REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 44 | fevereiro-março | 2014

 
 

 

 

CLAUDIO WILLER

S
urrealismo no Brasil

- Rebelião e imagens poéticas
 

 

Claudio Jorge Willer (São Paulo, 1940). Poeta, ensaísta, crítico e tradutor brasileiro, ligado sobretudo ao surrealismo e à geração beat.        

 

EDITOR | TRIPLOV

 
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Antes de apresentar brasileiros que poderiam ser vinculados ao Surrealismo e especificar suas relações com esse movimento, convém verificar o que a crítica literária tem a dizer a respeito. Até há pouco, a palavra final era aquela de José Paulo Paes: “Do surrealismo literário no Brasil quase se poderia dizer o mesmo que da batalha de Itararé: não houve”. Isso, no ensaio “O surrealismo na literatura brasileira”, publicado na coletânea Gregos e Baianos (Brasiliense, 1985), onde expunha razões pelas quais expoentes do Modernismo como Mário de Andrade não o haviam endossado.

Ao mesmo tempo, Paes comentava escritores que, pela escrita onírica ou delirante, podiam ser associados a esse movimento. Teve o mérito, por isso, de chamar a atenção para figuras à margem: o narrador Adelino Magalhães (1887-1963), catalogado como impressionista, e que, cronologicamente, só poderia ser arrolado como precursor; Prudente de Morais Neto (1895-1961), jornalista que, participando do mo0vimento modernista, dirigiu a revista Estética junto com Sergio Buarque de Holanda; e Sosígenes Costa (1901-1968), poeta original, com algo de “maldito”, assim novamente contribuindo para seu resgate.

Paes voltaria ao assunto ao resenhar a coletânea de entrevistas e traduções Escritura Conquistada de Floriano Martins, utilizando, a propósito das suas preocupações e das escolhas de entrevistados, a expressão “tardosurrealismo” (em “Uma América para-surrealista”, Jornal da Tarde, São Paulo, 11/07/98). Sua morte, logo a seguir, impossibilitou uma discussão que só poderia ser produtiva e esclarecedora. De qualquer modo, idéias expostas em “O surrealismo na literatura brasileira” mostram que houve uma convergência de julgamentos por figuras de primeiro plano da crítica brasileira: Antonio Candido, Silviano Santiago (citados no ensaio de Paes) e Wilson Martins (em “Continente de poetas”, Suplemento Prosa & Verso do jornal O Globo, Rio de Janeiro, 29/08/98). Abarcou, além dos gregos e baianos do título daquela coletânea de ensaios, os próprios gregos e troianos da crítica brasileira, qual gatos do mesmo saco.

O artigo “Surrealismo no Brasil” de Antonio Candido (em Brigada Ligeira e outros escritos, Editora Unesp), invocado por José Paulo Paes, trata de O Agressor, romance de Rosário Fusco (1910-1977) publicado em 1943. Provoca espanto como esse texto pode estar na seqüência, nesse livro, do que ele escreveu sobre Clarice Lispector. É como se fossem dois críticos, adotando paradigmas opostos. Perto do Coração Selvagem, em uma apreciação pioneira que exemplifica sua enorme contribuição à crítica, é, para Candido, uma “verdadeira reforma do pensamento literário”; a ruptura com “um certo conformismo estilístico” que afetaria grandes nomes da narrativa realista: fez, portanto, revisão crítica do realismo, a corrente literária então de maior prestígio, quando não dominante. O Agressor de Fusco ensejou reparos ao “super-realismo”; a uma “tendência irracionalista” reduzida à “crise desse espírito, desintegrado pelo individualismo burguês e, em seguida, pela crise do capitalismo”. Interessaria como “ilustração desta crise”. Em um paralelo de Rosário Fusco com o Kafka de O Processo, afirmou: “No livro de um brasileiro, não poderá subjazer necessidade vital alguma de tal ordem, a não ser a título de abstração intelectual”. Isso podia ser assinada por um defensor do “realismo socialista”. Aliás, a crítica soviética ao surrealismo e à literatura do absurdo foi exatamente essa, apontando-o como sintoma da decadência burguesa ao lado da psicanálise e tudo que não se ajustasse à cartilha determinista. É como se o Lukács mais dogmático, de “O assalto à razão”, contendor não só do surrealismo mas do romantismo, existencialismo e literatura do absurdo, tivesse, naquele momento, baixado, encarnado em Antonio Candido – se foi isso o que aconteceu, felizmente, logo afastou-se.

