REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 42-43 | dezº 2013-janº 2014

 
 

 

MANUELA NOGUEIRA

Conversas com a

Tia Valentina

Escrito no ano de 2012

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
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Personagens principais deste livro

 

·         Tia Valentina de 72 anos em boa forma física e mental. Viúva de um médico.

·         Tem dois filhos adultos: Miguel, o mais velho, tirou um ano de frequência da faculdade para observar o que se passava nos territórios de Israel e da Palestina; João, o mais novo, depois de se separar da Mónica, foi por um curto tempo ter com o irmão.

·          A sobrinha, a Vera, contadora da história, é filha de Sofia, irmã de Valentina. Sofia foi casada com Álvaro e morreu cedo. Vera é casada com Zé, médico.

·         A Vera e o Zé têm uma filha, a  Luísa, e um filho o Tiago. A Luísa é casada com Diogo. O filho Tiago está colocado profissionalmente em Portobelo, na América.

·         Loti é a adolescente que está a ser cuidada na «Instituição das Mães Adolescentes» e a Vera, por aí trabalhar, interessa-se pelo seu problema.

·         Adelina, é a empregada que acompanha há muito tempo a família e que ajudou a criar Vera.

 

Prometi a mim própria contar a outros as conversas que temos tido ao longo da vida e que, em certos pontos, são comuns a muitas famílias. Não será fácil sequenciar os múltiplos assuntos que se vão apresentando à minha memória. Talvez depois da primeira arrumação dos textos possa ordená-los por épocas. Através dos meus depoimentos e conversas consegue-se ver que na família houve períodos muito conturbados e trágicos. Os relatos que aparecem são como foguetes, bombas de menor ou maior potência que sempre ouvi com prazer, admiração e muitas vezes respeito

Minha mãe morreu quando eu era muito pequena e meu pai foi viver para Angola. Desde então fui criada pela Tia Valentina. Os filhos da Tia Valentina são meus primos/irmãos: o Miguel, o mais velho, e o João.

O reconhecimento da personalidade da Tia Valentina só se evidenciou quando me fui despegando do meu egoísmo de juventude e, especialmente, depois do meu casamento. Fiz a escola secundária num internato e só comecei a avaliá-la quando passei a frequentar a universidade e a viver em sua casa.

 Quando eu estava em crise ou perplexa perante este maravilhoso e perigoso mundo onde nos foi dado viver ela percebia imediatamente. Às vezes eu mostrava agressividade porque a sua sabedoria de vida me perturbava. Pensamos sempre que a nossa geração é que nos percebe e que os velhos pertencem a outro mundo, a uma época onde tudo era diferente.

 Lembro-me que lhe telefonei num dia muito especial para mim. O meu filho Tiago partira para um emprego em Portobelo, nos Estados Unidos, e não se sabia quanto tempo ficaria ausente. O meu marido estava a preparar um congresso na sua área de medicina e não podia ser perturbado, e eu sentia-o muito ausente. Assim a Tia Valentina parecia ser a única pessoa a quem podia recorrer com tempo para me ouvir.

- não acendas a lenha porque ainda está húmida - disse ela.

Um marido equilibrando-se na corda bamba da competitividade, um filho que me deu sempre carinho partindo sem se saber devidamente as condições, uma filha a tentar uma terceira gravidez de risco e sempre arisca e cravada nos seus problemas, todos contribuíam para fazer oscilar o meu equilíbrio. Assim recorria à Tia Valentina porque nunca me habituei a partilhar os meus problemas com as amigas. Sabia que as minhas confidências podiam enfraquecer a nossa relação ou substituir a forma como queria ser olhada.

- deixa o tempo encarregar-se de te dar respostas e ocupa-te!

Respondia um pouco irritada: “Não durmo senão seis horas por noite, como poderei estar disponível para me ocupar? Quando acordo de madrugada, ponho-me a pensar que o tempo voa e estou a perder a presença do Tiago que não sei quando pode voltar a Portugal, penso que o Zé se escraviza no hospital e que está a envelhecer precocemente, que a Luísa morre de desgosto se não conseguir que esta gravidez vá avante...enfim...

- Estás apenas com pena de ti própria...se o tempo voa como dizes, tens de aproveitar para te ocupares. Continua com as aulas de pintura. Pintavas tão bem! Fizeste parte de uma organização de mães adolescentes, volta...a desculpa de estares cansada, como me disseste, é prova que andas com pena do irremediável. As pequenas e sucessivas depressões dão muito a ganhar aos médicos e às farmácias e tu sabes que falo com conhecimento de causa. 

A Tia Valentina, filha de pai israelita, viúva de um médico de ascendência também judia, que perdeu a vida num acidente próximo de Telavive quando houve um atentado perto do local onde passava de carro, compreendia a escolha do seu filho mais velho, Miguel, para mim, um primo quase irmão. Ele Interessou-se pelos movimentos para a paz que defendem um estado palestiniano, única forma de acabar com a guerrilha permanente dizimando tantos judeus como palestinianos. Os dois movimentos, um encabeçado por um israelita, o outro por um palestino, têm o mesmo título - “One Voice Movement” - e os mesmos propósitos. Começaram com jovens que fizeram casamentos mistos e acreditam numa solução pacífica. Como pode dormir descansada e apresentar essa calma? Mentalmente era a minha pergunta.

 

- O tempo que estamos a viver é o único que temos, não o podemos

desperdiçar

 

E como explica o horror do fanatismo que vai criando becos sem saída, os sem religião estão por vezes mais perto do equilíbrio. Como se pode viver sujeito a preconceitos estruturados por certos religiosos que continuam intolerantes e, ainda pior, incultos. Abomino esta gente que se mata alimentando ódios, criando uma espiral de violência que nunca tem retorno.

- Difícil aos homens viverem sem Deus...mais fácil julgarem-se arautos de Deus...

Mas o deus de cada um não é o Deus da tolerância, é um deus extremista cujas leis os homens foram moldando a seu belo prazer e depois creem nesses ídolos que construíram. Muitas vezes penso que também estou errada, afinal tinha construído um deus à minha medida, que me convinha embora acreditasse que o Deus universal andava distraído com as injustiças deste mundo onde multidões se agrediam, se odiavam e outras tinham crenças que pareciam medievais...

- Se estiveres profundamente motivada num trabalho que te interesse e saibas evoluir, tudo o resto são problemas secundários. O teu marido é um refém da sua profissão mas não terá depressões...

Quando acabava a conversa com a Tia Valentina parecia que as portas cinzentas das minhas arrelias se abriam e pensava que aquela cara enrugada com um suave sorriso e olhos um pouco piscos me reduziam à minha autêntica dimensão. Depois dormia uma noite mais longa e acordava com a sensação da minha fragilidade, apesar de ter saúde e menos quase trinta anos que a Tia Valentina.

Recordei que o curso de “Arte e Cenografia” que havia tirado em Londres durante dois anos foi o que queria na altura mas tornou-se inconsequente na vida de casada. Voltei a inscrever-me no terceiro ano da Escola de Artes Plásticas que tinha abandonado quando acompanhei o Zé à Bélgica por três meses. Como ele tinha as sextas-feiras muito cheias, resolvi dar esse dia para a obra das “Mães Adolescentes”.

Assim fui vivendo menos centrada em mim e ia dando conta dos meus progressos à Tia Valentina. Um dia ela telefonou e disse que tencionava ir a Israel porque os filhos não tinham intenção de vir tão cedo a Portugal e queria vê-los. Fiquei admirada. Achava, no meu entender, que ela já não tinha condições para viajar e nem sabia se devia mostrar preocupação ou apenas apoiá-la. Afinal tanto se pode morrer num país como noutro ou em viagem. Os seus ótimos setenta anos não são obstáculo para viajar. Há nos aeroportos cadeiras de rodas para galgar os intermináveis espaços até ao destino e esses viajantes têm tratamento privilegiado. Porquê a minha preocupação? Ela sempre fora firme nas suas decisões e estava bem de saúde.

A Tia Valentina ia fazer-me falta. Seria essa a razão primeira da minha preocupação? Não! Eu gostava mesmo dela. Sempre pudera contar com a sua ajuda. Iria apoiá-la. Quando chegou o dia da partida, acompanhei-a até onde me foi permitido e, no regresso a casa, pensei que tinha contribuído mais uma vez para eu ultrapassar um momento de fraqueza. A sua força inspirava-me. Com aquela idade aventurava-se porque tinha saudades dos filhos. Que razão tinha eu de recear os meus problemas?

Como tinha ficado combinado comecei a receber e-mails. Às vezes meus primos intervinham e apesar de estarem longe sentia-os ainda mais família. Os meios de comunicação modernos tornam o mundo acessível e muitas vezes dizemos muito mais do que quando estamos próximos. Fenómenos a que nos habituamos sem dar conta!

 

e-mail da Tia Valentina

 : - Cheguei bem e tinha os dois filhos à minha espera. O João apresentou-me a rapariga com quem anda e achei-a muito simpática. Os homens têm dificuldade em viver sem uma mulher. Será porque nasceram de uma mulher?! Isto é só para jogar com as palavras...ela também trabalha para o tal movimento de conciliação. No grupo deles há setenta e dois casais israelo-palestinianos. O amor entre eles pode ajudar as novas gerações a respeitarem-se mesmo tendo alguns princípios diferentes. Vou estar presente a uma reunião que se espera tenha grande adesão.

Nunca se sabe o que pode acontecer?! Há sempre a possibilidade de infiltrados e extremistas. Estarão provavelmente a fomentar as guerras, os ódios, e assim o negócio das armas continuará, ou outros interesses que não conhecemos. O do petróleo é um rio de sangue. 

Diz-me se a Luísa ainda continua segurando o bebé. À minha maneira, pouco ortodoxa, rezo por ela. Nunca sabemos se a criança que queremos que nasça terá uma vida que valha a pena viver. Desculpa esta frase, mas às vezes estes pensamentos um pouco perversos assaltam-me.

Os desígnios de Deus são sempre repetidos pela gente bem-intencionada e que está exausta de conflitos, de mortes, de gente estropiada, de vingança. Este movimento que o Miguel parece apoiar começou por cinco casamentos celebrados no mesmo dia por eclesiásticos de credos diferentes. Os noivos eram judeus e palestinianos que desejavam com o seu exemplo de amor e compreensão transmitir a reconciliação.

Entretanto tem havido progressos e recuos, mas a esperança não os abandona. Parece que vou ter de falar num destes “meetings”. Como filha e viúva de judeus e tendo vivido num kibbutz nos anos cinquenta posso dar alguns exemplos. Este movimento está a dar-me força. Sinto-me mais nova e, se não olhar o espelho, convenço-me que rejuvenesci. Afinal judeus e palestinianos são primos direitos e podem entender-se. Querida sobrinha vai dando notícias. :

Como não tenho o conhecimento deste movimento e só agora na Internet  recolhi alguma informação, não posso senão aguardar, com algum receio, notícias do “One Voice Movement”.  Os relatos da Tia Valentina enchem-me de curiosidade. Peguei num grosso livro sobre o problema israelo-palestiniano. Aqui, neste cantinho português onde há paz, sentimentos inquietantes sacodem o meu espírito. Será que as lutas fratricidas terão sempre de acompanhar o desenrolar da história de alguns povos? Vejo aos poucos a minha pequenez condicionada por preocupações que latejam numa combustão onde não se vislumbram soluções.

Aborrecida pela falta de notícias durante quase uma semana fui à casa da Tia Valentina. Lá estava aquela bela e elegante palmeira, à qual chamava Marilyn Monroe, ereta e dominante no jardim em socalcos. Admirei mais uma vez aquela árvore nascida ao acaso num degrau da encosta e o porte dela com um terço das raízes fora do canteiro fazia-me sempre pasmar. Muitos de nós também temos raízes fora das próprias fronteiras! A Tia Valentina dizia: garantiram-me que as suas inúmeras e profundas raízes a manterão ali até que haja um sempre. Ela troçava desta expressão dúbia. Subi ao seu escritório. Só eu e a velha Adelina possuíamos as chaves da casa.

Ia mandar um e-mail no computador dela pois o meu estava com avaria e andava preocupada. Naquele país instável tudo podia acontecer...não sei porque me deu uma curiosidade mórbida e abri um caderno de capa preta que ela tinha na gaveta da secretária. A Tia Valentina nunca fechava nada à chave e dizia que quem quer abrir consegue sempre e era irrelevante usar chaves para estas trivialidades. Abri o caderno e dei por mim a ler o que parecia um livro de reflexões. Devia talvez tê-lo posto logo de parte, mas não consegui.

 

Livro de capa preta:

& A família é sempre uma caixa de surpresas – estremeci ao ler – não sei se o amor, a amizade, tem diversas escalas, não amo as pessoas nem as estimo da mesma forma todos os dias, estou às vezes saturada do pouco que me conseguem surpreender, outras vezes desesperam-me por serem tão uniformes ou porque me impressionam pela negativa. Não sei se procuro nelas coerência impossível de alcançar ou se espero revelações de comportamento que desejava poder existir num ser humano que ambiciono perfeito. Estou numa fase de vida em que tudo à minha volta oscila e acho que sou eu que espero dos outros o impossível e ao fazer isto me posiciono numa berma perigosa de um precipício e só fugindo posso sobreviver...sei que é impossível fugir de nós próprios... &

Ao ler isto senti que estava roubando um pouco da alma da Tia Valentina e ela não merecia. Também reduzia a minha existência a problemas que talvez não desejasse resolver. A Tia Valentina já me tinha alertado para desdramatizar as minhas preocupações. Ter o marido super preocupado era realmente um bem. Ter o filho longe mas num trabalho de que gostava, outra vantagem. Poder avaliar a situação da filha que abortava com desgosto mas tinha todos os outros fatores positivos não era uma calamidade.

 

Seria que estava a preparar a minha menopausa?

 

Depois resolvi fechar o livro da capa preta, mas havia uma força que parecia maior que a minha curiosidade e me impelia a folhear o livro. Continuei a leitura:

 

Livro de capa preta:

& Sempre desejei encontrar respostas para os problemas do amor, do afeto, das preferências, sempre desejei poder aceitar as pessoas que me acompanharam pela vida, do foro familiar, de amizade, ou de convivência, no lugar que realmente tinham e não no lugar que eu desejava que ocupassem. Aos poucos vi que quem está sempre errada sou eu porque rara é a pessoa que se manifesta ao ponto de poder ser compreendida. Cada um constrói uma aparência e nem sempre é a verdadeira imagem de si própria; é muita vez o robot que julga que os outros esperam de si. Vai se mascarando e age de forma inesperada para si própria. Há gente simples, despida de ambiguidades que deveria apreciar condignamente e que se desprende do meu caminho e por impossível que pareça não me deixa saudades. Sou uma analisadora de comportamentos e o descobrir no outro atitudes, opiniões que os diminuem, essa análise é um estigma que me agride. Não devia gostar de me meter por caminhos que me vão cavando trincheiras onde acabo por ficar só e passo a viver apenas a observar. Quem observa o porquê dos que o rodeiam é apenas um farol sem sinais luminosos. &

Realmente estava a ficar mais próxima da Tia Valentina. Percebia por que resolvera naquela idade avançada empreender a viagem a Israel. A sua ânsia de participar. O risco que talvez corresse não fazia parte das suas preocupações. Já vivera o suficiente, talvez pensasse. A proximidade da morte é um privilégio para quem já usufruiu da vida e a observou com frieza – digo frieza – mas não é ainda a palavra adequada para uma senhora que estimo mais do que qualquer outra que conheci e que tanto me deu de si própria. Ela é a figura feminina que encarna os valores que nunca encontrei em ninguém, talvez por ter perdido a minha mãe quando criança. Mas este desencanto confessional que lia nas linhas deste diário que nunca deveria ter aberto, fazia de mim uma espia que, em vez de manchar o meu ato, me aproximava de alguém que vivia em permanente indagação sobre os outros e sobre si própria. Todas as fraquezas que ela apontava eram as incógnitas de seu próprio caráter. A incompletude das relações humanas, da procura do imensurável era, na boca da gente de autêntica fé, o almejar de uma alma aspirando ao divino. Talvez ela se sentisse sempre na encruzilhada.

Mas eu, que às vezes julgava ter perdido a fé, não sabia se a Tia Valentina também andava como eu numa busca pelos caminhos tortuosos da incerteza. Depois pensava na maneira generosa como tratava os outros: ouvindo-os, dizendo frases curtas mas que pareciam bordões onde encostar para refletir. Estava na dúvida se devia abrir mais umas páginas ou largar o livro da capa preta onde a Tia Valentina registava as notas do seu pensamento à solta. Se ela morresse antes de mim, o que é sempre uma incógnita, teria um dia de arrumar os seus pertences e o livro viria parar a minhas mãos. Estava talvez a prevaricar, mas ainda podia amá-la melhor porque compreendia as suas fraquezas e dúvidas. Não sendo senão uma sobrinha a quem ela amparou desde que fiquei sem mãe, achei que talvez não estivesse a abusar e sim a antecipar um tempo. Lia com curiosidade mas censurando-me. Era uma dolorosa experiência. Sabendo-a com vida e energia anímica para ter viajado a minha falta ficava, a meu ver, atenuada. Nesta página ela falava do marido e senti um arrepio. Voltei às leituras do livro da Tia Valentina

 

Livro da capa preta: 

& Percebi que a Adelina tem qualquer coisa que me quer dizer e está a adiar, calculo o que seja mas vou dar tempo ao tempo. Penso muitas vezes, tentando estar no seu lugar, que o trabalho braçal vai perdendo a tonicidade porque o corpo cansa. O estímulo para bem cumprir perde o interesse, essa perceção provoca uma vontade de retirada e assim Adelina garantiu-se conservando a sua casinha onde anseia instalar-se. Todo este processo não é idêntico em todos nós mas tem muito de semelhante. Coitada! Digo isto, mas coitada de mim, que nesta idade, difícil será adaptar-me a outra pessoa. Ela é depositária dos segredos da nossa família e sempre os conservou com ela.

Refletindo melhor, julgo aperceber-me que, o fim de um ciclo de vida é uma plataforma antes da nossa morte, é uma desistência gradual das atividades, de certos interesses e uma procura de isolamento, no caso dela o apego à terra, ao seu quintal e um anseio de refúgio onde o espírito se liberta e se prepara para aceitar outra dimensão. Tanto nos simples de condição como nos elaborados de espírito a reação é semelhante.

