima, porém mais
recentemente.
Avançando cronologicamente,
chega-se a Afonso Henriques Neto. A publicação de Ser Infinitas
Palavras - poemas escolhidos e versos inéditos (Azougue Editorial,
2001) mostra um projeto literário pessoal, à margem da “poesia
marginal”, evidente até em escolhas de títulos reveladores de sua
poética: “Abismo com violinos”,
“Avenida Eros”, “Piano
mudo”, A água não
envelhece”, “Tímpanos
da neblina”. Sua visualidade permite observar que, se Francisco
Alvim foi o Manuel Bandeira da geração “marginal”, como pretendem
alguns, então esta tem em Afonso Henriques Neto seu Murilo Mendes. Mas
um Murilo sem catolicismo, sem nada além da reafirmação do poder
transformador da poesia.
A entrada recente em cena de
Floriano Martins, mais evidente com a publicação da coletânea de
entrevistas e poemas Escritura
conquistada - Diálogos com poetas latino-americanos
(Letra e Música, Fortaleza, 1998), a reunião de seus próprios
poemas Alma em chamas
(Letra e Música,
Fortaleza, 1998) e ainda o ensaio e antologia de Surrealismo na América
Latina, O Começo da busca
(Escrituras, 2001), possibilita considerações adicionais. Agitar esse
tema, hoje, é, não apenas inclinação pessoal, evidente nos poemas de
Floriano, em prosa ou verso longo, por vezes fragmentários, sempre sob o
signo da absoluta liberdade de criação. É questão, principalmente, de
honestidade intelectual. Quem for examinar o panorama poético
apresentado pelos países de língua espanhola e dispuser-se a ir além dos
monstros sagrados de praxe, que circulam aqui depois de aceitos no
mercado mundial, irá, forçosamente, enxergar surrealismo. Portanto,
trata-se, nesse e em outros casos, de fidelidade ao objeto de análise ou
divulgação, de não trair autores com quem se está trabalhando. Essa
preocupação, ética e não apenas exclusivamente literária, se traduz
também na orientação dada a esta Agulha. Reparar omissões, cobrir
lacunas, leva a tocar, de algum modo, no surrealismo.
O elenco de poetas que pode
ser associado a Surrealismo no Brasil é maior, ultrapassa os citados
aqui. Deve-se deslocar o foco, de um surrealismo militante, episódico,
conforme já visto, para uma configuração de obras pautadas pela
liberdade de imaginação e pela recusa de amarras formalistas. Isso
significa valorizar, entre outros que já pertencem à “geração 90”, a
prosa poética de Weydson Barros Leal (p. ex. em
A música da luz, edições
Bagaço, Recife, 1997); aquela, especialmente substanciosa, de Contador
Borges
(Angelolatria,
Iluminuras, São Paulo, 1998), não por acaso também tradutor e estudioso
de Nerval, Sade e Bataille; a recente lírica de Sérgio Cohn (Os
lábios dos afogados, Nankin, São Paulo, 1999), associada à
orientação da revista por ele dirigida, Azougue. E a tradição imagética
e hermética retomada de modo refinado por Jorge Lúcio de Campos, com
destaque para À Maneira Negra,
Sette Letras, Rio de Janeiro, 1997.
Acontecimentos como a
excelente repercussão da reedição de
Paranóia de Roberto Piva, o
relançamento, também despertando interesse, de autores como Campos de
Carvalho, José Alcides Pinto e o Rosário Fusco de
O Agressor, justificam
otimismo quanto ao futuro da circulação, não apenas do surrealismo
histórico, mas daquilo que lhe dá sentido: a inquietação, a rebelião, a
adesão à poesia como modo de transformar o mundo. E, principalmente, de
uma leitura que adote sua perspectiva, em vez de traí-la pelo viés de um
inequívoco academicismo universitário e cientificista. Hoje, surrealismo
continua valendo; justifica interesse e adesão, nem que seja por sua
eficácia como instrumento contra a burocratização do conhecimento.
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