A propósito de correntes dominantes na crítica brasileira, e da convergência de opostos na rejeição do surrealismo, há, ainda, uma crítica formalista, bem representada por Haroldo de Campos em “Poesia Concreta – Linguagem – Comunicação”, publicado em Teoria da Poesia Concreta – Textos críticos e manifestos (Livraria Duas Cidades, 1975). O poeta e pensador do concretismo estabeleceu “uma distinção fundamental entre o poema concreto e o poema surrealista. O surrealismo, defrontando-se com a barreira da lógica tradicional, não procurou desenvolver uma linguagem que a superasse”. Por isso, embora se insurja contra a lógica, é apenas o filho bastardo dessa”.

A poesia e crítica concretista ainda transitaria por vias mais amplas que as da sua afirmação enfática nos anos 50, e Haroldo de Campos sabia que a “barreira da lógica” é negada pelo pensamento analógico, que desconhece o princípio da identidade. Talvez nem fosse preciso perguntar-lhe porque, então, o que registramos ao sonhar se parece a obras surrealistas, e não a poemas concretos; esses, ao menos em sua manifestação mais ortodoxa, resultado de um hiper-racionalismo fundado no cientificismo, nem em pesadelos.

Revisões desse tipo de julgamento, rechaçando o surrealismo, demorariam para vir. Um de seus marcos, a coletânea Surrealismo e novo mundo, organizada por Robert Ponge (Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1999), com dois ensaios, “Modernismo, vanguardas e surrealismo no Brasil” de Valentim Facioli, e “Surrealismo no Brasil: mestiçagem e seqüestros” de Sérgio Lima. Facioli, que organizou Breton-Troski: por uma arte revolucionária independente (Paz e Terra, 1985), fala em “perversão, apagamento da memória, soterramento, verdadeiro exílio das culturas dos dominados e das obras libertárias”, a propósito de marginalização de “manifestações surrealistas que se produziram - e se produzem - na América Latina”. Associa-a ao nacionalismo anti-cosmopolita como política de estado, a serviço da “modernização conservadora e seletiva, constituídas por um moderno atrasado ou um atraso modernizado”; ou seja, do Estado Novo brasileiro, conduzido por Getulio Vargas. Para Facioli, correntes tão antagônicas como integralistas, comunistas da ALN e do PCB, e, sem mencioná-lo explicitamente, agentes da política cultural pública como Mário de Andrade, seriam componentes dessa configuração nacionalista-retrógrada avessa ao surrealismo.

Sérgio Lima, autor de A Aventura Surrealista (tomo 1 pelas editoras Vozes/ Unesp/ Unicamp, 1995; tomo 2 pela Edusp, 2010), fala em “seqüestro”, adotando a metáfora de Haroldo de Campos para a exclusão do barroco de Gregório de Matos e Antonio Vieira de histórias da literatura brasileira. Revê cronologias para demonstrar que havia, sim, atividade surrealista importante associada ao modernismo brasileiro, convertida em história subterrânea, a ser relatada, assim cobrindo espaços em branco, corrigindo datas alteradas em biografias e cronologias. Enquanto se supõe que a escrita de Murilo Mendes e Jorge de Lima teria se tornado onírica, com maior riqueza de imagens, a partir da conversão ao catolicismo em 1933, Sérgio diz que não, que ambos já tinham conhecimento e contato com o surrealismo francês antes. Assim, quando supostamente estariam entrando no surrealismo, na verdade estariam saindo. Declarações de Murilo Mendes sobre a adoção de um “estilo”, apenas, do surrealismo, e “à moda brasileira”, não denotariam adesão, porém abandono. Não só no caso desses dois grandes nomes de nossa literatura, mas em outros, como o dos autores que se reuniram ao redor da revista Verde, de Cataguazes, liderados por Rosário Fusco, haveria uma história não revelada de envolvimento com esse movimento.