Estou acompanhada quando escrevo. Ela não tem este privilégio, mas tem outros que eu nunca alcançarei. O conhecimento alargado dos problemas do mundo reduz a nossa convicção de utilidade. Perceber a limitação dos políticos, a engrenagem do mundo económico, os interesses das forças de poder, podem parecer úteis em determinada altura da vida, mas esvaem-se de conteúdo com a proximidade da morte. Somos um pouco ingénuos como o criado de D. Quixote, o Sancho Pança. Terei que deixar de escrever brevemente porque o registo de certos pensamentos os torna mais agudos e prejudicam-me. Há acontecimentos no nosso trajeto que nos marcam definitivamente.

Agora penso muito nos livros que me apaixonaram na juventude e relembro:  Tchekov, Sommerset  Maugham, as Bronte Sisters, os livros do Salgari que um amiguinho de escola me emprestava, talvez por me achar um pouco Maria Rapaz. Algumas das leituras foram uma surpresa porque, quando os reli, passados vários anos, eu já era outra. As personagens de certos livros são como pessoas que conhecemos e partiram de viagem; voltam um pouco diferentes.

 O quotidiano da Adelina é o mundo das vizinhas, dos sobrinhos netos que lhe escrevem do Luxemburgo, das boas e más disposições do pároco da sua aldeia que ainda é seu familiar. Neste mundo tão diverso há os pequenos dramas, mas não se assemelham ao ódio acumulado entre israelitas e palestinianos que próximos e de origens comuns não se esforçam para viverem em paz. Eu que trabalhei um curto tempo num kibbutz e aí conheci o meu marido, preocupo-me por ser apenas uma observadora. Agora que tenho dois filhos naquela zona perigosa do Médio Oriente, sinto que qualquer coisa tem de ser feita por todos nós para que os fanatismos abrandem e o esclarecimento dos problemas seja conhecido pelos povos de outras nações. Há uma espécie de fatalidade ensombrando os dossiers da política externa dos países que deviam preocupar-se. As guerras são um sinal de atraso na civilização e tocam o mundo inteiro. A Adelina, no seu mundo mais restrito, não sabe disso e a sua dose de preocupação é outra. Embora a compreenda estimo-a mais do que consigo explicar. O mundo dos afetos é uma trama de linhas emaranhadas, assim também é o amor.

Olho para trás e revejo os que já partiram e sinto uma nostalgia que dói. Quando observo na Vera aquela expressão que faz quando está preocupada que é igual à da mãe, a minha querida irmã Sofia, fico triste. Hoje lembro o sonho que tive a noite passada e vejo-a sentada à mesa numa casa de jantar espaçosa de tetos muito altos e a mesa posta com requinte, nem a casa era a nossa, nem o resto, mas tive a sensação que a minha saudade a foi buscar. O nosso mundo real está inscrito no tempo que não tem definição e o mundo dos sonhos tem uma escala a que não damos suficiente atenção. Contudo passamos quase metade da vida a sonhar e percorremos lugares desconhecidos e encontramos gente diferente com quem nunca nos cruzámos na vida. Não procuro a interpretação dos sonhos mas interrogo-me quanto a vivências absolutamente imprevisíveis e inexplicáveis.

Sei que vou tomar uma decisão em breve que pode alterar a minha vida, mas porque ainda não a tomei não a quero aqui registar. Ando inquieta. &

Passei dias sem ir a casa da Tia Valentina. Assim que tive um fim de tarde livre, aproveitando a ausência da Adelina, voltei à leitura quase obsessiva.

 

Livro da capa preta: &

Sempre que quero escrever sobre Daniel há em mim uma perturbação que não consigo resolver. Ele é o único homem que amei. Construímos a nossa vida prometendo a liberdade e o respeito que essa liberdade implicava. Magoar o outro para vingar insucessos temperamentais estava fora de questão. Se alguém cruzasse a nossa vida e pudesse quebrar o compromisso que assumimos, tentaríamos escapar, e se o caso estivesse difícil falaríamos sobre o assunto. Felizmente não foi preciso. A admiração que tínhamos um pelo outro serviu de biombo a terceiras pessoas. A dificuldade surgiu quando verificámos que os nossos dois filhos pareciam a antítese um do outro. Escrevo parecia, porque agora que são adultos, pela força das circunstâncias, estão a agir unidos e com entusiasmo numa ação em Israel. É certo que o João foi ter com o Miguel mais por curiosidade; sendo mais novo manifestou no início uma certa resistência às convicções do irmão. Com o insucesso do seu casamento achou uma boa ideia ir observar, no seu tempo de férias, a razão do entusiasmo do Miguel.

A triste separação do João caiu em cima de mim. Que escrevo eu? Os sucessos e insucessos dos filhos acompanham-nos até ao fim. Assistir à derrocada sentimental sem causas aparentes leva-me a conjeturar sobre o amor e o que exigimos dele. Nem as poesias dos maiores poetas podem definir o que penso. Será que o entusiasmo pelo outro pode condicionar o pensamento? Ocasionar desvios dos nossos íntimos objetivos? Ter sempre uma duração limitada? Seria então amor? Ou a palavra é apenas uma forma limite que como tudo que existe nos viventes não só os homens pensam amar tem o seu tempo. Será que os hábitos de convivência podem criar amarras de hábitos e comodismos que tomamos por amor e que de certa forma o danifica?! Depois penso em Daniel, meu marido, e parece-me que o amei até ao fim. Digo, parece-me porque não substituí o amor pela amizade, só pela saudade.

Pensei na mulher de João, a Mónica, pensei de tal maneira que prometi a mim própria que lhe iria falar em breve. Ela deixou de ser nora, mas continua a ser uma pessoa por quem tenho afeto e aprecio. Fiquei a lembrá-la com o seu ar desportivo, jogava bem ténis, o seu interesse em colaborar em obras sociais, o entusiasmo no laboratório onde as pesquisas científicas sobre os genes das moscas a entusiasmavam e proporcionavam viagens numerosas. Afinal escrevo sobre Mónica porque não a consigo banir do meu grupo de conhecidos próximos. Ela é uma mulher que se admira e que pôs em evidência as carências comportamentais de João.

Teremos nós obrigações sociais e afetivas excluindo quem nossos filhos excluíram? Eu sei, como mais ninguém, que ele não a excluiu, sentiu-se gradualmente preterido e perdeu a tal chama que alguns pensam que é etérea e eterna! Afinal o outro será sempre aquele que disse que nos amava mas nunca nos pertenceria. A inteligência diz-nos como devia funcionar, mas o nosso amor-próprio emite falsos julgamentos. Como poderia eu explicar isto ao João? E valeria a pena explicar?

Sem filhos, com problemas na empresa e o seu lugar em dúvida, precisava de uma fuga. A escolha há um ano do Miguel de ir como observador para Hebron, onde um dos movimentos para uma solução pacífica acreditava na possibilidade da coexistência de dois estados independentes, foi um chamamento para o João. O problema Israelo-palestiniano parece uma doença crónica e depauperante. Ir para aquela zona do mundo, garganta entre a Europa, a Ásia e a África, foi para João uma evasão. Perto do Miguel havia um suporte, e fico sempre a pensar se fugir a enfrentar o seu caos, precisa de ações extremas, mas como posso ter opiniões?

Interrompi por um tempo os meus relatos. Encontrei-me com Mónica e fomos tomar chá. Quando voltei a casa não consegui pegar neste caderno e contar ao meu falso confessionário os meus sentimentos. Agora, passada uma semana, escrevo de novo.

Mónica continua com aquele seu ar de mulher extremamente atraente e segura. Ela construiu a vida à sua medida. Faz o que gosta. Infelizmente o João não conseguiu competir com alguém que se acomoda e se entusiasma com o que escolheu. O João precisava de uma mulher a quem desse conselhos e ela não precisava. Começou a sentir-se menos seguro e um homem mesmo no século XXI, mantém alguns padrões esgotados. Como mãe penso que devo ter alguma culpa. É certo que o mundo caminha a um passo acelerado e tudo está a ser reformulado. A Europa é uma senhora velha e parece que acumulou alguma sabedoria com os cataclismos que sofreu, mas nem a América com uma história mais recente, nem a sabedoria da China, podem hoje valer a uma total inversão de valores.

O fenómeno das comunicações rápidas e sem segurança, lançam as populações numa espécie de fuga-euforia. Podem acender-se revoluções via Internet ..., é possível combinar um assassinato à distância enviando sinais de  código ..., tornar uma pessoa famosa ou difamá-la por via de múltiplas adesões no twitter.

Os negócios de armas, de petróleo, de gás natural, continuam a provocar guerras. Nem os judeus nem os palestinianos conseguem abolir as suas ancestrais convicções. No Antigo Testamento, dizem os judeus que Deus lhes deu aquela terra enquanto os palestinianos atestam que há mais de 1.400 anos já era habitada por árabes. A gente mais nova que estudou outras culturas não é em número suficiente para derrubar estas barreiras de fanatismo que nos levam a pensar se a “não religião” seria preferível...mas depois o homem tem sempre o medo da morte...e o seu espírito clama por um Ser superior, uma justiça.

O preço escandaloso das drogas alucinogénias gera fortunas e a decadência humana. Recentemente uma amiga perdeu o neto por excesso de drogas. Este caderninho é assim. O amigo que já não tenho para conversar. Estar só é não ter a confabulação. Que digo eu? &

 

Quando largo as palavras da Tia Valentina fico a pensar. Nunca a ouvi devidamente. Será que ela acha que não sou uma ouvinte desejável? Afinal vivemos muitas vezes toda a vida com uma pessoa e pouco mais dizemos que trivialidades. Fiquei a pensar no seu caso. Ela é uma mulher de coragem. Teve um casamento aparentemente feliz e filhos que a estimam e admiram, volto atrás...admiram? Nunca se sabe o ponto que nos parece admiração ou receio de nunca chegar a merecer a mãe que se teve ou tem...estou já a escrever influenciada pela Tia Valentina. Minha mãe deixou na memória dos próximos uma aura que chegou até mim de uma forma quase translúcida, irreal.

Neste mundo de técnica de comunicação “o Livro de capa preta” é o facebook misterioso da Tia Valentina. Abrir uma página do facebook e escancarar a vida  nunca seria possível nem para ela nem para mim! Não fomos talhadas para isso. O que se fornece à Internet é indestrutível e eterno, mesmo que dramaticamente falso ou inadequado.

Vivo a desejar receber notícias de Israel. Ela está num pequeno hotel perto dos filhos que se encontram acomodados numa velha casa que o “Movimento” possui e onde há um auditório para as reuniões semanais. Nunca desejei tanto ter a Tia Valentina de volta. Sinto que a leitura dos seus pensamentos me tem ajudado a enfrentar os meus problemas. Já não tomo o antidepressivo. Não sei se fico feliz por ir desvendando a vida da Tia Valentina sem sua permissão. Há, em mim, o desprezo por isto estar a acontecer, mas afinal pela vida fora vamos percebendo que nem tudo o que nos disseram para não fazer é possível. Nasce da transgressão o ajustamento da nossa personalidade. Receio chegar a algumas páginas do livro de capa preta e ler episódios recuados da sua vida que ela preferisse que ficassem secretos. Depois, pensando bem, começo a aperceber-me  de que o muito íntimo nunca ficará expresso. Há em todos nós um cofre-forte que de vez em quando aparece em nossos tresmalhados sonhos. O amor, as preferências afetivas, os projetos de vida por concretizar e que consideramos falhas do nosso caráter, ficam sempre num limbo de secretismo e nunca apanham um raio de sol. Com estas considerações perdoava-me pela minha intromissão na vida da Tia Valentina.

Veio finalmente um e-mail que vou transcrever.

 

e-mail da Tia Valentina

: Querida sobrinha, estou a estudar profundamente a história recente deste povo que, no fundo, representa parte das minhas raízes. Na altura em que a família de meu marido fugiu para a América, as escolas palestinianas fecharam e o Daniel falava de seus colegas de escola que não percebiam por que as políticas os separava. Desde 1948, data de estabelecimento do Estado de Israel, que os amigos palestinianos desejavam ter um Estado-Nação que ficasse a ocupar uma zona da Cisjordânia e a faixa de Gaza. Tudo se gorou com a guerra dos seis dias em 1967. Ele tinha amigos e primos palestinianos mas seu pai tinha tomado parte na guerra pelos israelitas porque era judeu. Que caminho semeado de ódios tem decorrido desde então.

Um amigo de meus filhos esteve na Síria antes dos grandes tumultos e visitou a Capela de Ananias, na orla de Damasco onde S. Paulo viveu. Estas religiões monoteístas: o islamismo, o cristianismo e o judaísmo deveriam tolerar-se e tomar conhecimento do Concílio Vaticano II porque nunca haverá paz no mundo sem se poderem compatibilizar ideias religiosas.

Assisti a uma reunião do “One Voice Movement” e percebi o empenho que estes, na maioria jovens, têm de promover uma confraternização autêntica entre palestinianos e israelitas. A maioria conta-se entre casais, alguns já com filhos e outros que tencionam casar apesar dos credos diferentes. O que nunca se pensa na Europa, onde há tantos casamentos inter-raciais e que ocorrem com normalidade. Aqui são causa de muito sofrimento. O fanatismo de ambas as partes é aproveitado pelos senhores da guerra e pela massa popular de ambos os lados, ignorante, que nunca viajou e é dada a extremismos. Cada vez há mais mortes pois os fanatismos alimentam-se de ódios.

A responsabilidade nem sempre é dos locais e seus vizinhos. Há interesses que se conhecem mas nunca aparecem esclarecidos nos órgãos de informação. Sempre que há mortes de um lado ou de outro, causadas por violência, o facto é acirrado e gera vinganças e extremismos.

Contaram-me que nas reuniões estão às vezes presentes membros das igrejas: católica, ortodoxa, protestante e muçulmana. Aconteceu que um ex-deputado trabalhista inglês também assistiu a uma das sessões e apesar da sua irreverência achou que alguma coisa urgente devia ser feita para acabar com as agressões constantes. Penso que ainda é um ingénuo!

Os teus primos estão muito atentos ao desenrolar dos factos mas não me parece viável nesta geração mudanças sensíveis como seria desejável. A nossa vida é muito curta e a História dos países é lenta porque vai alterar poderes instalados e demolir grandes interesses económicos. Apesar de ter antecedentes muito próximos judeus, a idade aclarou-me o espírito. Sei que estamos muito melhor que há mil anos, mas a tolerância, a generosidade, vivem na sombra e o homem precisa de bons exemplos visíveis. Infelizmente o que nos é mostrado com frequência é o lado negativo da humanidade e depois estranha-se o número crescente de suicídios e a alta venda de anti- depressivos! Enfim, sobrinha querida, com a minha avançada idade poder observar os vários movimentos existentes é o privilégio máximo.:

Fico sempre estática ao ler as palavras da Tia Valentina. Quando vejo os telejornais e depois oiço os inúmeros comentários, ajustados às ideologias e não ao bem da humanidade, fico sempre um pouco revoltada porque é raro poderem avaliar-se os autênticos problemas, vêm quase sempre camuflados por desígnios partidários, economicistas ou controladores. Para além destes interesses mesquinhos há o perigo de apresentar às novas gerações − aos nossos filhos − a quem deveria dar-se o melhor, uma falsa perspetiva.

Os ambientalistas, não sectários, os grupos que geram apoios sociais sem retorno, diluem-se e perdem poder de ação perante lobbies poderosos. Lá estou eu a escrevinhar influenciada pela Tia Valentina. No meu quotidiano pouco encontro com quem possa dialogar sobre estes problemas. As nossas preocupações diárias de sobrevivência ou de pequenos interesses da vida social sobrepõem-se a tudo. Temos fronteiras ténues e egoístas...  

Ficava sempre um pouco amachucada com a força interior que a Tia Valentina evidenciava e com algumas das suas opiniões. Ela não era uma senhora de idade acomodada. Pensava muitas vezes como teria sido o relacionamento dela com a minha mãe. Havia na Tia Valentina um comportamento afoito perante a vida e, segundo ouvi sempre contar, uma suavidade e uma feminilidade na atitude perante a vida em minha mãe. Sentiria eu um secreto desejo de ter uma tia a fazer renda, a ver novelas, a tomar regularmente um cafezinho com uma amiga na pastelaria do seu bairro?

Não. Só que o seu comportamento era uma novela onde muitas vezes me perdia. Nem no livro da capa preta que ia lendo aos poucos, nem nas conversas, emitia opiniões sobre o meu pai. Parecia querer bani-lo por ter tomado a decisão de não me educar e deixar-me aos seus cuidados e da insubstituível Adelina que me deu o berço antes do tempo de ir para a escola. O não ter tido irmãos, nem avós, perdi-os quando era criança, fez de mim uma náufraga das memórias da Tia Valentina e da Adelina. Os meus primos são como irmãos e desprendidos de apreciações familiares.

Continuava a enviar à Tia Valentina as minhas notícias. Parecia que finalmente ia ter um neto. A Luísa já ultrapassara o período difícil e o médico estava convicto de que o bebé se ia desenvolver. O meu filho arranjara um lugar numa empresa de produtos farmacêuticos e estava feliz. Parecia que todos os familiares homens se afastavam. Felizmente que tinha duas ou três amigas com quem podia falar, mas nunca me habituei a confessar a minha intimidade a ninguém.

O Zé preocupa-me, anda sempre acelerado e diz que não me devo aborrecer porque só sabe viver assim. Terá eternidade para descansar. Julgo que ele sempre foi um hiperativo que nunca foi tratado com “Retalina”!

Aquela pequena que está no Instituto de acolhimento a mães adolescentes e por quem tanto me preocupei estava a assumir com os seus catorze anos o seu papel de mãe. Como se dedicou a mim, percebi que transferira o afeto que nunca tivera de ninguém. Sabia que não a podia dececionar, sabia também que este tipo de trabalho social podia encurralar-me em situações difíceis de manter sem magoar os outros ou a mim própria. A Tia Valentina sabia dos meus problemas e um dia disse:

- Olha, ou vives intensamente rodeada de problemas ou sentas-te de manta nas pernas - se for Outono ou Inverno - e ligas o Canal Zen/musical deixando que as horas e os dias passem...

De facto, a dinâmica da vida era o que era.

Comecei a ler todos os artigos sobre o problema israelo-palestino. Comprei livros onde os países que me pareciam civilizados tinham tido interferências dúbias, ignorantes ou lastimáveis. Pensei que o jogo político, económico e as divergências étnicas e fanáticas eram um caldo sem solução. Admirava os jovens corajosos que acreditavam poder contribuir para um apaziguamento dos excessos que resultavam sempre em mortes e desespero. Gostava de saber de alguns sucessos que num ou outro artigo eram dados a conhecer, mas receava pela Tia Valentina e meus primos. O comodismo de quem desistiu de lutar ou nunca tentou remediar as injustiças que lhe passam ao lado é como o jogador de cartas que ouve a guerra lá longe e espera que o bombardeamento não o atinja.