Diante da controvérsia e do grau de confusão já lançada sobre o tema, convém deixar claro do que estamos falando, evitando o surrealismo de cada um, significante à deriva, ao sabor de uma diversidade de sentidos. Figurando entre os movimentos catalogados como vanguardas, foi aquele que mais resistiu a essa classificação, entre outras razões, pela duração. Desempenhou um papel importante na década de 30, período de internacionalização e participação ativa nos debates que antecederam e anteviram a catástrofe da Segunda Guerra. Nos anos 40 e 50, de modo precursor, questionou a dicotomia imposta pela Guerra Fria entre estalinismo e macarthismo. Sob a ótica surrealista, que deveria ser levada em conta, vanguardas teriam se preocupado com questões formais, de estética, ligadas à expressão artística e literária. Já o surrealismo estava preocupado com a vida, com a transformação do mundo. A produção artística e literária foi o modo de expressar esse ímpeto transformador.

Não deixa de ser um estimulante paradoxo que, recusando o confinamento ao campo das artes e literatura, ao mesmo tempo houvesse constituído um impressionante conjunto de realizações em literatura e artes, inclusive objetos, colagens e fotografia, cinema, e o que viria a ser chamado de happening, performance, intervenção. Contudo, tem que ser considerado, em primeira instância, como movimento de idéias, reflexão sobre a relação entre poesia e sociedade, arte e política, criação e vida. A busca da unidade é seu fundamento, justificando os paralelos com doutrinas orientais por Octavio Paz, em La búsqueda del comienzo.

Por isso, a dimensão filosófica é inseparável da produção artística. Não existe “forma” surrealista, uma exterioridade dissociada das idéias, e a atenção à sua “estética” pode fazer passar desapercebido o que é realmente subversivo nesse movimento. Não há contradição entre essa dimensão e a afirmação da autonomia do mundo simbólico nas páginas iniciais do Primeiro Manifesto, em uma veemente crítica à visão cientificista e mecanicista do mundo: “...a atitude realista (...) parece-me hostil a todo impulso de liberação intelectual e moral”. Daí o elogio à imaginação, identificada à “maior liberdade de espírito”.

Isso não impede que se identifique uma poética surrealista, usando a idéia de imagem tal como formulada por Pierre Reverdy, que desse modo codificou as operações sobre a linguagem da vertente radicalmente inovadora do Simbolismo, dos Rimbaud, Corbiére, Germain Nouveau, Jarry, e, principalmente, Lautréamont. Para Reverdy, a imagem poética se dá através da “aproximação de realidades diferentes”; e será tanto mais forte “quanto mais distantes forem essas realidades” assim aproximadas. No autor de Sources du Vent, tais idéias se realizam através de um modo poético que iria reaparecer, de forma radical, na lírica surrealista, em passagens como esta de Je sublime de Benjamin Péret: “Rosa de jasmim na noite da lavagem dos linhos/ Rosa de casa assombrada/ Rosa de floresta negra inundada de selos azuis e verdes/ Rosa de papagaio-de-papel sobre um terreno baldio onde brigam crianças/ Rosa de fumaça de charuto/ Rosa de espuma de mar feita cristal/ Rosa” (Amor Sublime - Ensaio e poesia, Editora Brasiliense, 1985, tradução de Sérgio Lima e Pierre Clemens). E em tantos outros autores e obras assimiláveis a esse movimento, além dos que dele participaram e depois se se afastaram, integrando igualmente o melhor da lírica do século XX, a exemplo de Jacques Prévert e René Char.

Enfim, há dois modos de olhar o surrealismo. Um deles, voltado a um surrealismo manifesto, mais evidente, que examina obras, poéticas inclusive, mostrando nelas a ocorrência da imagem. O outro desloca o foco para o autor e para uma atitude surrealista. Se um de seus fundamentos é a busca da unidade do real e imaginário, simbólico e factual, conseqüentemente, de autor e obra, tais olhares não são excludentes, porém complementares. Mas, conforme a atenção maior a um ou outro, obra ou autor, produção ou atitude, a história do surrealismo no Brasil muda consideravelmente.

Tomando a poesia no sentido estrito, como gênero literário, os dois grandes nomes associados ao surrealismo no Brasil são mesmo Murilo Mendes e Jorge de Lima. Quanto a Murilo Mendes, independentemente de adotar-se a cronologia vigente de sua obra ou a revisão sugerida por Sérgio Lima, o fato é que, a partir de 1930, a exacerbação da experiência religiosa resulta na busca de traduzir o indizível, a experiência revelada; em suas palavras, a Poesia em Pânico, movido pela urgência diante de um apocalipse que acaba por realizar-se nos horrores da Segunda Guerra Mundial. Seus antecedentes estão, nem tanto no Surrealismo, mas em um exasperado e até bombástico catolicismo literário francês cujo expoente foi Léon Bloy. Contudo, o rótulo de “poeta católico” reduz o alcance de uma lírica plural, na qual, tomando o conjunto de sua obra, se encontra o que houve de inovador e relevante em seu tempo. Há uma linha evolutiva, da “poesia em Cristo”, escrita como se fosse para substituir a oração, até o ganho em síntese e vigor de As Metamorfoses, de 1941: “Estamos vestidos de alfabeto,/ Não sabemos nosso nome.// Cavalos brancos vermelhos/ Mastigam o mundo:/ Olhai a sombra da terra,/ Uma enorme guilhotina.// Galopa fantasma/ Vida contra a vida”. O misticismo é associado ao lirismo e até ao erótico, retomando o que escrevia antes, como em “O Visionário”: “O rio da noite banha/ O alicerce das tuas pernas”. Poeta de imagens visualmente sugestivas, que poderiam passar por descrições de quadros de Magritte, Delvaux, Dali e do próprio Ismael Nery, resumiu, em 1935, uma questão à qual Breton dedicaria páginas de O amor louco logo a seguir, em 1938: “Muro, nuvem do pintor”.

Tudo o que há para ser dito sobre Murilo Mendes vale, em maior grau, para Jorge de Lima. Mesmo admitindo, como quer Sérgio Lima, a precedência surrealista, mais evidente com a atenção à sua prosa e produção como artista plástico, incluindo “fotomontagens”, na verdade colagens, Jorge de Lima é um poeta de fases, de etapas na criação poética. Teve o período parnasiano, nativista-regionalista, católico, onírico-surreal, até a grande síntese, Invenção de Orfeu. O onírico-surreal está em Anunciação e encontro de Mira-Celi, série de poemas, alguns em prosa, como se fossem paisagens de sonho, onde os contornos se dissolvem e as coisas se metamorfoseiam. Sem perder a riqueza de imagens, retoma as formas fixas no Livro de Sonetos, quem sabe o ponto máximo do gênero em nossa literatura do século 20, a uma enorme distância dos preciosismos parnasianos: “Entre a raiz e a flor: o tempo e o espaço,/ e qualquer coisa além: a cor dos frutos,/ a seiva estuante, as folhas imprecisas/ e o ramo verde como um ser colaço”. Apresenta uma reflexão sobre a poesia, afim a idéias surrealistas: “Não procureis qualquer nexo naquilo/ que os poetas pronunciam acordados,/ pois eles vivem no âmbito intranqüilo/ em que se agitam seres ignorados”. São palavras que anunciam a poesia hermética e cósmica de Invenção de Orfeu, onde reitera a idéia do poeta sonâmbulo, em transe febril ao descer a um mundo arquetípico, pré-verbal e pré-civilizado: “O céu jamais me dê a tentação funesta/ de adormecer ao léu, na lomba da floresta,// onde há visgo, onde certa erva sucosa e fria/ carnívora de certo o sono nos espia (...)  Minha cabeça estava em pedra, adormecida,/ quando me sobreveio a cena pressentida.// Em sonâmbulo arriei os pés e as mãos culpados/ dos passos e dos gestos em vão desperdiçados.(...) Pra unidade deste poema,/ ele vai durante a febre”.

Uma questão insuficientemente examinada é aquela do surrealismo como instrumento de leitura, para enriquecer compreensão de obras, independentemente de seu vínculo direto. Pois bem: incorporando o olhar surrealista, tornando-o instrumento de leitura, Murilo Mendes e Jorge de Lima crescem, consolidam-se como vultos de primeira grandeza na literatura brasileira. A propósito, pode-se observar, na ensaística de Breton e outros autores ligados ao movimento, após o desprezo pelo literário da “fase heróica” sob o impulso de Dada, a identificação entre o surreal e o poético. Vê-se subentendido, na adoção de outros autores como antecedentes, já na Anthologie de l’humour noir, bem como a retomada das demonstrações de admiração por um Victor Hugo, por exemplo; de que, quanto maior seu valor poético, tanto mais será afim ao Surrealismo..

Contudo, introduzir o viés surrealista na discussão da poesia brasileira significa identificar autor e obra, falar de um quando se fala da outra, na busca da unidade entre arte e vida. Da impossibilidade de separar autor e obra decorre a preocupação com uma ética, aparentemente paradoxal, ao elevar a transgressão à categoria de valores, porém indissociável de uma estética, da qual resultaram exclusões e ataques. Por exemplo, os escandalosos panfletos contra Anatole France e Paul Claudel voltavam-se, nem tanto contra o que escreviam, mas contra sua conduta, o oficialismo, a política literária, etc.