Quando olhava à minha volta percebia que as desigualdades tremendas, os anseios frívolos, a falta de valores familiares, iam afastando os assustados para condomínios, fortalezas com segurança, onde privatizavam os medos e recebiam os amigos.

O Zé tinha um só médico acima de si no Serviço de Hematologia. Eu sabia que eram amigos mas que esse facto os podia afastar. A sua ânsia competitiva sempre me aborrecera. Devia admirar a força, a perseverança, mas, talvez por eu ser o oposto, desagradava-me e, sem querer analisar, perturbava o meu amor e admiração por ele.

Nunca escreveria um diário ou caderno de pensamentos minucioso e profundo!  Iria para o Além com os meus maiores segredos! O que aqui escrevo é a face branca da fotocópia!

É mais fácil dissimular os nossos íntimos sentimentos, construir o nosso conto de fadas e bruxas e pouco deixar transparecer. E pergunto-me como fez a Tia Valentina: será que realmente amamos devidamente quem nos compete amar? Será que a nossa preguiça é sempre causa principal dos fracassos? Porque nos dissimulamos e apresentamo-nos num figurino que às vezes nos causa

Comecei a colecionar todos os artigos que falavam do problema israelo-palestinianos. Li atentamente as diligências a nível religioso. Os Diálogos inter-religiosos que João XXIII promoveu em 1959, o Concílio Vaticano II em 1962, as continuadas diligências de Paulo VI para dar continuidade ao Concílio e a convocação em Assis na Itália feita por João Paulo II com todas as religiões para pedir pela paz no mundo e, finalmente, as iniciativas de Bento XVI numa ida à Turquia para se encontrar e orar com líderes muçulmanos, visitando uma mesquita, foram passos e grandes ações de boa vontade e coragem.[1] Infelizmente os barulhentos apelos à discórdia são sempre mais explorados pelo mau e tendencioso jornalismo. O instinto da guerra está no homem mesmo no aspeto verbal.

Estudei um pouco sobre o Corão. Li sobre Maomé e sua descendência, causa das principais divergências entre xiitas e sunitas, vias diferentes que causam ruturas e violência. Jihad significa transformação espiritual tomada individualmente, mas passou a significar caminho de luta, movimento guerrilheiro! Os homens acomodam a religião aos seus interesses.

Afinal estar virado para Meca nunca resolveu problemas, mas é uma exteriorização de fé! A aparência dos gestos, a interiorização da herança oral e escrita vai construindo patamares que nunca são completamente derrubados. Assim o mundo evolui com alicerces que começaram talvez fragilizados mas que o tempo cimenta, difíceis de extirpar. Há muita vez continuidade nos erros e não renovação própria de uma sociedade evolutiva.

Tantas vezes acordava de madrugada e entranhava-me nos sábios livros cuja leitura ocasionava tanta dor. Com um grupo cultural de que fiz parte visitei várias Judiarias espalhadas pelo nosso país. A de Évora é, a seguir à de Lisboa, a maior. A Sinagoga é onde a conhecida pensão Portalegre se insere. No portal gótico ainda se vê o mezurah. A influência judaica marcou para sempre a história de muitos povos e ainda hoje move grandes decisões económicas. Li excertos da Tora pela primeira vez e pedi à mãe de uma amiga judia que me ajudasse.   

É curioso saber que o primeiro livro impresso em Portugal é o Pentateuco escrito em hebraico, composto de cinco livros: Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio, impressos na tipografia do senhor Samuel  Gacon e o único exemplar existente na British Library.

A persistência, o apego árduo ao trabalho, o estudo profícuo, o jeito para o negócio são características dos judeus. Junto com as qualidades vêm sempre os defeitos como em todas as raças e épocas civilizacionais. É mais fácil filosofar sobre os acontecimentos históricos que fazer parte dos obreiros da História. Assim, com estas conjeturas simplistas eu preenchia a ausência da Tia Valentina. Sem querer debitava os meus parcos conhecimentos num livro que não tinha capa preta - o meu computador - com as letras à minha frente na luz crua da minha ignorância. Escrevendo refletia melhor...e estava acompanhada.

Entretanto, um insensato jornal satírico francês publicou desenhos provocatórios do profeta Maomé. E todo o mundo civilizado reagiu à falta de senso comum visando apenas exibicionismo. Há seres, criaturas frívolas, que gostam de atear fogos em armazéns de palha. Atear ódios é o contrário do que o Homem honesto deseja. Troca-se o senso comum pelo êxito publicitário e protagonismo baratos. Muita gente pequena em bicos de pés!

 

3º e-mail da Tia Valentina

: Ainda bem que a gravidez de Luísa estabilizou. Nem calculas o que te vou contar. O Miguel encontrou, por mero acaso, documentos sobre uma visita que o Daniel fez à embaixada da América em Telavive e comoveu-se por essa aproximação ao pai. Ficou a saber que tinha feito várias diligências para que dois dirigentes de ideias políticas opostas se viessem a encontrar na sala dessa embaixada. Isto prova que os meus filhos estão, de certa maneira, a prosseguir nas tentativas de seu pai e receio que esta causa, que também partilho, possa ter para eles algum fim trágico. Quantos homens terão de morrer para que o ódio e o sectarismo terminem? Vê na internet o que se passou depois dos acordos de Oslo. Depois do primeiro-ministro de Israel ter sido assassinado por um terrorista judeu, Shimon Peres quis implementar os acordos de Oslo II. Parecia que o Estado Palestiniano estava a delinear-se mas os receios, as desconfianças, os atos terroristas, encravaram o processo.

Os checkpoints e as estradas da zona ocupada eram cada vez mais controlados. Arafat ficou desacreditado perante o seu povo e os termos do contrato ficaram só no papel. Clinton, Presidente dos EUA, chamou a Washington Arafat e Netanyahu, na altura, recentemente eleito, para se poder voltar aos acordos de Oslo. O desenrolar dos factos mostra haver incompatibilidades intransponíveis. Isto que aqui escrevo passou-se entre 1996/1999. Não digo mais porque esta triste resenha de antagonismos prolonga-se e tenho pena dos jovens que, de ambos os lados, têm tentado limpar o ódio e expandir as missões de entendimento.   

Não te quero assustar e transmitir as minhas preocupações e darei outras notícias. Fui visitar uma exposição de desenho e pintura, lembrando-me de ti que aprecias ver o que fazem os artistas na nossa época. Não posso dizer que gostei, e lembro-me de um artigo onde li a opinião de Jacques Barzun, um estudioso da História da Civilização Ocidental. Professor desta matéria na Universidade de Colúmbia e muito crítico do culto do absurdo em certa arte moderna. Lembrei-me dele quando vi a exposição. Acaba de morrer com 104 anos e deixa uma obra fantástica onde o pensamento sobre o ocidente não nos leva ao desânimo porque, segundo ele, sempre soubemos encontrar caminhos. Um homem que escreve aos noventa anos um texto com este espírito e esta visão é um marco definitivo da sua época. Se tiveres ocasião compra o seu último livro.

 Encontrei um velho amigo de Daniel que era bastante mais novo que ele e, por isso tem menos cinco anos que eu...um jovem! Especialmente porque tem uma conversa fulgurante. Há muito tempo que não tenho um interlocutor assim. Ele adquiriu com a experiência da vida a sabedoria de se expressar com contenção, sem vícios oratórios e didáticos. Embora tenha nascido na Polónia e estudasse numa universidade inglesa, tem uma visão do mundo como se estivesse olhando de um observatório. Não acredita nas múltiplas boas vontades, mesmo as levadas a efeito por altos eclesiásticos das três religiões monoteístas. A maioria − diz ele − é sempre o que conta nas sociedades onde há democracia, mas será uma maioria esclarecida? Pergunta ele. (eu sorri, interrogando-me sobre a democracia, mas o outro caminho, a ditadura, nunca) − há sempre o receio a mudanças que trazem ruturas e os homens são timoratos. Ele acha que, enquanto um povo não estiver educado e instruído, os votos não são a expressão do que é vantajoso para um país. Imagina os séculos que terão de passar para que a tal sociedade utópica apareça! Ele acha que muitos só veem a sua religião pelo prisma fanático para merecer maior compensação quando morrerem; outros procuram apenas os efeitos económicos; os mais esclarecidos sabem que o panorama não se vai resolver nas próximas gerações e radicam-se em países mais estáveis onde podem trabalhar e viver em paz colaborando apenas por via económica ou por via da comunicação escrita. Ele, o Samuel, tem uma certa razão e esquece-se que a sociedade atual cansa-se de trabalhar (e felizes por terem trabalho!) e precisa alienar-se quando tem horas de ócio.

Como vês ele está em sintonia com o que me traz muitas vezes desesperada por ver jovens nesta forma de luta, altruísta, mas sem grande esperança. Vim até aqui, como sabes, para estar com os teus primos. Andava muito preocupada e precisava de vir até ao Médio Oriente onde a justiça não se pratica e onde o Ocidente receia imiscuir-se. Sempre que o fez foi para servir os seus próprios interesses.

 O João tem uma amiguinha, como já te disse, que nos apresentou a outro grupo de Boa Vontade para a Paz e o estabelecimento de dois Estados. É o Movimento #J14 ...lembro-me da Mónica sempre que os vejo.        

O Grupo ”One Voice Movement” baseia a sua ação na tentativa de garantir que a segurança só pode ser adquirida quando houver respeito mútuo e ambas as partes estabeleçam um diálogo permanente. Vai ver à Internet e não te explicarei mais. Sou maçadora com isto! É evidente que partem do princípio de que deve haver dois estados com pactos definitivos de não-agressão. O drama é saber que nas escolas de ambos os lados há uma educação sectária e xenófoba. Também em muitas famílias acontece o mesmo.

Tu já me conheces bem e ao dizer-te isto sabemos que estes projetos para conciliar as duas partes estão cheios de alçapões, mas não se encontra outra saída pois nenhum povo atinge maturidade para se saber governar sem se investir fortemente na instrução, na educação e na saúde, tal como o Samuel insiste. Digo isto com muita mágoa: a humanidade está ainda muito atrasada na sua grande maioria. A própria democracia ainda não amadureceu. As soluções para o país são adulteradas por anseios de poder dentro dos partidos, rivalidades, diálogos inconsequentes. O lema agora é: a economia tem de crescer... se não cresce temos todos de ser mais frugais, exigir menos do Estado. Quem quer esta verdade?!

O discurso dos políticos é muito semelhante ao dos presidentes de clubes de futebol, em meu entender bem pior!

Quando um chefe de um partido chegar a primeiro-ministro, nomear o seu governo e mudar o discurso totalmente, sem facciosismos, sem partidarites, talvez consiga ser acreditado pelo povo. Quem sou eu para ensinar?! Uma  anciã! Mas, começaria assim:

Portugueses, vamos designar ministério a ministério o que o nosso antecessor fez e nos parece bem e deve ser continuado. Vamos abandonar aquilo que não nos parece adequado nesta altura. Assumiremos estas opções e contamos com a vossa ajuda. Em cada ministério haverá um registo via internet com as críticas e conselhos das pessoas que se sintam preparadas para dar sugestões possíveis e construtivas. O resumo dessas sugestões será divulgado depois de analisado.

Quem sou eu para fazer estas reflexões?! Esta parte é só para te rires... :

 

Quando acabava de ler ficava sempre com a ideia de que o espírito, o poder analítico, não habitam em espécie da mesma forma em todos os seres.

Receio pelos meus primos e pela Tia Valentina. Mas sei que só gente ousada pode fazer crescer a sabedoria da humanidade. Esta frase é definitivamente da Tia. A sua influência cresceu desde que leio o livrinho da capa preta e recebo os seus e-mails. No nosso contínuo contacto durante anos estive sempre muito aquém de a conhecer. Sempre houve para mim um mistério nesta família e só a Adelina sabe o que eu nunca saberei. Ela conheceu meus avós, minha mãe, a tia Valentina e meu pai. Mas ela é uma rocha que só conta trivialidades.

Recebi uma chamada da Mónica e combinámos jantar na próxima semana numa daquelas noites em que o Zé está ocupado até tarde. Ela deve querer saber notícias do João.

Achei a sua voz um pouco diferente e aguardo com alguma inquietação o encontro. Deve ser a minha mania das tragédias como diz o Tiago. Estou mais descansada porque ele encontrou dois casais portugueses em Portobelo e parece estar a integrar-se. A Diáspora que por esse mundo fora semeia o nosso portuguesismo é parte do sal de que a humanidade precisa.

A Loti, pequena que teve a criança e se afeiçoou a mim para lá do esperado, põe às vezes a questão do envolvimento que derruba as fronteiras entre a doação a uma causa. Ela vai enfrentar de novo o mundo de onde veio, desta vez com um bebé. Quando contactamos com esta face do mundo que difícil é encarar tanto de frívolo, inconsequente...não me é possível ter duas faces. Tanto carinho desperdiçado nas mulheres que não conseguiram ter filhos, tanto aborto pago pelo Estado a mulheres que não se precaveram ou se desleixaram...

Durante algum tempo, a pequena vai poder estudar na Instituição que a recolheu e seguir os estudos interrompidos. Enquanto frequenta as aulas a criança está a ser apoiada e tem a mãe próxima. Ao fim do tempo estipulado vai ser acolhida por uma avó que lhe dá uma precária ajuda. Ela sabe que não deve mais engravidar enquanto não organizar a vida...que vida poderá ter? A Loti é uma miúda esperta que pode ir longe se tiver muitas ajudas e eu vou continuar a apoiá-la. Só que podem aparecer e aparecem muitas raparigas na Instituição e nós, as voluntárias, não nos devemos envolver demasiado. Às jovens facultam-se livros, acompanha-se a leitura com comentários e mostram-se filmes de organizações semelhantes, espalhadas pelo mundo onde jovens, encaminhadas na vida, depois de terem precocemente filhos, conseguem singrar. Estou a levar este trabalho com muito empenho porque ele é decisivo para a vida de crianças que quase não tiveram infância. Eu tive a sorte de ter tido a Tia Valentina quando minha mãe faltou e a velha Adelina que me rodeou de cuidados.

As aulas de pintura, onde me inscrevi, estão um pouco negligenciadas, mas sou uma assídua visitante de exposições e vou tentar fornecer material para a nossa Instituição. Há tantos talentos desperdiçados! O João, por ter tido sempre jeito para desenhar, foi para arquitetura e, agora, com esta crise na construção e no país, teria feito melhor em tirar o curso de cozinheiro. Talvez através do turismo interno ou externo arranjasse trabalho. Esta pasta guardada nos my documents é onde arrumo os trapos dos meus pensamentos. Fico acompanhada nas horas de ócio...

Hoje o Zé veio doente. Meteu-se na cama do quarto de hóspedes porque disse que não me queria incomodar. Ainda não sei se vou ficar em casa amanhã.

No próximo fim de semana ficámos de ir os dois para a casa da praia da Luísa e do marido. Ela está muito mais acessível, os nervos acalmaram; o Diogo, meu genro, adora cozinhar e vai fazer um almoço surpresa, espero que o Zé melhore para não faltarmos.

Recebemos um e-mail grande e minucioso do Tiago. A mulher de um dos casais portugueses que lá encontrou e de que falei, a Carmo, trabalha com ele e tem origem açoriana. Como eu também tenho, e na Ilha Terceira, vamos ver se encontramos alguns pontos de contacto. Já fui à árvore genealógica que minha mãe me deixou. Estava nos pertences dela e guardei toda a informação como se fosse um tesouro para um dia desbravar. Afinal vai ser agora. A tal Carmo tinha um avô com o mesmo apelido de minha mãe.

No meio deste quase diário que mantenho como um pequeno vício faço o tricô da minha vida. As coisas sérias e que me dão preocupação passam-se lá, no extremo Mediterrâneo, onde a Tia Valentina se encontrou com os filhos, meus primos.

A Loti e outros casos semelhantes também fazem parte da minha vida e estou realmente a compenetrar-me que em breve serei avó. O Zé agora fala já dessa possibilidade e diz que a Luísa tem de fazer a primeira ecografia no seu hospital porque quer ser o primeiro a ver o neto. O seu espírito competitivo!

 Estive a ver na TV duas entrevistas que falavam exatamente sobre a influência dos votos dos judeus americanos nas eleições presidenciais de 2012 e sobre o voto dos judeus russos e de outros judeus espalhados pelo mundo. Assisti também a uma entrevista a um embaixador de um país sul-americano que focava a não colaboração dos países europeus para resolver a premente necessidade de definir fronteiras de um Estado palestiniano e onde Jerusalém permanecesse como a cidade sagrada e respeitada por todas as religiões monoteístas. As influências exteriores desde o tempo de Roma antiga até hoje nunca conseguiram sanar esta questão dolorosa e sangrenta.

One Voice Movement” tem grupos muito ativos a visitar estados americanos que reúnem muita gente. Tanto os liderados por israelitas como por palestinianos dão a conhecer a necessidade de o governo americano se empenhar numa campanha de paz que apaziguaria aquela zona do Médio Oriente há tanto tempo instável. O Presidente Clinton esforçou-se e não viu êxito. Sua mulher Hillary, secretária de estado, em plena crise de Novembro 2012, não pôde encontrar-se com a liderança da Palestina em Ramallah na Cisjordânia nem com os representantes de Israel em Jerusalém e ficou a aguardar no Cairo. Pouco tempo depois houve um cessar-fogo entre as partes. Por quanto tempo?

Li tudo quanto me estava mais acessível e receio que os movimentos de gente de boa vontade e todos os esforços que diariamente fazem sejam sempre aniquilados. Que pena! Que gota de água são os problemas da Instituição onde trabalho. Sempre se resolvem alguns casos com sucesso. Tudo na vida é relativo.

Amanhã pensava jantar com a Mónica, é o dia de o Zé vir tarde, mas como está doente, nem sei se vá. Como o Zé melhorou sempre fui.

 A Mónica queria estar comigo para ter notícias do João. Percebi que não comunicavam e que ela não o conseguia pôr de parte inteiramente. Não deixou transparecer nada da sua vida afetiva e também não era suposto que o fizesse. Vejo-a muito concentrada no seu trabalho. Será apenas uma camuflagem? Parece que vai a Londres colaborar num projeto sobre a área onde trabalha, e sem que eu pudesse esperar desafiou-me a ir no primeiro fim de semana para vermos a grande exposição de pintura focando os pintores ingleses do Século XVIII. Fiquei cheia de vontade de ir. Uma lufada de ar fresco na minha vida que, por mais que eu tente, é sempre polarizada por preocupações.

Seria apenas um fim de semana alargado. Como ela tem um pequeno apartamento reservado, eu teria apenas de pagar a viagem.

Por estranho que pareça. minha relação com a ex-mulher do meu primo é mais fácil do que com a minha filha Luísa. A tensão psicológica que imana dela quando estamos juntas não nos deixa ter uma relação descontraída. A Tia Valentina explicaria isso melhor. Eu ainda não percebi a origem.

Passou uma semana e o trabalho na Instituição de apoio a mães jovens aumentou. Sei que devo continuar porque é um trabalho muito necessário e descobri que tenho aptidão para um diálogo que parece desprendido, embora o não seja na realidade, antes transmite afeto que é o que sinto por aquelas jovens. Estou a ser útil só que a envolvência tem dificuldades. A Loti vai começar as aulas e o seu maravilhoso bebé é como um neto emprestado que me apareceu. É uma criança linda, não admira, pois a Loti tem uma beleza fora de comum e, por isso, representa um perigo. Quando fui a casa da avó dela naquele bairro carenciado de ruas de pedra soltas e caixotes de lixo derrubados, pensei que o que estava a tentar fazer por ela e por outras, em circunstâncias semelhantes, era como usar uma sombrinha de papel no meio de um temporal. Sinto por vezes desânimo. Talvez por precisar de reagir comuniquei ao Zé que ia a Londres passar o próximo fim de semana.

Extraordinariamente ele disse que se houvesse lugar para ele também gostava de ir. Vamos então os três. Quando o Tiago receber o e-mail vai ficar perplexo. Ele sabe que o pai é um alcoolic worker.  

Por falta de tempo e de oportunidade não escrevo há alguns dias. O apartamento disponível era mínimo mas coubemos os três. O Zé esteve muito interessado no trabalho que a Mónica desenvolve e foi com ela ao Laboratório. Aproveitei esse bocado da manhã para visitar a Escola onde frequentei Belas Artes em solteira. Ainda estava na receção a Mrs. Andersen que me fez grande festa. Através de mim tinha vindo a Portugal e eu servi-lhe de guia. É uma encantadora pessoa que envelhece em atividade e mostra bem, o resultado disso. Foram quatro dias cheios de entusiasmo. O Zé, muito descontraído, o que é raro. Ele precisava como eu de quebrar o ritmo das nossas vidas. Votámos bem dispostos e com a cabeça arejada. Amanhã vou ver se há mails da Tia Valentina.

Lá estava o último mail com a data da nossa chegada a Lisboa. Ela sabia da nossa ida a Londres e estava feliz por saber que três pessoas que estimava estavam juntas. Só o li dias depois.

 

4º e-mail da Tia Valentina

: Espero que tenham chegado bem. O João ficou muito curioso com a tua saída com a Mónica. Está cheio de curiosidade e espera, como eu, notícias. Há por aqui muita atividade no meio onde os teus primos se movimentam. É perverso haver tanta gente a boicotar, a difamar, a querer tirar lucros de movimentos que só querem a paz. O Miguel foi convidado a falar na próxima reunião. Portugal é visto aqui, entre vários grupos tanto de israelitas como de palestinos, como um país de diálogo. Um país que ultrapassou o contexto do colonialismo, uma longa ditadura e um período difícil de integração na União Europeia.

O Miguel está a receber informação via internet e consulta uma boa biblioteca em Telavive. O João volta comigo e podes estar tranquila. Percebi que mesmo em Israel há várias tendências. Não só entre os grupos políticos. O povo, especialmente os idosos, tem dificuldade em ver a sua área de solo reduzida, as fronteiras ameaçadas, os extremistas palestinos a curta distância. Depois de tantos ataques que sofreram é compreensível. Estes eleitores votam no partido que julgam melhor  defende-los do inimigo palestino.

Os jovens, de ambas as partes, muitos são universitários, gente viajada, alguns com famílias onde o sangue das duas raças se cruzam, querem definitivamente duas pátrias territoriais e acordos de não-agressão com a ajuda de outras nações. A Europa apoia em princípio a criação de duas pátrias. Sabe que o morticínio pode diminuir embora leve muitos anos para a consolidação.

Aqui a herança política e religiosa tem um peso surpreendente!

Receio que o Miguel fique mais algum tempo e arranje compromissos afetivos e políticos difíceis de abandonar. Sei que a vida em Portugal tem-se agravado e que o desemprego é sempre explosivo em qualquer sociedade. Ele está a trabalhar embora tenha um curto salário. Diz que, dadas as circunstâncias lhe chega bem.

Os jovens que não gostam muito de estudar começam a procurar a aprendizagem de ofícios e estão convencidos que terão aceitação profissional e social. Já não há, como anteriormente, uma barreira tão grande entre académicos e não académicos. Parece-me bem! Lembro-me de uma viagem que fiz há muitos anos a Oslo e encetei conversa com um companheiro de avião. Fiquei, na altura, surpresa pela conversa informal mas muito civilizada do meu parceiro. Afinal era padeiro. Na altura comparei com os padeiros que conhecia em Portugal e constatei o enorme fosso civilizacional. :

 

 É sempre bom ir tendo notícias da Tia Valentina. A excecional Tia Valentina! Fala de vários assuntos, tudo lhe interessa. Também tenho notícias para lhe dar. Habituei-me a escrever o que vou fazendo e pensando, mesmo antes de ter descoberto o Livro da capa preta da Tia Valentina já o fazia em escrita encriptada no computador. Ajuda a organizar-me.

A Loti estava muito excitada e julguei que fosse por ir começar a frequentar as aulas na própria instituição, mas havia outra causa. A avó Januária recebera uma carta da filha, mãe da Loti, que caiu como uma bomba. Nem sempre as bombas são devastadoras. Foi uma surpresa. Ela escrevia do Brasil onde estava há dois anos e casara com um pequeno empresário. O homem vivia bem e queria vir a Portugal com a mulher para conhecer a família dela. Era madeirense e a carta trazia mais informações.

Talvez esta carta pudesse dar esperança aquela mãe tão nova e inexperiente, talvez o neto que nem sabiam que existia os viesse a aproximar. Senti que a notícia também me envolvia.

Assim que me foi possível fui ao bairro onde a avó de Loti vivia e aproveitei para levar a Loti e o bebé comigo. A criança cada vez está mais engraçada e é linda, aliás como a mãe, com os seus cabelos ondeados e loiros.

A senhora Januária deu-me a carta para a mão e pediu que a lesse alto. Dizia assim: «Boa mãe! Sei que não me podes perdoar, fui uma má filha e estou arrependida de tanta asneira que fiz. Depois, quando aí voltar, conto como aqui cheguei. Tive a sorte de ter sido acolhida numa igreja cristã. As senhoras do acolhimento aos emigrantes ajudaram-me e arranjei o emprego onde estou. Casei com um homem que é proprietário de dois minimercados e que estava há alguns anos viúvo e sem filhos. Ele é madeirense e a oportunidade de falar o português de Portugal muito nos aproximou. Casámos há seis meses e estou muito feliz. Falo muito na mãe e filha que abandonei quando andava desnorteada. Escrevam e digam tudo o que  se passa. A Loti não deve ter boas lembranças de mim, etc.» e seguiam as despedidas e promessas de virem em breve. Sentia-me tão aliviada, tão feliz como se conhecesse esta família há longa data. Como se fosse uma família que fazia parte da minha.

Agora havia a esperança de os ver funcionar. São estes factos que nos compensam do trabalho nas ongs.

A minha filha Luísa vai esta semana fazer a ecografia ao hospital onde o Zé trabalha. Estamos muito excitados.

A Mónica ficou muito mais próxima de nós depois da estada em Londres e é uma rapariga cheia de força e sentido de humor. Disse-me que gosta muito da Tia Valentina e que nunca se desligaria dela apesar da separação com o João.

Foi bom ter recebido notícias do Tiago. O e-mail que mandou era mais dirigido ao Zé porque tinha a ver com firmas farmacêuticas e negócios hospitalares. Nada relacionado com o curso que tirou. Atualmente um curso superior fornece conhecimento e abre caminhos mas nem sempre condiciona a vida dos licenciados.

O Tiago tornou a referir-se à companheira de trabalho, a tal Carmo de origem terceirense. A avó dela reside em Angra do Heroísmo e vai indagar sobre as ligações familiares connosco. Por graça tratam-se por “primos”. Os portugueses vão tecendo a sua teia de afetos e raízes como uma rede de sustentabilidade no centro de uma urbe longínqua. Espero que o Tiago não se fixe por lá. Ele é um filho dedicado e faz-nos muita falta.

Hoje, para relaxar, vou ouvir à Gulbenkian um concerto. Tem havido muito stress ! O Zé vai comigo...

Espero ter notícias da Tia Valentina, pois há uns dias que não envia mails.

O problema político parece insolúvel e receio que a Tia Valentina volte desiludida. Os acordos de paz tardam em ser assinados, mesmo se isso acontecer, sabemos que estão desde sempre armadilhados e a ânsia de poder e o medo de ambos os lados criam barragens.

Finalmente chegou o dia da ecografia: o Zé falou eufórico do Hospital: “vamos ser avós de uma rapariga”. A Luísa, radiante, diz que deve sempre haver uma mulher a encetar uma geração. Será a nossa primeira neta.

Continuo a ir à Instituição das mães adolescentes e agora com mais alegria esperando que outros casos se equilibrem como provavelmente poderá acontecer com a Loti. Funcionando a escola na instituição, as jovens mães cuidam do bebé e estudam. Têm apoio psicológico, médico e jurídico pois o reconhecimento paternal é muito importante. Muitas vezes conseguem colocar as suas alunas, quando terminam o secundário, e já houve casos de algumas terem enveredado por estudos universitários. Para as voluntárias como eu é uma grande compensação poder ver o esforço compensado.

 

 

e-mail da Tia Valentina

 

: Já soube que vão ter uma neta. A Luísa deve estar felicíssima, sempre disse aquilo que também sempre achei - uma mulher para começar uma nova geração - mas eu falhei e só arranjei dois machos que me dão muita preocupação. O Miguel está completamente interessado no “Movimento” já referido e anda muito com uma palestina, a Zora, bonita e muito inteligente. Ela esteve três anos em Londres a estudar e receio que a ligação possa pô-lo à prova. A vida dividida é sempre difícil de aguentar. Há sempre o que se ganha em horizontes diferentes e o que se perde no campo familiar e dos amigos de infância. O João acaba as férias e tem de regressar e assim os mails irão acabar ou continuarei a mandar-tos quando chegar a Portugal. Habituei-me a escrever o que penso e parece que comunicamos bem assim. Como está a minha casa? Tens lá ido ver o correio? E a Adelina vai bem? Penso muito nela, porque ajudou a criar-te depois da morte da minha querida Sofia, porque é uma amiga.

Quando aí chegar vou ter de me corresponder com as pessoas com quem fiz amizade aqui. Quero muito manter estas ligações e ficarei melhor informada sobre o Miguel que muito me preocupa com o seu espírito de missão. Ele é muito parecido com o Pai. O Daniel tanto levou o seu empenhamento ao extremo que acabou por morrer num acidente provocado por atos terroristas. É difícil retroceder, abandonar e procurar uma vida longe, quando se está aqui envolvido nestas causas. É como uma traição.

Sempre eduquei  os filhos com o princípio de que devemos ser coerentes. Defender causas e mantermo-nos em terreno neutro é cómodo mas é um egoísmo sem nome. Sofro hoje, e o Daniel sofreu com a perda da sua vida, por defendermos princípios que não atingem nem preocupam a maioria dos mortais.

Como achaste a Mónica? Sempre gostei dela e sei que o João não a esquece com facilidade. A diversidade num casal é difícil mas muito mais rica e menos monótona certamente. É difícil dar certo. Para atingir essa sabedoria atravessam-se alguns desertos e desfiladeiros. Querida Vera, desculpa estas minhas tempestades de alma, mas a escrita é sempre mais sincera que a palavra dita com o sujeito presente. O teu primo Miguel foi muito cumprimentado no final da sua palestra. Fizeram muitas perguntas sobre Portugal e elogiou-se o Serviço Nacional de Saúde e a baixa taxa de mortalidade infantil. Também se referiu o significante número de cientistas portugueses a trabalhar em projetos no estrangeiro. Falou-se do nosso rico campo cultural e uma rapariga israelita recitou em português um poema de Fernando Pessoa. Tinha estudado em Coimbra.

 Se o Miguel não estivesse aqui este vasto público não teria ouvido este diálogo que se processou no final da sua intervenção. Como em clima de guerra se mantêm estas reuniões é quase absurdo!

Em Outubro de 2012 vários grupos do “One Voice Movement” percorreram estados americanos, antes das eleições presidenciais, para sensibilizar os americanos sobre a fragilidade das políticas externas dos últimos anos em relação ao problema israelo-palestino. Consulta a internet para perceberes melhor o que aqui se passa. Infelizmente pensa-se que as guerras longe não nos afetam, mas é um erro.

Convenci o meu novo amigo, o Samuel, a visitar Portugal. Vamos promover sessões de esclarecimento sobre este problema. Os jovens israelitas e palestinos têm de se encontrar e consolidar esforços para futuros leaders políticos moderados. Deves estar a pensar que virei ativista, mas custa-me ver tanta boa vontade, tanta iniciativa afastada do grande poder.D

Mal sabia a Tia Valentina que eu estava quase a acabar de ler o seu livrinho de capa preta! Só que fiquei com a certeza de que a escrita do seu diário não era espontânea mas também refletida. Ela sabia que poderia vir a ser lida e, assim, ficaria para a posteridade e estava formatada nesse sentido. Pensando bem, não era mulher para se expor demasiado perante os outros. Suspeitei isso desde o início, por isso nunca senti grandes remorsos. Naturalmente teria segredos  que nunca revelaria.

 

Livro de capa preta:

& A vantagem de escrever neste livro é desembaraçar-me de algumas franjas dos meus problemas, das minhas dúvidas, e sentir uma certa consolidação do meu ego que, às vezes, vacila. A fé católica transmitida por minha mãe é como um arranhão que me vincou a alma. Todas as dúvidas, e são muitas, acumuladas por ignorância e falta de desejo de me esclarecer, preocupam-me agora que estou na curva final dos meus dias. Apesar da consciência disso a marca que o arranhão fez é indelével. Ninguém ama o que não conhece e contudo que afastada está a maioria dos católicos de estudos profundos sobre a sua fé. A presença de Cristo em nós não é gratuita. Temos de estar recetivos e atentos para perceber essa comunhão que nos transmite a certeza de que, feitos à imagem de Deus, sentiremos a Sua presença em nós.

Quando há alegria de viver parece que o nosso corpo se revigora, quando há vontade de indagar no campo do conhecimento, as repostas, mesmo nebulosas, aparecem. Há uma espécie de mistério do qual não temos explicação, mas se revela.

Precisei de escrever isto para corresponder a um apelo que não sei de onde veio. Li uma frase do sábio Gamaliel que diz: “se alguma coisa não vem de Deus passa, se vem, nada pode prevalecer contra isso”

Como a presença de Cristo na Terra foi uma contracultura é natural que o que observamos no nosso mundo atual seja para nós uma contracultura. Isso nos desespera e precisamos de tomar conhecimento de obras de bem para nos estimular a enfrentar a nossa falta de esperança. Na origem obscura do pensamento há um caos que se disciplina no processo da fala comum. A maioria vive de conceitos, de trivialidades.

O mundo pagão obedecia a deuses heterogéneos, simbolismos que exigiam preceitos, submissões, sacrifícios. O próprio Abraão dispunha-se a sacrificar o filho bem-amado. A civilização ocidental encontra exacerbado culto por músicas troantes que estão em moda e obrigam a assistência a grande desconforto. A evolução nem sempre é civilização.   

 Sempre pensei que, finda a minha vida de obrigações, poderia estar disponível para o que me pareça mais urgente, o que os outros não fazem e eu sei que é preciso. Viúva com dois filhos homens independentes, a sobrinha casada, só me restava ser útil. Que faz um velho fora disto? Gasta a pensão com receio de surpresas e vai a médicos. Preciso de agradecer a graça de estar viva, em plenas faculdades e a vontade de usar esse bem para ajudar os outros, tanto pelo exemplo, sendo ativa, como no uso do meu discernimento que vive da observação e da experiência. As pessoas mais difíceis de ajudar são as muito próximas. Há pessoas que encontro e gostaria de tornar a vê-las, deve ser o fenómeno da empatia que nunca me pareceu bem explícito. Há certamente o fator da proximidade física, de uma suspeita de cumplicidade de uma vontade de encontro com algo que pode ser semelhança ou complementaridade. Assim escolhemos os amigos. A lógica não está presente.

A Vera foi a filha que não tive e me apareceu envolta em tragédia. Sua mãe, a minha querida irmã Sofia, morreu prematuramente e o meu cunhado, o Álvaro, saiu de cena para começar longe outro destino. Enviava dinheiro para os gastos de Vera, e aparecia esporadicamente. Tornou-se um emigrante em Angola sem gosto e vontade de voltar. Este facto deve ter marcado a Vera, ela sentiu-se uma autêntica órfã e teve uma adolescência magoada que não foi fácil nem para ela nem para mim. 

Depois de passar a adolescência, integrou-se na nossa vida e tudo que a afeta nos interessa. Meus filhos são autênticos primos irmãos para ela. Quando tiver um neto será meu autêntico bisneto.

Tive de escrever isto porque houve tempos em que receei perdê-la e ficaria mais angustiada pela ausência de Sofia. Talvez um dia, quando a velhice o apanhar, o Álvaro regresse de África e queira consertar as pontas deste pedaço da sua vida que negligenciou. A imagem da Sofia aparece-me no meu inconsciente transformada numa personagem mítica, com aquele seu ar de quem saiu de um livro escrito por um romântico e chego a admitir que nunca foi suficientemente terrena. Aluna excecional de piano no Conservatório, de uma beleza de camafeu grego, de muito poucas falas, passou a meu lado como uma irmã, meu contraste. Quando partiu comecei a apreciá-la melhor e a memória desse tempo perturba-me.

Há qualquer coisa que sempre me escapa quando escrevo neste Livro de capa preta e o indizível é a incontrolável liberdade do espírito humano que não se deixa enclausurar. &

 

Acabei de ler estas páginas e deu-se um fenómeno raro em mim. Desatei a chorar. Sendo eu e minha mãe nestas linhas visadas senti o abuso que estava a cometer. As desculpas que dera anteriormente pareciam agora ridículas. Sempre as acabaria por ler quando a Tia Valentina faltasse, dizia para mim ...