Voltando a Jorge de Lima, a coerência, inseparável de qualidades da obra, faz sua estatura crescer. Em seu processo criativo, os transes, despertando no meio da noite para escrever, foram reais, fatos biográficos (.quem chegou a comentar comigo essas ocorrências em Jorge foi Lúcio Cardoso, fonte autorizada, pela amizade de ambos). Permitem aproximações à escrita automática e ao sono hipnótico. Demonstram fidelidade ao impulso criador, realizando a frase de Octavio Paz: “O poeta não se serve das palavras. É o seu servidor”. Além disso, abraçando o catolicismo, foi mais longe e o ultrapassou, para chegar à religiosidade primordial que incorpora o êxtase pagão. Daí o apelo ao telúrico em Invenção de Orfeu, a temática do mineral, do subsolo, signo da descida ao inconsciente e da experiência religiosa arcaica.

Olhando o vivido, e não só o escrito, encontramos surrealismo na manifestação mais significativa associada ao Modernismo, a Antropofagia. O sentido do que Oswald, Tarsila e Bopp desenvolviam torna-se evidente pela acolhida a Bejamin Péret em sua vinda ao Brasil em 1929, um capítulo importante, não de literatura ou arte, mas daquilo que a precede, a aventura surrealista. Preocupações do grupo antropófago convergiam com a busca do outro, da alteridade por Péret, levando-o à compilação de mitos de índios brasileiros, ao contato com os rituais sincréticos, umbanda e candomblé, e a examinar episódios mal contados da nossa história, do que resultou um livro sobre o “almirante negro” João Cândido, líder da Revolta da Chibata. A estada de Péret, que se casou com a cantora carioca Elsie Houston, encerrou-se com sua prisão e deportação, e com a destruição pela polícia dos originais daquele livro. Sua volta ao Brasil se daria em 1951, quando coligiu novo material para Mithes et légendes des peuples de L’Amérique Latine.

Traços desse momento podem estar em passagens de Oswald, como o poema-colagem O Escaravelho de Ouro, de 1946: “Eliminarás a doença e o bário/ Restará o deleite dos homens/ Porque foste o andrógino”. Contudo, se a vida interessa, em conexão com a obra, há mais a relatar. Principalmente, o modo como uma vanguarda intelectual e política articulou-se, através de Péret, com o surrealismo. Incluiu nomes ligados a um movimento antropófago e à formação de uma esquerda trotskista: Patrícia Galvão, a Pagu, Flávio de Carvalho e Mário Pedrosa. Pagu e Flávio de Carvalho chegaram a ser hóspedes de Péret e Elsie Houston em Paris, em 1934-35, acompanhando os debates que moveram Breton a escrever Position Politique du Surréalisme (conforme Pagu - Vida e Obra, de Augusto de Campos, Editora Brasiliense, 1982).

Dando atenção à coerência e integridade, o nome mais significativo do Surrealismo no Brasil é o de Flávio de Carvalho. Vista pelo aspecto exterior, sua pintura é associada ao expressionismo. Mas suas provocações famosas, a intervenção em uma procissão acarretando um quase linchamento em 1931, e as roupagens tropicais nos anos 50, são surrealismo autêntico, na exteriorização e nas intenções. E também sua atuação como arquiteto, esquivando-se a um mercado emergente de arquitetura “moderna” de orientação funcionalista, questionando-o, para concentrar-se em uns poucos projetos que o motivavam. Acima de tudo, o texto teatral Bailado do deus morto, proibido pela polícia ao estrear em 1933, resultando no fechamento do teatro, assim como, logo a seguir, também teria uma exposição proibida. Coragem, posição clara de recusa da ordem estabelecida, isso sim, é surrealismo, além da sua assimilação das idéias de Freud, estímulo à apresentação de manifestações de outros artistas surrealistas, e isso até 1967, e a valorização da arte dos “alienados”, conforme apontado por Sérgio Lima (“Os anos modernistas de Flávio de Carvalho”, revista Xilo, n. 1, Fortaleza, Ceará, setembro de 1999). A propósito da censura a Flávio de Carvalho, e do banimento de Péret, convém observar que a circulação restrita do surrealismo entre nós deve muito à repressão policial, e não só a uma adesão de nossos intelectuais à razão consciente, à realidade nacional, ao que fosse.