Fiquei com os olhos tão inchados que resolvi pôr os óculos mais escuros que tinha e ir para a rua. Não podia continuar na casa da Tia Valentina. Parecia que me auto expulsara. Porque não tivera a sorte de apreciar a minha mãe, porque meu pai partiu e quase me ignora?

 Fui ver o filme do Woody Allen: ”Para Roma com amor”; gozei tremendamente e ri. Foi uma cura. Todos somos ridículos até por nos julgarmos a sério.

A mãe da Loti vem com o marido do Brasil na próxima semana. A avó Januária proibiu a neta de lhe dizer na carta de resposta que tinha um filho. Acharam que seria uma surpresa.

O Zé anda a esconder-me qualquer coisa. Nunca foi muito falador, mas agora entra mudo e sai calado. Devem ser assuntos do serviço que o aborrecem. Não consegue partilhar as preocupações. Faz-me falta a Tia Valentina, por e-mail estas coisas diárias não se dizem. Há algum tempo que não recebo notícias de Israel. Ela disse que iam para um pequena cidade mais a sul perto de Gaza, onde havia um meeting. Fico muito preocupada. Fora os meus filhos e marido são eles a minha família. Também o assunto me apaixona e seria bom que em todos os países houvesse associações ativas que promovessem a paz naquela zona. Só a proliferação de ações em toda a Europa e na América pode acelerar este processo de dois estados e uma paz construtiva. Receio que ainda se tenha de passar por muita tragédia antes desse desfecho. Aqui repito a ideia da Tia Valentina.

A Luísa anda vaidosa com a sua barriguinha. Já mandou recuperar o berço que pertenceu a minha mãe e estava no sótão da casa da Tia Valentina. Vou fazer-lhe a surpresa de o vestir de rosa muito pálido. A vinda de um bebé numa família é a materialização da esperança.

Via internet consegui muita informação de “One Voice Movement” e percebo o entusiasmo de meus primos. Só numa pequena cidade perto de Jerusalém  realizou-se em 2011 uma sessão onde estiveram presentes 350 pessoas. Poder levar jovens, com vontade política, a liderar estas ações e conseguir que ajam com moderação depois de tanta tragédia é um objetivo importante que os leva a não desistir.

Continuo a achar que o Zé anda mais ausente que o costume. Fala apenas de trivialidades. Detesto iniciar interrogatórios. O tempo acaba sempre por dar respostas e, se não as dá, é porque naturalmente é preferível assim. Ainda bem que estou tão ocupada e, devo isso, à Tia Valentina. O meu professor de pintura passou um pequeno filme que focava: rochas, peixes no fundo do mar, flores, troncos de velhas árvores etc., e disse aos que se queixavam de não ter inspiração e criatividade que bastava recriar o que existe e trazer para a tela numa arrumação pessoal. Um dos alunos, finalista de Física, acrescentou que os cientistas explicam a presença da geometria e da matemática na natureza e caracterizam as leis físicas a que toda a matéria obedece. O já existente pode ser redescoberto e aplicado. A arte também é saber encontrar.

Entretanto numa aula seguinte muitos surpreenderam o Mestre com obras bem conseguidas. Também recriei numa tela raízes de árvores e tive a exclamação do Zé que me surpreendeu: “Que mulher versátil que tenho! Continua e organizo uma exposição com os teus quadros e os dos teus colegas mais habilidosos. Temos uma sala no hospital para esse fim que acabou de ter obras”.

Assim a vida corre com grandes alegrias, pequenos e ternos acontecimentos, golpes de angústia e às vezes de ansiedade. Os jornais têm títulos sensacionalistas que nem sempre correspondem à realidade e mantêm no esquecimento uma infinidade de acontecimentos que são a malha que sustenta a sociedade. E, ao escrever isto, desejo que a Tia Valentina volte. Com ela há sempre matéria para conversar e o seu humor nunca deixa que o assunto se torne pesado e sério demais. Como ela diz: se nos levamos muito a sério corremos o risco de virar palhaços!

Estou com bastante curiosidade de encontrar a família da Loti que chega em breve da Baía. Que volta a sua vida irá dar?

Já tinha tencionado fechar o computador, estava a ouvir na rádio um arranjo novo de um tema dos “Beatles”, quando o Zé entra em casa disparando a frase: “Foste nomeada para organizar a exposição de desenho e pintura no Salão Verde do hospital.” Não sei se fiquei contente. Implicava escolhas, preferências e rejeições...queria muito falar com a Adelina e voltei a casa da Tia Valentina, o Livro da capa preta chamava-me.

 

Livro de capa preta:

& A vida anda tão acelerada para mim como nos tempos que antecederam o meu casamento. Naquela época tinha descido uma nuvem negra sobre nós. A minha mãe teve um AVC e faleceu repentinamente, a Sofia estava a morrer acompanhada daquela execrável criatura que viera há três meses para se ocupar dela. O Daniel, que conheci em tempos num kibbutz em Israel e que planeara, assim que voltasse em definitivo de Telavive, casar comigo, estava a chegar. Tinha de deixar o hospital e tratar de muitas coisas para se instalar definitivamente em Portugal. O meu pai, cabisbaixo, arrumava ou melhor, deitava fora as coisas de sua mulher, parecia não querer enfrentar os despojos. Eu tinha remorsos de ver Sofia agonizante e sentir-me de perfeita saúde. Nunca me julguei gata borralheira e ia finalmente casar, já entradota para a época. Talvez pensassem que eu nunca casaria, mas apareceu o Daniel com quem namoriscara no passado em Israel e já não havia tempo para esperas e eu queria muito vir a ter um filho. Nunca pensei que o destino me proporcionasse vir a ter dois, com pouco intervalo. Antes de Sofia morrer placidamente, como sempre vivera, a criatura que nem pronuncio o nome fez uma declaração mentirosa e insultuosa e numa semana tudo se precipitou. Escrevi isto porque é apenas um desabafo.   

Agora, o sentido de urgência é outro, a minha vida está no fim, embora os velhos andem a durar muito! As gavetas dos meus papéis precisam de uma ordem: Que dificuldade em deitar fora! Deveria fazer uma escolha, mas que escolha? O que para nós é importante pode ser para os outros considerado lixo. Tentar arquivar o que me parece de interesse é uma utopia! Ando sempre a adiar, que valor tem o meu espólio afetivo senão para os mais próximos? Talvez na velhice de meus filhos e da Vera estes papéis, relatos de viagens, alguma poesia envergonhada, possam ajudar a urdir as lianas invisíveis que fazem de uma família uma Família. Este é um pensamento de uma mulher idosa de uma era onde se prezavam as memórias.

 Hoje, a vida é um contra relógio. Foge-se de refletir: o trabalho absorvente e muitas vezes com um horário exagerado, as idas a cinemas, concertos, encontros sociais, mesmo aqueles cheios de vacuidade, consomem os dias. Quem tem tempo e interesse por se debruçar pela vida de outros por maior interesse que possa ter?! Os papéis dos mortos são um enguiço!

Isto que escrevi são páginas da minha vida, mas há muitas mais que não escrevi. O Daniel foi um companheiro fabuloso que a morte levou cedo demais, era inteligente, interveniente nos assuntos que considerava primordiais, atento aos movimentos de arte. Não houve tempo para perder a sua aura... 

Neste momento saltei muitos anos atrás e vejo-me num colégio inglês, onde fiz os primeiros anos de estudos e lembro os concursos desportivos (rounders) entre os dois clubes que em tudo mantinham grande competitividade, os almoços onde às vezes atirava discretamente o puré de maçã para debaixo da mesa por não tolerar o borrego com o doce. Hoje aprecio exatamente o contrário, o doce na comida condimentada com sal.

 

Visitei mais tarde aquela quinta, onde havia os campos de jogos, que me pareciam enormes e tinham encolhido, perdido a sua vastidão. Só as escadinhas de cimento onde tirávamos as fotografias continuavam um pilar firme.

Relembro as colegas e o grupinho das preferidas que foi desaparecendo, gradualmente umas e outras, sem deixar rasto senão na minha memória. As zangas e segredos infantis que tanto nos marcavam na altura esvaíram-se como se tratasse de um passado desconhecido. Aqueles amores não correspondidos, verdadeiramente só imaginados.

Quando escrevo estes fragmentos do passado e mesmo os do meu quotidiano, vejo o efémero da nossa passagem pela vida e pergunto aos enfatuados, aos gananciosos, aos ansiosos de protagonismo, se não se teriam excedido.

Fui ver um ballet à Gulbenkian e mais uma vez agradeci a grande possibilidade que o público amante deste tipo de arte tem de poder usufruir de um espetáculo tão gratificante. Depois lembrei-me da opinião de um rapper de que não recordo o nome e que declarou que ficaria furioso se alguma vez um membro da sua família fosse a um concerto clássico. É esta diversidade que dá colorido ao mundo!

Amanhã temos o encontro das viúvas ativas. Grupo que ajudei a formar e que tem uma reunião uma vez por mês. O tema do encontro é: “ócio e negócio”. Preparei uma pequena colaboração porque não gostamos de preencher a tarde só com um assunto. A Elisa traz a viola como se combinou e teremos um intervalo musical e o chá que por decisão coletiva só pode ter três variedades. Aproveito para dizer, apenas em desabafo, que as mulheres têm mais facilidade em envelhecer que os homens, Há exceções!

Quando o João se separou, começou a vir aqui almoçar quase todos os dias. Foi a única vantagem da separação, fiquei mais acompanhada! Tenho dificuldade em falar sobre a Mónica. Nunca chamo o assunto. Quando os nossos filhos crescem também crescem barreiras que preferimos não transpor. Para conservar uma harmonia e conservá-los desejando a nossa companhia, precisamos de uma dose grande de bom senso. Agora estou a ser posta à prova. Ele julga que não precisa do meu apoio e, na verdade, que ajuda damos relativamente aos sentimentos? Assim falamos das notícias arrasadoras dos jornais e ambos sabemos que é um campo preocupante mas neutro, a nossa atuação na crise económica é ter de pagar mais impostos.

Também sabemos que a evolução da sociedade é um caminhar de crises e que, se queremos um mundo mais justo, teremos que enfrentar fraturas sociais até reganhar um equilíbrio. Precisamos  de acreditar que o futuro será mais justo, mais igualitário porque é o que vem acontecendo desde o passado. Só comparando épocas históricas podemos avaliar a dificuldade em prosseguir. A pena de morte foi extinta nas sociedades evoluídas e as nações, ainda com muitas lacunas, providenciam para que os mais carenciados tenham subsídios e ajudas no campo da saúde e educação. Eu comparo com o tempo de meus pais, e vejo uma evolução significativa. Precisei de escrever isto para me animar. Tento dizer isto aos mais novos, mas é difícil que entendam! A idade tem poucos benefícios, mas a experiência devia ser aproveitada. Não ouso dizer em público o muito do que aprendi com a vida. Julgo ridículo não se querer aproveitar o trabalho das pessoas depois dos sessenta anos e não dar oportunidade remunerada a quem sabe transmitir essa experiência. Muitos reformados tentam enveredar por ocupações novas, remuneradas ou não, porque a inação acelera a morte.

O voluntariado já rejeita propostas devido ao grande número de gente capaz, sem ocupação que o procura. Isto é um drama. &

 

A Tia Valentina passava para o seu Livro de capa preta muito do que pensava e não tinha a quem dizer. Era uma alma aberta, bem-intencionada. Sentia-me um pouco culpada por nunca lhe ter dado a atenção que merecia. Poucas pessoas têm a sorte de ter como educadora a mulher que eu tive e não percebi o alcance da minha sorte. Só agora que ela estava a uma distância enorme, no Médio Oriente, me foi dado abusar da sua confiança e neste livro reconhecer a minha pequenez. O assunto da acompanhante de minha mãe nos últimos tempos chegou até mim como uma bala disparada do escuro.

Sinto-me contente com a vinda de uma neta e a possível melhoria de vida da Loti, mas preocupo-me com o Zé que me parece encobrir qualquer problema e, estranhamente, não ouso enfrentá-lo preferindo continuar em dúvida. Quando a Tia Valentina chegar talvez ela seja a chave para este problema. O Zé sempre conversou bem com ela e têm uma boa relação de afeto.

Na organização das jovens mães entraram mais duas grávidas com quinze anos. Uma angolana residente desde a infância em Portugal. A outra parece que foi abusada pelo padrasto e tem atitudes intempestivas e difíceis de aceitar naquela casa onde todos nos esforçamos para aliviar os traumas que vêm do exterior. A psiquiatra conversa com elas duas vezes por semana.

Há vários dias que não escrevo. O tempo voa com as ocupações a que aderi e ao muito que se vai acumulando. A família da Loti chegou do Brasil. Ela continua nas aulas, por isso vou tendo notícias. A sua mãe - diz ela - parece uma senhora e ficou doida com o neto. Comprou um enxoval e está a tentar através da Câmara arranjar uma casa decente embora pagando ela uma renda. As coisas estão a andar muito rápidas porque ela e marido só podem estar em Portugal dez dias e querem que fique tudo tratado. Ainda não os vi.

Finalmente resolvi, sem querer pensar demasiado na forma de abordar o assunto, pedir ao Zé que me explicasse se tinha alguma preocupação que pudesse partilhar comigo. Inexplicavelmente ele anuiu e disse que não o tinha feito antes para não me aborrecer. O Luís Andrade, colega que estava acima dele na hierarquia hospitalar, estava com uma doença incurável.

Percebi o problema. Não podia ficar descansada porque conhecia o médico, sabia das pequenas rivalidades com o Zé e o caso para além de dramático, trazia-lhe problemas de consciência. Agora vou esperar que a Tia Valentina chegue e poderei deixar sair a angústia que sinto pela fatalidade em si e pelo choque terrível que está a ocasionar no Zé.

 Vou ter de organizar a exposição no hospital e gostava que o Luís Andrade ainda pudesse assistir. Sei que a mulher pinta muito bem e tencionava convidá-la para expor na Sala Verde. De um dia para o outro a vida das pessoas pode mudar e tudo aquilo que girava à sua volta se modifica.

A Adelina, num dos nossos encontros em casa da Tia Valentina, disse-me que não sabia como devia abordar o assunto, mas andava muito cansada, queria ir gozar o seu resto de vida para a casinha perto de Montachique. Calculei o problema que esta decisão acartava. Não valia a pena preocupar-me já. A Adelina esperaria até a Tia Valentina arranjar uma solução. Mas fico a pensar seriamente porque naquela idade arranjar uma substituição não é tarefa fácil.

Estou a viver o meu dia-a-dia com emoção e percebo agora perfeitamente a contribuição que a Tia Valentina me deu quando andava dada à inércia e com problemas depressivos. Vou tentar encontrar alguém para substituir a Adelina e penso que nesta altura devia ter uma empregada, sem grandes compromissos, para poder, se necessário, ficar interna. Sei que ela vai barafustar, mas vai ser preciso.

O João mandou um mail em que se refere ao trabalho da Mónica. Em Telavive há um núcleo de cientistas a fazer pesquisas semelhantes às do grupo da Mónica. Ele, sabendo do meu contacto recente com ela, procura-me como um elo de aproximação. É o tal modo dele, um pouco tímido, e que tanto pode conquistar como afastar as mulheres. Eu gosto tanto dele que só o quero ver feliz, mas será felicidade insistir numa relação que fraquejou ou esperar que outra afeição o estimule a seguir novo caminho? Escrevo isto mas já estou a mandar um mail para a Mónica. É uma atitude romântica e fora de moda, ou os sentimentos através dos tempos são vítimas de conservadorismo?

O Luís Andrade sai hoje do hospital e entra de baixa. Frase ridícula que escrevi. Ele e todos no hospital sabem que não voltará. Calculo o trauma que o Zé está a sofrer e como vai reagir num futuro próximo. Habituei-me a viver com um homem que interioriza os seus sofrimentos e angústias e, na sua quase hiperatividade, as consome. Felizmente o meu quotidiano está preenchido e agora que a Guilhermina, a nossa competente empregada doméstica, está de férias, preciso de agir e não de remoer problemas. Tenho de arranjar tempo para ir a casa da Tia Valentina, quero acabar a leitura do Livro da capa preta. É um imperativo e quase uma droga que tomou conta de mim.

É difícil fechar o Livro da capa preta porque me sinto culpada. É uma devassa na vida de alguém que estimo, prende-me e gera a sensação de apanhar um passado que me fugiu. Sei que minha mãe, mulher dócil, suave, dedicada à música, que tinha estudado no Conservatório e se ocupava a dar lições, era o oposto da Tia Valentina; de meu pai tenho pouquíssimas referências porque a sua saída de cena o ofuscou completamente. Veio a Portugal esporadicamente e desde que casei nunca mais o vi. Receei sempre fazer-lhe perguntas. Tenho algumas fotografias dele fazendo parte de uma caçada no Huambo. Pagou os meus estudos e até eu casar mandou uma mesada para as minhas despesas. Nunca me apeteceu perguntar porque me vinha ver tão espaçadamente... Esse facto foi uma pedra no sapato com a qual sempre vivi.

Talvez por isso percebi a expectativa que a Loti tinha ao aguardar pela chegada da mãe. Agora, aqui registo o abalo que senti no dia que fui a casa da avó da Loti, e conheci a família. A mãe é uma mulher linda e morena. Nada tem a ver com a Loti. Parece bem instalada na vida e desejosa de compensar a mãe, a filha e o neto pelo abandono prolongado a que os votou. O marido não estava. Por estranho que pareça a Elvira, é esse o seu nome, chamou-me de parte e tentou justificar-se. Afastei a conversa rapidamente porque o meu papel de voluntária na Instituição não deve admitir entrar na vida íntima das famílias. No entanto fiquei a saber que o pai de Loti era um polaco que a Elvira encontrou num campo de férias e que pouco tempo depois partiu de Portugal.

A explicação do loirinho bebé.   

Estou a ficar um pouco envolvida nesta família e gostava de não pensar tanto no assunto. Será que a Loti nunca procurou dar a notícia da sua gravidez ao rapaz com quem teve a relação? Ou teria ele fugido a responsabilidades? Parece-me que certo comportamento feminino é desadequado, ilibando os homens de compromissos. Se soubessem da existência dos filhos talvez se humanizassem, procurassem assumir o seu papel. Resolvi ter uma conversa a nível particular com a orientadora da Instituição das mães adolescentes. Penso que as pessoas têm direito a conhecer os seus antecedentes para criar laços fortes de parentesco e diversidade. Ignorar quem as abandonou ou não teve conhecimento da situação na devida altura é às vezes um egoísmo para com as crianças que nasceram. Sei que não posso falar ao Zé sobre isto. Ele é demasiado pragmático para entender. Talvez possa fazê-lo com a Tia Valentina.

As notícias dos jornais são alarmantes sobre o Médio Oriente. Que a Tia Valentina regresse e venham com ela os dois filhos. Os ódios extremaram-se a um ponto  que a boa vontade do exterior não acalma as posições de ambos os lados. Há assim a continuação do êxodo dos mais novos com estudos académicos e conhecimento de outras culturas, a única solução é emigrarem. O mundo de hoje é um cocktail de muitos medos, valentias e outros sabores. A cereja é um humanismo que a Europa, embora convalescente, ainda representa.

Há dias que não vou a casa da Tia Valentina e os seus pensamentos debitados no Livro de capa preta começam a fazer-me falta. A minha intromissão ajuda-me a conhecê-la e isso implica apreciá-la melhor. Escrevo isto para ganhar o seu perdão. Antes, o perdão a mim própria. Contudo parece que ando à procura de qualquer coisa que nunca encontro.

 

Livro da capa preta:

& Ando a rasgar papeis. Levo um tempo infinito porque leio quase tudo antes de resolver destruir. As minhas memórias ou as dos meus mais chegados são tão importantes para mim que o trabalho de deitar fora é angustiante. Tenho agora na mão um texto da minha irmã Sofia que o escreveu dois meses antes de morrer e vou transcrevê-lo. Ela sabia que ia morrer.

Carta de Sofia

                   Foi bom ter nascido nesta família. Fui feliz enquanto foi possível ser feliz. Nossos pais deviam interrogar-se por ter duas filhas tão diferentes. Eles sempre diziam que a Valentina era a ação, a força, a audácia. Eu sei que sou o oposto e encontrei o meu equilíbrio no estudo da música, procurando ouvir para lá dos sons a alma de quem a escreveu. Consegui transmitir este gosto que às vezes é um êxtase a alguns alunos e tenho dois, excecionais, que já têm carreiras internacionais. Esse facto é para mim uma compensação. Eu serei sempre um pássaro de gaiola. Encontrei no Álvaro um recetor e parceiro das minhas falhas, e um pai maravilhoso para a pequena Vera. Espero que ela não herde as minhas fragilidades, nem as debilidades físicas. Para se ser feliz é preciso espírito de luta, autoestima, intrepidez. Atributos que não tenho. Felizmente que tenho fé num Deus que compensará os frágeis e nos conhece profundamente. A vida de Vera é a minha preocupação, agora que sei que vou partir. Como reagirá o Álvaro? É um enigma para mim, ele também tem as suas fraquezas. Vou-me embora com a dúvida”.

--- É escusado dizer o que me aconteceu quando acabei a leitura da carta aqui reproduzida. Há muito tempo que não a lia e parece que fugia dela ... --!

 Deveria já ter entregado à Vera esta carta. Julgava conhecer a Sofia, mas ninguém conhece o outro!

Para mim, a minha irmã Sofia era um ser indefinível porque parecia planar acima de todos. Estava muita vez ausente no meio das nossas conversas, entretinha-se com o piano, as leituras de livros essencialmente espirituais, às vezes cantarolava pequenos trechos de ópera e gostava de isolamento, mesmo depois de casar, gostava de ver o marido partir para caçadas para poder governar o seu tempo. Antes de a Vera nascer estava planeada a ida deles para Angola mas  a doença acabou com os planos.

 Sofia era, ao contrário de mim, uma mulher muito bela. O seu mundo era outro. Tinha um marido que a idolatrava e uma doença que a ia desgastando aos poucos. Conservou a beleza até ao fim embora estivesse magra e pálida, quando partiu. Parecia aceitar um futuro em que acreditava.   

 Sei que estas memórias terão um dia de ficar nas mãos de Vera. São suas de pleno direito. Quando sua filha Luísa as ler será já uma herança de alguém que não conheceu com intimidade e, depois, a seu tempo, ao lixo. Só avaliando o específico de cada época podemos perceber a nossa pequenez. O mundo atual é, como os ingleses dizem: “rubish”. Só os investigadores de certos ramos dão valor a documentos escritos.

A nossa mãe também escrevia notas num diário que o pai destruiu quando ela morreu. Pensava que assim fugia da tristeza e apagava os passos sacudindo a poeira das memórias. Cada pessoa por mais que se interesse pelos outros é sempre uma ilha. Estou ainda, com esta idade, a semear e a colher experiências e reconheço que isso é o que me mantem viva e ativa. Sou, como ela disse, o seu contrário. Não deixarei aquela saudade um pouco etérea de Sofia. Ajudei a criar a Vera e a procurar entendê-la e é a única forma de mostrar que sempre a admirei. Depois da sua morte a minha vida mudou com o abalo dessa terrível época.

O Daniel no “assento etéreo...”[2] ficará surpreendido com o pouco que se caminhou para o entendimento entre Israel e a Palestina. Procuro esclarecer-me mas, nem as leitura e as interpretações dos livros sagrados, nem a observação dos acontecimentos políticos numa zona a que fatalmente estou ligada me dão a dimensão do ódio gerado e acumulado. Meu pai era judeu e fugiu da Polónia, meu marido tinha antecedentes palestinianos do lado da mãe e pai judeu, muito crítico de ações de retaliação de ambos os lados. Como poderei alhear-me deste caos no Médio Oriente? Talvez alguém leia, antes de rasgar, estes desabafos e quando ler sobre as tragédias que se passam no mundo entendam que todos devemos agir. Há sempre forma de intervir, até pela escrita. Eu sou uma velha mulher e acho que devo agir.

Agora assino uma revista francesa que tem artigos sobre várias religiões e fico cada vez mais perplexa por haver uma vasta multidão cujos credos a leva  a fanatismos sem nome. Os navegadores antigos diziam: navegar é preciso, viver não é preciso; Fernando Pessoa dizia: viver não é necessário, o que é necessário é criar, eu direi: educar, instruir é preciso. Um homem interrogativo é sempre preferível a um homem convicto. Há no entanto convicções que dão aprumo a uma personalidade. Soube que recentemente o Álvaro fala esporadicamente com a Vera e não faço ideia da reação dela. As relações humanas estão envoltas em muitas teias! Fiquei desconfortável quando soube disso...&

 

Cada página que leio da Tia Valentina é uma lição para mim que tanta vez me sentia dividida. Sou atualmente uma mulher ativa e a ela devo o ter saído de uma depressão. A outra face é sentir que o que tenho de fazer não se encaixa nas horas do dia. O voluntariado na Instituição das mães adolescentes, a organização da exposição no hospital onde o Zé trabalha, as aulas de pintura a que dificilmente falto, os deveres da minha casa, o nunca negligenciar os encontros com a Luísa, que anda eufórica - ela é de extremos - as noites em que se proporciona pelo skype falar com o Tiago e alguns encontros de amigos, preenchem-me e, por vezes, extenuam-me. Nesses momentos de desânimo lembro-me da vida corajosa da Tia Valentina e reajo. Teria ela alguma inveja de minha mãe? Afinal ela só casou a seguir a minha mãe morrer e, nunca ouvi falar da sua vida amorosa. Quando tinha idade para me contarem alguma coisa sobre o sucedido já minha avó também tinha partido. Os homens da família não falam de assuntos íntimos de família.

Agora o meu pai fala uma vez por mês e pergunta muito pelos meus filhos, seus netos. que não conhece. Nunca lhe perguntei se tornou a casar ou tem uma companheira. A nossa comunicação nunca pode ser afetiva, há tanta mágoa dos dois lados! Não fala em voltar e agora dei o endereço do Tiago, que ele pediu, talvez haja uma aproximação. Quando contei isto por e-mail à Tia Valentina ela não comentou e desviou a conversa para um assunto trivial. Deve achá-lo cobarde por me ter deixado tão pequena ao seu cuidado ... que sei eu desta minha família tão desgarrada...?

Tento apanhar os fios de uma meada que é enleada  ou que a enlearam para me esconderem algum mistério que não posso compreender. Tenho medo de abordar a velha Adelina com perguntas sobre o passado e estragar uma relação de confiança. Afinal ela é a pessoa que conhece melhor a família e, com o seu sentido de humor, tem sempre transformado as minhas perguntas em brincadeiras que me tiram a força para insistir. Penso que adorava a minha mãe e por coincidência tem a mesma idade da Tia Valentina e às vezes festejam os anos juntas. Devia talvez empenhar-me apenas no presente, que me dá luta, e deixar o passado que me obceca? Julgo que a leitura do Livro da capa preta é responsável pelo atual desejo de averiguar o passado.

Para a semana vou ultimar os contactos com os pintores que vão expor na Sala Verde do hospital. Alguns já fizeram o preçário, outros estão atrasados e começo a preocupar-me. No dia da inauguração, a amiga da Tia Valentina, que toca viola, acedeu a estar presente e a dar-nos uma boa colaboração musical.

 

Livro da capa preta:

& Quando era nova escrevia um Diário que guardei ciosamente num pequeno cofre e trazia a chavinha no fio ao peito. Um dia tirei a chave e guardei-a no forro da minha gaveta das bijutarias. Na horrível época em que morreu a mãe, a Sofia piorou e entrou aquela estranha eis noviça para nossa casa, a chave desapareceu. Não tenho provas de quem a tirou do esconderijo mas pelo comportamento de Laura nos últimos tempos que antecederam a morte de Sofia, sou levada a suspeitar que seria a única pessoa que poderia fazer este ato tão maldoso e inconsequente. Estávamos todos muito fragilizados. O pai precisava de alguém que se ocupasse inteiramente de Sofia, eu andava exausta e o marido de Sofia, o Álvaro, parecia uma alma penada. Alguém falou ao pai de uma rapariga que tinha desistido de continuar no convento e precisava urgentemente de se empregar. Na altura, parecia a pessoa adequada. Nos últimos três meses da vida de Sofia, a Laura conseguiu de uma forma sub-reptícia e maldosa, introduzir-se e destabilizar a família e até as empregadas. Só a nossa querida Adelina sempre desconfiou de algumas manobras. Não mais escreverei sobre Laura porque a sua reação na semana da morte de Sofia marcou a vida de todos nós.

Muitos anos depois deixei o Diário e comecei, neste livro, a registar acontecimentos, pensamentos, opiniões. È talvez uma forma de disciplinar as minhas atitudes e  de me sentir menos só. O que aqui anoto nem sempre é cronológico, são ideias que me assaltam que preciso registar. Sei que no tempo curto que me sobra às vezes falho as minhas confidências ao Livro de capa preta mas a vida diária ocupa-me com minúcias. Se só me ocupasse em escrever neste livro seria mau sinal, não estaria a viver.

Observar a Vera a ocupar-se e a reagir à sua tendência para a depressão é um sossego. Também se vai habituando a ter o Tiago em Portobelo e vai investigando  algumas das suas origens na Ilha Terceira. Geralmente, só para lá dos sessenta anos resolvemos indagar sobre os antepassados, mas ela, devido ao filho ter encontrado uma colega portuguesa, a Carmo, neta de terceirenses, começa a querer indagar. Hoje, com as novas tecnologias, o trabalho é mais fácil e eu também consegui alguns dados extraordinários, próprios de um romance policial. Parece que o apelido que os bisavôs da Carmo usam deixou de ser usado na nossa família devido às lutas entre miguelistas e liberais. Um antepassado terceirense esteve no continente e tomou parte nas lutas pelo lado de D. Miguel. Quando a batalha acabou, alguns dos oficiais mais próximos do príncipe, para escapar a perseguições, mudaram de terra e de apelido. Este facto atrapalhou as investigações, mas acabaram por concluir que ambos derivavam da mesma família. Há cada vez mais literatura baseada em biografias mais ou menos credíveis, mais ou menos romanceadas. Quando há familiares vivos e de boa memória alguns desses livros são considerados execráveis. O que fica para a história são factos misturados com lendas. A história de Inês de Castro e D. Pedro tem um lado tenebroso e um lado romântico e sobre esse amor infeliz tem-se vindo a construir músicas, bailados, peças de teatro. A vida da maioria das pessoas não interessa a ninguém, mas a curiosidade movimenta editoras e livrarias. Afinal, a um nível diferente, as pessoas são um pouco cuscas! &

 

Finalmente o dia da exposição chegou. Estava uma pilha de nervos e tinha de me controlar. A sala e os acessos à Sala Verde encheram-se de amigos, familiares e pessoal do hospital. Nunca pensei que fosse tamanho o sucesso em número de visitantes. Apareceu um único especialista que, eventualmente, com sorte, poderia vir a fazer uma crítica num jornal. Sei que há uma política quanto ao que vale a pena ser criticado ou anulado. Esse sectarismo existe em todo o mundo das artes e afasta valores da ribalta por os condenar ao silêncio. Felizmente, esta exposição não tem ambições!

A minha filha Luísa apareceu com um grupo de amigos e parecia eufórica. O Zé esgueirava-se entre os cumprimentos e parecia querer afirmar-se como um estrangeiro no seu hospital. As amigas da Tia Valentina vieram à inauguração. Infelizmente, o médico que tinha adoecido recentemente não apareceu. A enfermeira chefe, Anabela, registava na sua máquina fotográfica os quadros e o vaivém dos visitantes. Assim estava garantido o acontecimento para enviar ao Tiago. Foram vendidos quatro quadros e, entre eles, um que pintei. Confesso que fiquei surpreendida e também com pena de me separar dele. Um livro tem réplicas que ficam para o autor, um quadro é único. Só naquela ocasião percebi a diferença entre os criativos. As músicas, os livros podem não deixar saudades, os quadros, as esculturas, para só falar destas formas de arte, são peças únicas. No final fomos todos comer umas tapas. A família estava um pouco eufórica, exceto o Zé que parecia tristonho. Percebi que a ausência do Luís Andrade o perturbava.

Tenho andado a remoer algumas frases que li no Livro de capa preta. Sinto que há acontecimentos que nunca me contaram, que há mistérios que não devo indagar, que meu pai fugiu por qualquer motivo. Só a Adelina me pode um dia esclarecer e não devia deixar passar muito mais tempo. Não quero enfrentar este problema com a Tia Valentina. Se ela quisesse falar com mais nitidez sobre o passado, já o tinha feito. O essencial é não a magoar, mas começo a andar inquieta. Sei que minha avó morreu repentinamente poucos dias antes de minha mãe. Agora sei pelo que li no Livro que havia uma Laura que esteve pouco tempo e foi contratada para ajudar a tratar da minha mãe e parece que teve um comportamento inadequado ou se portou mal. O que fez? Porque só agora soube através do livro da sua existência, eu tinha quase seis anos! Não me lembro dela. Onde me levaram para eu não me lembrar nem da morte da avó, nem da mãe, nem da tal Laura?

 Faz muita falta não ter uma boa amiga de infância a quem pudesse confidenciar isto tudo. As minhas raras amigas têm famílias alargadas com muitos velhos e muitas crianças. Eu tenho uma pequena família, muitos ausentes no estrangeiro. Às vezes sinto-me no deserto de Atacama!

Os meus primos fazem-me falta e ando sempre inquieta por notícias. Nem sempre eles podem comunicar e as notícias sobre o Médio Oriente são aterradoras. Quem dera que voltem e que comecem os jantares à quinta-feira na casa da Tia Valentina. Nos últimos tempos a família encontrava-se e era muito bom. A Luísa vinha com o marido, o Diogo, que sempre trazia histórias frescas e anedotas políticas atuais que tornavam os jantares muito divertidos. O Tiago ainda não tinha partido para Portobelo e eu e o Zé contribuíamos com o queijo açoriano. À volta de uma mesa cria-se um ambiente inesquecível, são essas memórias de família que eu quero preservar, preciso que voltem. Os anos da escola interna, da morte dos avós, da falta de notícias de meu pai e depois, mais tarde, da morte do Tio Daniel, toldaram muitos anos da minha vida. Sei que tive uma adolescência difícil e que muitos destes problemas deviam ter afligido a Tia Valentina. Agora estou esperando uma neta e vou dar mais atenção às aulas de pintura. A Loti está muito melhor e empenha-se a estudar com entusiasmo. Parece que a sua vida deu uma volta. Ela foi abordada pela psicóloga na perspetiva de vir a contactar o pai do seu filho. Estes problemas humanos interessam-me e já tenho os outros dois casos que julgo difíceis de estabilizar. 

Espero, sempre que retomo a leitura do Livro de capa preta, por algum dado que me esclareça dúvidas que persistem no meu espírito, mas a par desta curiosidade há o medo de qualquer coisa de indefinido que pode abalar o conceito que tenho sobre a minha família. A ida de meu pai para Angola logo depois da morte de minha mãe nunca me foi explicada. Antes da Tia Valentina voltar quero enfrentar a Adelina, contudo receio aborrecê-la, logo agora que ela vai ter de dizer que vai de vez para a terra.

A mãe da Loti e o marido partiram e deixaram várias promessas. A avó já vai para a semana viver num andar de melhores condições e nessa altura querem que eu as visite. A Loti estuda com empenho e parece que andam a fazer diligências para contactarem o pai da criança. A psicóloga e a diretora da Instituição estão a indagar. Eu sou apenas uma voluntária, mas sigo o caso com interesse. Às vezes sinto que ainda ando pelo mundo dos livros de fadas que lia ou que me liam em criança. Desejo que tudo caminhe para um desfecho feliz.

Infelizmente acabámos de receber a notícia da morte do Luís Trindade. A sua leucemia foi rápida. Amanhã vamos ao funeral e sei que o Zé está duplamente triste. Vivia um pouco em competição com ele e admirava-o. Para um médico, estas doenças sem resposta pela medicina são um estigma. Não escreverei sem receber um mail da Tia Valentina. O espetáculo fúnebre é sempre deprimente porque nos lembra a nossa curta passagem, porque vamos ter saudades de quem partiu, porque me faz lembrar a frase de uma senhora inglesa que conheci, a Eve, que dizia que combinou com o marido que não iriam ter filhos porque não era justo sujeitá-los à lei da morte. Na altura achei que a razão era outra, talvez medo do parto, talvez grande egoísmo. Quando assisto a um funeral vem-me, mesmo sem que queira, esta frase.

Felizmente o Tiago avisou que pelas sete da tarde estaria no skype vai ser bom ouvir as notícias e vê-lo.

Os portugueses da classe média gostam da família aos cachos, como dizia o avô, as classes do povo carenciado tinham a coragem de emigrar para poderem melhorar as condições de vida. Agora a classe média também emigra e os velhos vivem cada vez mais sós. Tudo tem de ser reestruturado. Lares melhorados, mais universidades para a terceira idade, escolas de arte para ocupar os tempos livres e visitadoras bem preparadas para cuidar de doentes acamados ou presos a suas casas. O voluntariado é hoje uma grande e generosa ajuda.