De fato, sobra pouco, até os anos 60, para ser indicado como surrealista em nossa poesia. Quanto a Sosígenes Costa, a qualificação caberia, nem tanto pela poesia excêntrica, mas, novamente, pela conduta íntegra, ao colocar-se à margem da vida literária instituída; daí o resgate tardio. Caberia, no capítulo da expressão surrealista no Brasil, a referência a Paulo Mendes Campos, esperando-se que a etapa seguinte a seu resgate como cronista seja o reconhecimento de sua poesia em prosa, de imagens e associações livres, como o “Poema das Aproximações”. Para essa e outras passagens da sua obra, vale o que foi dito sobre surrealismo como instrumento de leitura e recuperação de valores literários. No âmbito da geração de 45, há autores postos em segundo plano, quase como sua periferia lunática, como Fernando Ferreira de Loanda e André Carneiro, a demandarem reexame.

Afora isso, onde se vai encontrar poesia surrealista no Brasil é na prosa. Citar prosadores em um texto sobre poesia não é incoerente, pois o Surrealismo jamais aceitou a diferença entre gêneros: antes, aboliu-a em obras como Nadja e O Amor Louco de Breton, onde há de tudo, poesia, prosa, crônica, ensaio. E, desde o primeiro Manifesto, esconjurou a narrativa realista por seu dualismo, ao separar entidades, uma delas o texto, outra, a “realidade” retratada ou mimetizada no texto. Por isso, cabe a menção a uma estirpe de autores à margem do realismo, dominante no Brasil até o aparecimento de Clarice Lispector e Guimarães Rosa. Além de Aníbal Machado, outros, pela condição de “malditos”, se não surrealistas, ao menos foram lautreamontianos. Principalmente Rosário Fusco, em boa hora reeditado (O Agressor, Editora ao Livro Técnico, Rio de Janeiro, 2000).

Desse elenco de prosadores, talvez a inclusão indispensável seja a de Campos de Carvalho, por sua afinidade declarada, a narrativa descontínua e onírica, a crítica a valores e categorias do conhecimento, a qualidade das imagens em sua prosa, e, principalmente, a ética pessoal. Conforme já sustentei, Campos de Carvalho é surreal no que escreveu e também no silêncio e isolamento, pelo modo como voltou as costas ao componente mundano da vida literária.

Na década de 60 reaparece a identificação de poetas brasileiros com o surrealismo. O que houve nesse período da nossa literatura obriga a rebater a idéia de um surrealismo tardio, o “tardosurrealismo” de críticos e comentaristas. Vistas do século 21, coordenadas temporais tornam-se relativas. Philip Lamantia, principal nome de um surrealismo na poesia norte-americana, ser uns dez anos mais velho do que alguns de nós, no plano da História, do tempo real, não é nada. Assim como é pouco Mário Cesariny e seus companheiros terem promovido agitações e lançado manifestos, em Portugal, uns dez ou quinze anos antes de nos movermos nessa direção – e até depois: as reuniões no Café Gelo foram até 1963, quando já fazíamos anarquia por aqui. E Juan Calzadilla e os demais venezuelanos do Techo de la Ballena, movimento e revista lançados em 1963, portanto rigorosamente contemporâneos? Isso, entre outros exemplos, além das defasagens anteriores, da ordem de 50 anos no caso do Romantismo, e décadas no Parnasianismo e Simbolismo. Ao lermos Le Surrealisme Même e La Bréche (onde seríamos comentados, Sérgio Lima, Roberto Piva e eu, em 1965), ao comprarmos os volumes da Oeuvre Complète de Artaud à medida que saíam pela Gallimard, ou livros da Beat em primeira edição, éramos atualizados, e não atrasados. Até hoje, promover a leitura, por exemplo, de um La Liberté ou l’amour! de Robert Desnos, de 1928 ou de um Sens-plastique de Malcolm de Chazal, de 1949, é trazer à tona o que o Brasil desconhece; o novo, independentemente da data originária de publicação.