Há duas gerações os filhos tomavam conta dos velhos da sua família, fossem agradáveis e úteis ou maldispostos, era assim. Bem diz a Tia Valentina que em pouco tempo uma nova ordem civilizacional tomou conta da Europa e há uma escala de valores diferente. Com apartamentos pequenos os novos são absorvidos pelo horário de trabalho e múltiplas obrigações e os velhos ficam nos Lares.

O dinamismo acelerou-se, especialmente com as novas formas de comunicação. Comunicação não quer dizer companhia e um monitor não tem expressão, é a frieza e o contraste de luzes, contudo é o mundo ao nosso alcance. Vive-se muito num intercambio onde a Net é o rondpoint.  

 

e-mail da Tia Valentina

 

: Já soube da morte do colega do Zé. Que fatalidade! Nunca aceitamos a morte de alguém que está na força da vida e desaparece em pouco tempo. Será que o Zé vai de facto ocupar o seu lugar? Aqui onde estou fala-se pouco na morte porque ela vive a nosso lado. Ainda bem que há algumas boas notícias e estou contente de saber da reviravolta no temperamento da Luísa. Quando se tem um objetivo e se falha há um sentimento de culpa que se instala e sentimo-nos como um barco a adornar.

Aqui há entre a gente nova um certo desconforto com a Primavera Árabe. O aproveitamento de diferentes grupos que infiltrando-se procuram o poder ou apenas destabilizar. Os judeus mais velhos que tentam falar-me quando apareço nas reuniões onde há uma assistência de diferentes grupos etários, transmitem algumas fontes do seu orgulho. Israel, único estado criado depois da II Guerra Mundial (por decreto), protagonizou uma inequívoca história de sucesso que as antigas colónias africanas não conseguiram quando se tornaram independentes. Os árabes nunca perdoam este facto! O fundamental seria tanto os palestinianos como os israelitas admitirem uma separação entre o laico e o religioso, mas a religião faz parte da educação destes jovens e, infelizmente, a tendência a criar mártires. O que é estranho é que depois do Holocausto esperava-se que muitos emigrantes judeus que padeceram de crimes se acolhessem ao novo estado de Israel, mas tal não aconteceu. Os que viveram em países árabes, como no Iraque, e tinham um estatuto privilegiado, devido à sua habilidade no mundo dos negócios e na cultura, quando se refugiaram em Israel não foram bem aceites. Há no ser humano muita mesquinhez e desconfiança e acho que os defeitos que os portugueses têm, especialmente a pequena inveja, não se comparam aos caminhos de exclusão com outros povos. Somos solidários nas alturas difíceis e orgulho-me de ser portuguesa.

Acho que está na altura de regressarmos e iremos adquirir os nossos bilhetes em breve. Infelizmente o Miguel ainda não está preparado para dar por finda a sua missão. Como já te disse anteriormente receio que ele para sinta que tem de contribuir para a paz de qualquer forma, a morte do pai e estas preocupações messiânicas afastam-no de uma vinda a Portugal. É a minha preocupação.

Querida Vera sei que vou regressar carregada de angústias por ver os poucos progressos para uma convivência entre israelitas e palestinianos. Os grupos que desejam a paz e a partilha deste espaço onde poderiam conviver fraternamente, não vão, nos anos próximos, conhecer progressos significativos. Porque será que a vida humana é tão curta e se procura o litígio e não a cedência de parte a parte? Eu, que estou no fim da vida não me conformo com a falta de senso. O espírito de vingança nunca traz a paz individual e coletiva. Há sempre culpas de parte a parte e, contudo há gente de grande nível intelectual e de generosidade que procura a convivência e a concretização dos dois Estados: a Palestina e Israel.

Quando chegar aí haverá alguns problemas a enfrentar, mas nada que não se possa resolver. Em breve organizo um bom almoço de domingo para nos juntarmos. Tia Val.

Este é o nome que aqui me deram e eu gosto. :

 

O tempo parece um cavalo com o freio nos dentes e há quem diga que isso é felicidade! Quando se sofre o tempo arrasta-se. A Tia Val, como agora a vamos tratar, tem forçosamente de voltar diferente porque viveu momentos de grande intensidade num canto do globo onde a história se faz de intolerância. O Zé continua agitado e pouco comunicativo. Felizmente tomou a seu cargo sair com o Manacés, o nosso retriever, e assim expande os humores. O Tiago mandou um site sobre Portobelo e também mostrou o apartamento onde vive. Parece estar a integrar-se e, não sei se gosto. Pensamos que os filhos são um pouco nossa pertença e que lhes podemos fazer alguma falta mas está errado. Afinal ele é meu filho e do Zé e a sua herança genética condiciona o seu comportamento. Será bom que não tenha herdado as minhas tendências depressivas. Assumir a sua independência é bom e desejável, mas bem no íntimo gostaria que tivesse muitas saudades nossas.

Finalmente a Loti comunicou com o pai do filho. Ainda não falei com a sua orientadora e espero que me contem que reação houve da parte do rapaz. Tento ser discreta apesar de estar verdadeiramente interessada. Entretanto o problema da mãe adolescente que tinha engravidado do padrasto está a dar sérios problemas à Instituição porque ele faz ameaças. Há dias alguém deitou uma pequena bomba incendiária para o pátio, que não teve repercussões, mas a pequena anda muito nervosa e não querem dar-lhe sedativos porque está a amamentar o bebé.

Continuo a ler os livros que adquiri sobre o problema Israelo-árabe e percebo o comportamento dos judeus e dos palestinianos que nos países ocidentais tiveram sucesso e se sentem ocidentalizados. Viver em democracia pode ser muito difícil mas não é trágico! Viver em permanente guerrilha é um drama.

As aulas de pintura durante este mês obedecem a um tema - Solidão - diz o professor que o trabalho deve ser feito em casa e os alunos não podem comunicar o que estão a fazer. No atelier vão ser projetados obras de vários pintores com o comentário do professor. É uma variante que desperta interesse e estou muito contente por ter retomado as aulas já há algum tempo, devo esta decisão à Tia Valentina. Fomos ao cinema e o Zé está mais descontraído.

Vou ter de planear o dia para conversar com a Adelina sobre o passado e apesar desta decisão estou a pensar como hei de abordar o problema. Sei que vai esquivar-se mas quero mesmo perceber o que se passou naqueles dias terríveis em que morreu a avó, depois a mãe e em que meu pai foi para fora. O mistério já dura há tempo demais. O Livro da capa preta não explica mas deixa dúvidas e, antes da chegada da Tia Valentina e do João, tenho de perceber o que aconteceu. O avô era um cofre-forte e já morreu há vários anos e a Tia Valentina desvia qualquer assunto sobre essa época.

--- interrompi aqui porque o pai me mandou um e-mail que me surpreendeu ---

Espero que estejas bem assim como toda a família. Que notícias tens de teus primos? Aquilo no Médio Oriente está muito feio. Vou a Lisboa no fim do mês que vem para tratar de assuntos ligados à minha empresa. Vou querer estar convosco.” Assinou “Teu pai que lastima este afastamento”.

O encontro com a Adelina era agora compulsivo. Quero perceber que mistério envolveu a saída brusca de meu pai. Há em mim uma urgência que me distrai permanentemente. No outro dia deixei os óculos de ver Televisão dentro do frigorífico. Poisei-os quando arrumava as compras do supermercado. Deixei o telemóvel no cabeleireiro e, como não há duas sem três, deixei no voice mail do telefone fixo uma recomendação longa para a Luísa que foi parar à minha médica Luísa Paradella. Tenho de me acalmar e resolver progredir na minha intenção. Assim, liguei para a Adelina que estava em grandes limpezas na casa da Tia Valentina. Disse apenas que ia lá no próximo sábado de manhã e que precisava combinar umas coisas com ela. Se falasse em conversa, esquivava-se.

A vida parece uma caixa de surpresas, umas agradáveis e outras que não sei como as vou receber. O não poder partilhar aflige-me. O Zé acha ótimo o meu pai aparecer, mas não está por dentro dos conflitos passados na família. Ele é filho único e os pais viveram no Brasil e morreram num acidente de avião há vários anos. Só tem primos que raramente vê. Assim que resolva a conversa com a Adelina, vou começar a esboçar o quadro sobre “a solidão”. Tenho algumas ideias e vai ser difícil a escolha.

Livro da capa preta:

& Sempre que me lembro da nossa casa e da vida organizada e calma que se levava parece que estou a folhear um livro cuja capa já não tem título nem data. A vida depois de meus pais e de Sofia morrerem deu uma volta total. Felizmente viajei com o Daniel pela Europa e guardo as melhores recordações da ida à Itália.

A nossa estada em Florença foi inolvidável. Chamam-na o museu a céu aberto e precisámos de uma semana para ficar a conhecer um pouco mais que a correria turística nos oferece. Foi numa das pontes que passam sobre o Arno que Daniel me fez a mais bonita confissão de amor e que nunca posso esquecer. Depois fomos ao Pallazo Vecchio na Plaza dela Signoria, às Galerias Uffizi e, como era sempre obrigatório para o Daniel, visitámos os vários mercados. Ainda guardo um mapa em cabedal que ele me ofereceu no mercado San Lorenzo. Não posso esquecer a Pensione onde estivemos e que era muito curiosa. A sala tinha a parede cheia de relógios e todos davam as horas. Havia um empregado responsável pelo seu funcionamento. As mesas de pequeno-almoço, todas cobertas de toalhas bordeaux, as empregadas andavam vestidas à moda florentina. Daniel não era homem para saltitar de monumento em monumento, dizia que não tinha alma de gafanhoto e quando saímos de Florença ele registava num caderninho o que mais o surpreendia. Não havia Ipad nem telemóveis, só máquina fotográfica e parecia-nos suficiente. Ele gostava de rever as suas viagens e guardei o caderninho na esperança de que um dia meus filhos pudessem conhecer melhor o maravilhoso pai que perderam tão cedo.

 À medida que o tempo passa e quando começo a pensar no que devo deixar para meus filhos e para a Vera mais me apercebo do valor relativo que cada geração atribui aos seus valores, às suas vivências, à importância das memórias.

Para mim, o problema de Israel e da possibilidade de os palestinianos terem a sua pátria é muito importante, mas para a Vera e especialmente para o Tiago a viver uma vida nova em Portobelo, não tem o mesmo significado. A Luisinha tem a sua escala de interesses e ser mãe e manter o seu emprego é agora o seu objetivo. Não sei se deva destruir este livro onde anoto algumas vivências, pensamentos, considerações, confidências...nada terá verdadeiro valor quando partir e pode entristecer quem os ler e levantar o problema de quando deitar fora. Como lastimo as pessoas que por este mundo fora se põem tantas vezes nos bicos dos pés, julgando-se senhores da verdade e arautos de façanhas. Cada vez mais aprecio as pessoas genuínas que constroem as suas vidas com espírito de partilha e se devotam ao trabalho com interesse de bem cumprir. Felizmente que trabalhei mais de vinte anos num arquivo histórico e que isso me fez compreender a evolução e a exiguidade do tempo.

No meu pequeno grupo de amigas viúvas ativas encontro gente que tem interesse pela cultura e, felizmente, sentido de humor. Divertimo-nos bastante e quando estivemos em Guimarães (neste ano, capital da cultura) constatámos que é uma cidade, falando do Centro Histórico, que representa a verdadeira dimensão de Portugal. Nada é imperial ou monumental como noutros países da Europa. Ali senti a marca da nossa portugalidade e vi num domingo muitos jovens casais, acompanhados de seus filhos, compenetrados na sua fé, na belíssima Igreja de S. Francisco,.

 Quando saí da igreja comprei um jornal e lá vinha a xicanagem do costume de invejas políticas, digo antes, tribais. O nosso jornalismo, fora honrosas exceções, é de um nível muito baixo. Alguns jornalistas propalam as suas opiniões pessoais e dão preferência às notícias negativas convidam intervenientes que repetem até à exaustão suas opiniões muitas vezes apenas partidárias e que nada têm a ver para a solução dos problemas que se foram acumulando. Os compradores de jornais vão-se desinteressando. Penso muitas vezes nos adeptos de jogos cerebrais como o “bridge” e o “xadrez”, para só falar nestes dois, que se alienam mas, ao menos, põem o raciocínio à prova e afastam-se de muita canga acessória do lixo do mundo.

Terei certamente de esclarecer alguns factos do passado e nunca acho altura de o fazer. Agora o Álvaro vai-se aproximando da família que abandonou...e sinto uma certa curiosidade no comportamento da Vera mas, mexer no passado, pode ser perigoso. Cada pessoa reage diferentemente aos choques psicológicos!

Visitei as duas amigas do tempo de escola que se amarraram ao passado e vivem enclausuradas em casa saindo só para irem a médicos e fazer exames. Não estão verdadeiramente doentes, mas velhas por dentro. Custa-me imenso o diálogo porque nunca aceitaram ter uma velhice ativa e quem sou eu para as aconselhar?! Sinto, quando me afasto, que não sei como tornar a visitá-las, mas seria injusto não o fazer. Parece-me que não terei a sorte de ser avó, meus filhos tardam em resolver as suas vidas. É certo que a criança que a Luisinha vai ter será como neta. É bom. A vinda de um bebé é um acontecimento fabuloso! &

 

Voltei da casa da Tia Valentina e venho dececionada. A Adelina sentou-se na sala comigo, pegou numa almofada do sofá afagou-a, e parecia uma múmia. Ela é a pessoa que eu mais estimo porque me deu muito mimo e a Tia era menos ternurenta. Contudo, depois de lhe ter dito que sabia que alguma coisa de muito grave se teria passado para haver a coincidência de a avó ter morrido oito dias antes de minha mãe e o meu pai ter partido logo a seguir e se manter tanto tempo afastado... Ela apenas disse: “Pergunta à Tia... se o pai vem de Angola pergunta-lhe, eu nada vi diretamente e só ouvi dizer...coisas que não podiam ter acontecido...não quero falar mais... desculpa...” Despedimo-nos.

Quando cheguei a casa tive uma reação estúpida ou primitiva ou as duas coisas. Porque seria que a Adelina se portava como um cofre-forte? Nem uma nesga deixou! Que época estranha foram os últimos dias de minha Mãe? Teria ela conhecimento do que se passava à sua volta? Com a maturidade que fui adquirindo sei que se podem gerar conflitos entre reduzidos grupos de pessoas que se encontram dependentes entre si. Os atritos podem avolumar-se e as causas podem ser motivos sem grande valor.

 Havia de facto alguns dados que eu sabia: a minha avó faleceu quase repentinamente, uma semana depois a minha mãe morreu, o avô entrou numa espécie de paranoia e destruiu tudo o que pertencia à mulher, poucos dias depois do funeral da minha mãe o meu pai partiu para Angola e eu fiquei aos cuidados da Tia Valentina e da Adelina. A tal Laura que acompanhava a minha mãe saiu depois de deixar um mau ambiente e nem a Adelina se quer a ela referir, nem a Tia Valentina alguma vez me falou dela. Porque será que depois de andar a ler o Livro da capa preta escrito pela Tia eu começo a indagar-me? A única razão lógica é querer perceber porque o meu pai me abandonou logo a seguir a estas tragédias, embora providenciasse monetariamente com as despesas para a minha manutenção e viesse algumas vezes a Portugal. Havia dois factos que contribuíram para reclamar a minha curiosidade. Ter lido o livro e começar a receber e-mails de meu pai. Escrevendo liberto-me de tensões.

Agora espero que mais uma semana passe. Aqueles tempos recuados parecem postados à minha frente como uma muralha.

O Tiago quer saber muita coisa sobre os antepassados terceirenses e já não tenho a quem perguntar. Documentos escritos numa família são essenciais, mas o meu avô, com aquela postura de tudo fazer desaparecer quando a avó morreu deve ter destruído o “tesouro” da avó Raquel. Aquela malinha de cabedal castanho onde guardava “as sementinhas da minha família” dizendo que tinham todos de saber o que continha: Acho que a forma de o avô expressar o desgosto foi intempestiva demais.

O pai do bebé da Loti nunca soube que ela tinha ficado grávida e foi com a família para o Luxemburgo. Ele explicou que tinha telefonado várias vezes e que nunca conseguiu falar até que desistiu. Este procedimento feminino de desculpabilizar não é único e sabemos que faz parte do comportamento de um grupo de mulheres. Assumir por inteiro o que aconteceu. É talvez um misto de orgulho, de se castigar por ter deixado que ocorresse. O rapaz vem de férias a Portugal e quer conhecer o filho. O bebé está lindo e olha o mundo com aqueles enormes olhos azuis iniciando a vida sem se aperceber do drama que foi o seu aparecimento. Vou ao aeroporto esperar a Tia Valentina e o João, mas antes vou dedicar o fim de semana a acabar a leitura do Livro.

 

Livro da capa preta:

& Como resolvi ir ter com os meus filhos vou talvez pôr um ponto final nestes  relatos que me têm ajudado a conhecer-me. Quando leio excertos fico perplexa porque, muitas vezes, a vida corre como um rio que vai desaguar noutro rio ou no mar, e não damos o devido valor ao memorando da nossa vida. O cumprir tarefas necessárias, mas sem substrato digno de serem lembradas, ocupa a maior parte do tempo de muitas pessoas e há, no fim da vida, a sensação de termos iniciado uma corrida programada sem que tivéssemos podido alterar os trajetos. Por isso respeitamos as pessoas que, sacrificando e selecionando, às vezes negligenciando obrigações, seguem um rumo que as leva a construir um objetivo que acharam primordial. A heroicidade de cumprir um quotidiano banal não dá notoriedade mas pode ser a base e a estrutura de uma sociedade.

Seria um gosto assistir à vinda de netos. Seria bom ter algum parecido com o Daniel. Ele era um homem de causas e não viveu o suficiente para deixar uma memória nos filhos. Gostaria de saber que o Miguel herdou a sua força combativa e também o drama existencial. Eu, como mãe gostava de o ver em Portugal, num emprego estável, casado e com filhos. As mães nunca gostam de ter filhos ou filhas heróis. As mães sabem que viver no fio da navalha nunca é bom, mas também sabem que devem respeitar os ideais dos filhos. As mães inteligentes sabem que o excesso de prudência e o conformismo também é uma forma de morte antecipada. Às vezes fazer um tapete de Arraiolos, uma renda de filet matemático, uma camisola de torcidos é um bom antídoto para os males da alma. Tenho a sorte de ter algumas amigas que, para além de alguns trabalhos manuais, procuram ler George Steiner, António Damásio, Fernando Pessoa e todo o compadrio heteronímico e muitos dos atuais nossos escritores que honram as letras portuguesas. Por experiência pessoal sei que ler as obras é sempre muito mais compensador que o encontro pessoal com as sumidades. Os atores num palco saem do teatro e são personagens banais que se cruzam com o quotidiano de todos nós. Quando assisto a sessões de autores dedicando seus livros a uma assistência penso sempre no efémero do ato passado uns trinta anos, às vezes apenas uma semana!