Já foi observado o caráter negativo do conjunto de 20 ou 30 poetas que figuram como Geração 60 em São Paulo: nem beletristas acadêmicos, nem concretistas, nem engajados de orientação nacional-populista. Isso, como aspecto de uma negação mais ampla, da emergente sociedade industrial, da massificação, da própria cidade. Nada de estranho, portanto, que o mais radical desses poetas, Roberto Piva, também mostrasse a poesia mais impregnada de surrealismo, desde Paranóia (Instituto Moreira Salles, 2000; primeira edição, Massao Ohno, 1963), com seu discurso veemente na primeira pessoa, pronunciado por um “eu” não apenas lírico, porém enfurecido, conforme já observei aqui, em Agulha. Em livros subseqüentes, até Ciclones (Nankin Editorial, 2000), manteria a riqueza imagética. A desenvoltura com que não apenas cita, mas dialoga com poetas como Chazal, Crevel, e os marcos iniciais, Rimbaud, Lautréamont e Baudelaire, impossibilitam dúvidas sobre como situá-lo e qualificá-lo; menos ainda, sua biografia de “maldito” contemporâneo, à margem da ordem estabelecida.

Dos brasileiros do século 20, Sérgio Lima é quem mais nitidamente poderia ser vinculado ao surrealismo como movimento organizado, e não apenas modo de expressão, inclinação pessoal e sistema de idéias. Ao juntar-se ao segmento mais rebelde dos então “novíssimos”, em 1963, e lançar seu primeiro livro, Amore (Massao Ohno, São Paulo, 1963), vinha de Paris e de uma convivência com o movimento francês. Seus esforços para promover atividade surrealista no Brasil, ao longo de décadas, resultaram em reuniões e manifestações entre 1963 e 65, com a participação minha e de Piva, entre outros; a seguir, com Leila Ferraz, Raul Fiker e Paulo Paranaguá, na preparação de uma Exposição Internacional do Surrealismo e lançamento da publicação coletiva A Phala, em 1967. E, depois de um sem-número de intervenções e atividades coletivas entre 1990 e 1996, incluindo um manifesto e uma homenagem a André Breton, com artistas plásticos e os poetas Juan Sanz Hernandez e Floriano Martins. O legado de tudo isso está, em primeiro lugar, na obra do próprio Sérgio Lima, poeta, artista plástico, ensaísta, animador e organizador de manifestações. Vinculadas a esse ciclo, publicações de Leila Ferraz e Raul Fiker (O Equivocrata, Massao Ohno Editor, 1976), e a riqueza imagética de Juan Sanz Hernandes (Biografia a três, Feira de Poesia, 1979; Horas queridas, Massao Ohno, 1985).

A tentativa de um movimento surrealista brasileiro coincidiu com o ocaso do equivalente francês, culminando com sua dissolução em 1968; e, em um segundo momento, com a articulação entre grupos e movimentos em diferentes países para formar um movimento internacional, mas sem clareza quanto à efetiva expressão de cada um. Nada havia, nessas balizas externas, que se comparasse ao vigor e impacto do surrealismo ao longo de quase meio século de existência como movimento organizado. A década de 60 é lembrada por acontecimentos ligados à contracultura norte-americana e depois mundial, ao levante francês de 1968, etc, que correspondem a uma projeção da rebelião romântica e à realização parcial de fundamentos do surrealismo (a ponto de integrarem as célebres inscrições do maio parisiense). Foi quando o movimento surrealista propriamente dito deixou de ser vanguarda: reunia-se, publicava, porém sem reconhecer o alcance de manifestações importantes, perdendo a consciência histórica aguda que contribuiu para torná-lo presente em momentos decisivos das décadas anteriores.

A tentativa de estruturar um movimento surrealista no Brasil, a partir de 1963, incorreu, ainda, no mesmo viés do modernismo brasileiro, que não enxergou seus antecedentes em matéria de transgressão e inovação. Conforme apontado por inúmeros estudiosos, Mário, Oswald e seus companheiros da Semana de 22 desconheciam Lima Barreto e seus desvios do beletrismo, bem como a sugestiva poesia em prosa de Cruz e Souza e poetas mais inventivos que constituem a marginália do Simbolismo, como Kilkerry; e, principalmente, Sousândrade, que no século anterior realizara tanta coisa que o modernismo iria propor. Assim, o empreendimento de 22 concentrou-se no confronto entre formas abertas de escrever e o parnasianismo então dominante no Brasil, de modo diverso do surrealismo, que sempre deu importância ao que Breton denominou “correia de transmissão” com o simbolismo. Do mesmo modo, nas reuniões surrealistas de São Paulo nos anos 60 passou-se ao largo de antecedentes e contemporâneos especificamente brasileiros. Rosário Fusco ainda errava por Cataguazes; lia-se e apreciava-se Campos de Carvalho; mas ninguém se aproximou deles para saber que tipo de diálogo seria possível. Reconstituição do surrealismo no Brasil, suas imediações e afinidades, os excêntricos e marginalizados pela tradição beletrista e positivista, por sua obra e sua conduta, isso foi algo empreendido por Sérgio Lima, porém mais recentemente.

Avançando cronologicamente, chega-se a Afonso Henriques Neto. A publicação de Ser Infinitas Palavras - poemas escolhidos e versos inéditos (Azougue Editorial, 2001) mostra um projeto literário pessoal, à margem da “poesia marginal”, evidente até em escolhas de títulos reveladores de sua poética: “Abismo com violinos”, “Avenida Eros”, “Piano mudo”, A água não envelhece”, “Tímpanos da neblina”. Sua visualidade permite observar que, se Francisco Alvim foi o Manuel Bandeira da geração “marginal”, como pretendem alguns, então esta tem em Afonso Henriques Neto seu Murilo Mendes. Mas um Murilo sem catolicismo, sem nada além da reafirmação do poder transformador da poesia.

A entrada recente em cena de Floriano Martins, mais evidente com a publicação da coletânea de entrevistas e poemas Escritura conquistada - Diálogos com poetas latino-americanos (Letra e Música, Fortaleza, 1998), a reunião de seus próprios poemas Alma em chamas (Letra e Música, Fortaleza, 1998) e ainda o ensaio e antologia de Surrealismo na América Latina, O Começo da busca (Escrituras, 2001), possibilita considerações adicionais. Agitar esse tema, hoje, é, não apenas inclinação pessoal, evidente nos poemas de Floriano, em prosa ou verso longo, por vezes fragmentários, sempre sob o signo da absoluta liberdade de criação. É questão, principalmente, de honestidade intelectual. Quem for examinar o panorama poético apresentado pelos países de língua espanhola e dispuser-se a ir além dos monstros sagrados de praxe, que circulam aqui depois de aceitos no mercado mundial, irá, forçosamente, enxergar surrealismo. Portanto, trata-se, nesse e em outros casos, de fidelidade ao objeto de análise ou divulgação, de não trair autores com quem se está trabalhando. Essa preocupação, ética e não apenas exclusivamente literária, se traduz também na orientação dada a esta Agulha. Reparar omissões, cobrir lacunas, leva a tocar, de algum modo, no surrealismo.

O elenco de poetas que pode ser associado a Surrealismo no Brasil é maior, ultrapassa os citados aqui. Deve-se deslocar o foco, de um surrealismo militante, episódico, conforme já visto, para uma configuração de obras pautadas pela liberdade de imaginação e pela recusa de amarras formalistas. Isso significa valorizar, entre outros que já pertencem à “geração 90”, a prosa poética de Weydson Barros Leal (p. ex. em A música da luz, edições Bagaço, Recife, 1997); aquela, especialmente substanciosa, de Contador Borges (Angelolatria, Iluminuras, São Paulo, 1998), não por acaso também tradutor e estudioso de Nerval, Sade e Bataille; a recente lírica de Sérgio Cohn (Os lábios dos afogados, Nankin, São Paulo, 1999), associada à orientação da revista por ele dirigida, Azougue. E a tradição imagética e hermética retomada de modo refinado por Jorge Lúcio de Campos, com destaque para À Maneira Negra, Sette Letras, Rio de Janeiro, 1997.

Acontecimentos como a excelente repercussão da reedição de Paranóia de Roberto Piva, o relançamento, também despertando interesse, de autores como Campos de Carvalho, José Alcides Pinto e o Rosário Fusco de O Agressor, justificam otimismo quanto ao futuro da circulação, não apenas do surrealismo histórico, mas daquilo que lhe dá sentido: a inquietação, a rebelião, a adesão à poesia como modo de transformar o mundo. E, principalmente, de uma leitura que adote sua perspectiva, em vez de traí-la pelo viés de um inequívoco academicismo universitário e cientificista. Hoje, surrealismo continua valendo; justifica interesse e adesão, nem que seja por sua eficácia como instrumento contra a burocratização do conhecimento.

 
 

In: A Ideia - Revista de Cultura Libertária, nº 71-72. Évora, 2013.

 

 

© Maria Estela Guedes
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