Como Piaf tinha razão ao cantar Rien de Rien. Grito de um surrealismo que mais tarde só havia que lamber as feridas. Feridas que ficam sempre depois de um Movimento feito de impulsos onde outra expressão de arte rompe. A arte não tem medo do escândalo! Será? Sobre isto havia muito a escrever, mas sem confronto ficam os monólogos como “dobrada fria”.

Ludwig Wittgenstein, filósofo de origem vienense e nacionalizado inglês, professor de lógica matemática, dizia que só publicam livros os que são demasiado fracos ou vaidosos. De facto escreveu aforismos na sua obra “Tractatus”, nunca ensaios ou textos longos. É uma figura controversa e preciso ler alguma coisa sobre ele. Deixo aqui a referência para não me esquecer. As duas amigas com quem tinha a possibilidade de confrontar estas ideias já morreram...a solidão tem muitas componentes...

Recebi um cartão com uma frase enigmática e assinado por uma Madre Superiora de um convento. Dizia apenas: “Agradecia que, quando tiver disponibilidade, possa vir falar comigo. É um assunto delicado que se passou há vários anos e fui informada que me podia ajudar a resolve-lo. Depois assinava Madre Maria do Espírito Santo. Nunca conheci ninguém deste convento e não vou ter tempo agora de lhe responder. Tenho suficientes preocupações e empreendi este projeto de me deslocar para uma zona que sempre me atraiu mas onde memórias boas e más se misturam e me destabilizam. Não devo procurar mais nada sobre o passado e só no presente quero viver.

 Quem sabe se o que escrevo hoje é a última página deste livro?! &

 

Vi partir a Tia Valentina e nunca pensei que depois da leitura do Livro de capa preta ela se me revelasse outra pessoa. Conheci-a melhor e agora há uma espécie de autopunição por ter abusado da sua confiança. Tendo a entrada livre na sua casa e na sua intimidade, abusei e embora a possa admirar e amar melhor há o perigo de lhe ter roubado a alma. Afinal, aprendi pelos factos que aconteceram desde que nasci que a nossa relação com os outros é como o admirar a frescura do manjerico. Se abusamos e o palpamos com as mãos para envolvermo-nos no olfato, ele estiola e morre. Cada vez estou mais longe de entender os “meus” porquês, mesmo a Tia Valentina revelando-se pela escrita esconde o que eu queria que revelasse. A Adelina disse: “pergunta à tia ou ao teu pai”. Como vou abordá-los sem criar ruturas difíceis de superar?

O pai do bebé da Loti vem proximamente. Aguardo o encontro como esperasse que a Branca de Neve despertasse com o beijo do príncipe. Todas as mães adolescentes que foram recolhidas pela Instituição têm histórias mais ou menos trágicas. As que tiveram famílias que as acolheram não precisam da Instituição. O problema da injustiça no mundo gerou milhões de livros, abriu e fechou portas a religiosos, agnósticos e ateus. O mundo confronta-se diariamente com acontecimentos que nos deixam perplexos e só os pequenos gestos de afeto são recebidos como um lenitivo suave mas não suficiente. Quando escrevo estas frases fico assustada porque não quero voltar ao pessimismo e à depressão. Tento pôr na balança o que há de bom, perto de mim e em todo o mundo e sei que desejamos todos um paraíso inalcançável e idílico. Sabemos que no sofrimento às vezes se encontra o inatingível e o sublime. O homem redime-se da sua precária e inexplicável condição. Aprendi a pensar com a Tia Valentina, mas nunca lhe poderei explicar a herança que me tem vindo a deixar. Os exemplos de vida são bens que têm um certo virtuosismo mas não se exibem como os bens materiais.

O Zé não aceitou o lugar do Luís Andrade.

A tia Valentina terá que deixar de se defender das minhas interrogações já que a Adelina fechou de vez a porta às minhas perguntas. Agora vêm aí tempos que se avizinham complicados. O nascimento do meu primeiro neto, a chegada de meu pai com o seu mundo nebuloso, o enfrentar uma Tia que preciso interrogar e que traz as novidades da sua estada em Israel. Felizmente as notícias do Tiago são tranquilas ou, quem sabe, desejam transparecer tranquilas...quando tudo se acalmar talvez possa ir com o Zé a Portobelo.

 

7º e-mail da Tia Valentina

: Devemos chegar na 2ª feira pela 15h da tarde. Não se incomodem a ir esperar-nos. Vamos tomar um táxi no aeroporto. A última reunião do “One Voice Movement” foi conduzida por um jovem palestiniano e havia uma audiência mista. A maioria palestina mas também muitos israelitas não só da classe etária do palestrante. Há uma grande curiosidade da assistência numa altura em que a crise se agudizou. O orador, no final da sessão, chamou para o seu lado um amigo israelita que só disse: “ Não quero que a minha sobrinha de dois anos venha a enfrentar esta luta fratricida que dura há tantos anos. Depois calou-se emocionado e as palmas vigorosas partiram de toda a assistência. Imagina o que senti...as lágrimas corriam-me e não as tentei disfarçar, também chorava pelo Daniel.

Lembrei-me do incidente em que foi apanhado. Um carro das forças defensivas israelitas chocou com uma camioneta que trazia trabalhadores palestinianos e houve uma explosão. Ele passava num carro e ao desviar-se capotou. Esta explosão e as consequências foi o início da Primeira Intifada em dezembro de 1987. Não sei porque te conto isto! Viver numa área explosiva é difícil e vejo com apreensão a permanência do Miguel aqui. Espero encontrar-me em breve com todos e já recebi e-mails do meu pequeno grupo cultural para não faltar ao jantar do Natal. :

 

A Tia Valentina chegou com o João e eu fui com o Zé esperá-los. Ela emagreceu bastante e as suas olheiras estavam mais cavadas. Não sei o que senti. Uma apreensão, uma vontade de a abraçar e esconder as minhas lágrimas no côncavo do seu pescoço e poder estar assim longo tempo sem nada dizer nem desejar que ela falasse. Nada disso aconteceu. As nossas demonstrações exteriores andam sempre camufladas.

Levámos os dois a casa e conversámos um pouco na salinha da televisão da Tia. Ainda fiz graça sobre o diminutivo afetivo dado pelo David à Tia... passaríamos a chamá-la Val... se não nos refugiássemos no humor a vida era mais difícil. O Zé fingiu que a Tia andava a encobrir um caso amoroso deixado em Israel e cheguei a desejar no meio de tantos disparates que pudesse ter algum sentido. Talvez essa nova Tia Val aliviasse tantas preocupações. Gostava mesmo de a ver feliz no tempo final da sua vida. Eu queria libertar-me do abuso de ter lido o Livro da capa preta. Ficou combinado que a Tia e o João viriam no próximo domingo almoçar a nossa casa e a Adelina, que esteve sempre presente, ofereceu-se para dar uma ajuda. A família dela é a nossa.

Entretanto recebi outro e-mail do pai. Vem passar o Natal. A Luisinha está com a barriguinha muito redonda e a Adelina bem avisou: “Eu disse que só podia ser menina, mas com as ecografias estraga-se os saberes do povo...” Agora a vida acelerou-se e não visitei esta semana a Instituição das mães adolescentes. Soube pela diretora que a Loti está a fazer muitos progressos nos estudos e, pelas notas que teve neste período, deve passar de ano. O rapaz, pai do bebé, também chega no Natal do Luxemburgo. A Rita, a que teve o bebé presumivelmente do padrasto teve uma grave crise. Fizeram uma analisa e uma prova do ADN. Afinal a criança não é filha do padrasto.

Nem sei se convide o pai para ficar em nossa casa. O Zé acha que tem de ser e que é normal. Eu não consigo sentir obrigações afetivas. Que segredos guardaria a minha mãe quando morreu? Teria apenas morrido exausta pela doença mas em paz? Se ao menos a Tia Valentina falasse abertamente sobre aqueles últimos tempos em casa de meus avós... Apesar de o presente e futuro próximos estarem cheios de acontecimentos não deixo de recordar algumas linhas enigmáticas que li no Livro da capa preta.

Passaram-se mais alguns dias e enchi-me de coragem e vou insistir para que o meu pai não vá para o hotel. No passado ia sempre para um hotel.

 A tia Valentina esteve no domingo passado a almoçar connosco e a Luisinha e o meu genro também vieram. O João disse que tinha um programa e não veio. A Tia contou que ia ter um encontro com uma madre superiora num convento e que não sabia de que se tratava. Reparei que a Adelina fazia uma careta quando ouviu isto. Estava a colocar a travessa no carrinho de rodas onde nos íamos servir. Ao ver a expressão da Adelina, dei por mim a interrogar-me .... Parecia que tanto eu como a Adelina reagíamos com algum constrangimento mas a Tia falou com normalidade. Naturalmente ando a reparar no que me parece e não no que é.

 A Guilhermina já volta de férias no início da semana e vai-me ajudar a preparar o quarto de hóspedes que está atafulhado de coisas que o Tiago deixou antes de partir para a América. Quero que o meu pai se sinta cómodo e não lastime não ter ido para o hotel. Estou tensa e por isso voltei a ter dores nas costas. Desatei a apagar aquela torrente de mails que pessoas pouco ocupadas me mandam. Muitos são maravilhosos, outros, nada interessam, prefiro um bate-papo ao telefone e não tenho tempo para aguentar a avalanche. É uma nova forma de estar na vida e bem faz a Tia Valentina que pediu a todos que lhe enviavam quilos de e-mails que só o façam para comunicar o que não possa ser via telefone e telemóvel. Ela diz que tem uma curta esperança de vida e tem outros objetivos. Algumas pessoas acham que ela está fora de prazo!

Acho que a Adelina anda um pouco esquiva. A Luisinha retomou o trabalho porque a gravidez normalizou-se e anda bem-disposta, ainda não a ouvi falar do nome que pensa dar à criança. Eu sei bem o nome que gostaria mas nunca o revelarei. A viúva do Luís Andrade tem dedicado muito tempo livre à pintura e há quem a trate pela Paula Rego II. As figuras que desenha são talvez símbolos de alucinações, sonhos, são marcadamente configurações de um mundo de pesadelos. Eu, que prefiro pintar formas suaves, não aprecio, mas admiro a força inata que elas representam. Tudo que aqui escrevo é, sem eu querer, uma evasão às minhas preocupações. Como vai ser o encontro com o meu pai depois de tantos anos sem vir a Portugal? Iremos manter uma conversa de trivialidades ou vamos conseguir entrar na intimidade de cada um? Se a Adelina tivesse aberto uma nesga do passado eu saberia orientar-me, assim parece que vou receber o Álvaro Figueiredo cujo retrato a preto e branco está desde sempre em cima da cómoda do meu quarto e já veio da casa da Tia Valentina. É nessa postura que o lembro sempre.

Não consigo dedicar-me à minha vida diária com a naturalidade que ela exige porque ando enrolada com tantas perguntas por responder, tantas tarefas que não me deixam despegar das dúvidas que se vão acumulando na minha imaginação. Terá a minha mãe percebido que o meu pai não estaria preparado para me criar? Será ele um cobarde? Só a Tia Valentina pode realmente esclarecer-me. Porque não lhe pergunto diretamente, perentoriamente sem admitir evasivas? Acho que talvez tenha herdado de meu pai uma certa cobardia. Só em ocasiões extremas nos conhecemos um pouco e, se é desagradável, depressa afastamos os fantasmas. Agora ainda tenho de me preparar para enfrentar a Rita, a rapariga que acusava o padrasto de ser o pai do seu filho. Nem todos os casos correm como o da Loti.

Passaram alguns dias e não tenho tido oportunidade para escrever o meu Diário que começou por uma necessidade e já é um hábito.

Hoje, ao sair da Instituição, feliz por saber que a Loti está no bom caminho e encantada com o seu radioso bebé, fui abordada por um homem que me pediu para o ouvir pois era relacionado com a Instituição. Dirigimo-nos para um pequeno Largo ajardinado onde há alguns bancos e um quiosque que vende jornais e revistas.

Apresentou-se como sendo Arnaldo Freitas, o padrasto de Rita. Vendo-me hesitante, acalmou-me dizendo:

Preciso explicar a alguém da Instituição antes de falar com a Diretora. Sei que teve uma boa influência no caso de outra pequena que convive com a Rita. Já sabem que a Rita foi industriada pelo pai para engendrar a história malévola e que me culpava da sua gravidez. Preciso explicar o que está por detrás deste plano. O rapaz que engravidou a Rita é um jovem, filho de uma família de importância social e rico. Estão a dar mensalmente uma verba mas exigem que ela vá viver com a mãe ou o pai. Não os querem na Instituição. O pai de Rita, uma pessoa conhecida por seu mau caráter e que muito fez sofrer a minha mulher (mãe da Rita), fez o seu esquema para poder vir a ficar com a criança em sua casa e administrar o dinheiro.

Nesta altura, percebendo a complicada tramoia e não vendo como pudesse  ajudar tentei levantar-me para mostrar que em nada resolveria o assunto. Mas o Sr. Arnaldo, muito emocionado, pediu que ouvisse o resto.

“Ele, o Ernesto, conseguiu convencer a filha a dizer que eu, seu padrasto, era responsável pela sua gravidez, e a Rita estava também a vingar-se em sua mãe e por isso colaborou com o pai. A minha mulher mostrou alguma dificuldade em aceitar o problema da gravidez da filha. Note bem que lhe tinha sido diagnosticado um cancro na mama e começara a tratar-se no IPO. Foi uma altura difícil. Houve um dia em que a psicóloga percebendo que a Rita estava perante uma tramoia organizada pelo pai conseguiu que ela recebesse a mãe. Falaram e aclarou-se o caso: o pai queria a filha e o neto em sua casa para poder governar, a seu modo, aquela verba e afastá-la da mãe por ser casada comigo, o pretenso violador da filha, o homem de quem ele não gostava.”

Fiquei quase sem fôlego ao ouvir a história, mas já conhecia a parte em que ela confessara à psiquiatra a sua mentira. Tinha andado preocupada quando teve uma paragem de leite e por isso confortei-a ao vê-la tão triste. Que podia eu fazer? O problema do voluntariado é justamente as nossas limitações. Há áreas onde é preferível não atuar e, não o fazer é incómodo, até doloroso. O Sr. Arnaldo queria que eu explicasse à Diretora o que estava em causa antes de voltar na próxima semana, no dia que lhe fora marcada a visita. Despedi-me prometendo que faria o que estivesse ao meu alcance.

Julgo que a minha influência no caso da Loti se espalhou mais do que imaginava e pediam-me que intermediasse neste caso tão obscuro em que uns julgavam eximir-se às suas responsabilidades, pela via do dinheiro, e outro aproveitar-se dessa verba para fins pessoais.

A Tia Valentina veio a nossa casa almoçar no domingo passado e fez um relato da estada em Israel, dos encontros a que assistira e explicou:

“... o desejo de os palestinianos terem uma pátria e Israel acatar e colaborar não se vai concretizar por enquanto. Há muito terrorismo praticado de ambos os lados. A esperança não estava totalmente perdida - afirmou - como demonstra a reunião que houve na cidade de Gaza Al-Rimal, em Outubro de 2012, no Adam Center para um diálogo sobre civilizações. Continuam os movimentos para a paz encabeçados por jovens israelitas e palestinianos que trabalham em consonância.”

 As coisas pioraram já depois da Tia voltar e já se falava numa terceira Intifada.

Fizemos muitas perguntas e percebemos que ela vinha desiludida. Depois disse que ia ficar sem a Adelina e que seria bom ter de trabalhar mais nos assuntos caseiros para aliviar a pressão que trazia. Achámos todos que ela estava ainda em choque com a viagem e com a próxima saída da sua ajudante de tantos anos. O Diogo, meu genro, disse: “Não a estou a ver carochinha e fada do lar !”.   

No final do almoço, quando as conversas começam a soltar-se, a Luisinha informou: “A nossa filha vai chamar-se Sofia .... Se ela se parecer fisicamente com a avó será uma sorte...”

O Diogo respondeu logo: “Espero que sim, sempre ouvi dizer que era lindíssima, mas gostaria que fosse alegre e confiante em si própria, aliás como o elegante paizinho...

 Levantou-se da cadeira e amaneirou-se como convinha depois da declaração.

A Tia Valentina afirmou que tinha a próxima semana cheia e que não se admirassem se parecesse ainda ausente. Eu lembrei-me que talvez fosse ter o encontro com a tal madre do Convento.

O correio trouxe uma carta de Angola registada. Como o tempo estava tenebroso de chuva e ventania e com a carta de meu pai nas mãos, resolvi ficar o resto da tarde em casa. Sentei-me na borda da cama e abri o envelope. Até aqui só recebera emails!

 

 

Querida filha

Devia há muito ter escrito uma carta para que possas compreender o meu procedimento. Eu próprio ainda me interrogo! A tua mãe foi a única mulher que amei. Passado pouco tempo depois de teres nascido declarou-se a doença que acabou por a levar. Havia na altura uns novos tratamentos para a leucemia que foram experimentados com algum êxito em França. Fiz alguns esforços para a levar a Paris mas ela recusou-se e os teus avós também não estavam esperançados nessa via. Comecei a sentir que tudo escapava ao meu controlo e a tua mãe parecia aceitar com submissão a doença. Como sabes ela era muito crente e a sua vida espiritual parecia o único suporte que desejava. Confesso que vivi desesperado e só a Valentina com a sua coragem e força de caráter me dava ânimo e me fazia companhia. Ela estava aguardando o Daniel e com o casamento em perspetiva sentia-se muito dividida. A tristeza de ver a irmã a enfraquecer, depois a morte da mãe, tua avó, a seguir a reação intempestiva de teu avô. Para cúmulo estava lá uma empregada a cuidar da tua mãe que era uma mulher frustrada e, na altura, com um comportamento malévolo. Não havia clima para a despedir e impor-me. Era eficiente e carinhosa com a tua mãe. Até que um dia em que estive ao pé da Valentina, desfeito pelos acontecimentos, essa mulher supôs que tinha havido um comportamento entre ambos indecoroso. Digo isto agora, porque és adulta e podes entender. Nunca houve nada entre a tua Tia Valentina e a minha pessoa.

Era a única que me dava apoio. Meus pais viviam na altura longe. Tu foste para casa de uma tia minha apenas uma semana porque o ambiente estava intolerável para uma criança. A Adelina foi para lá para não estranhares.

Eu fiquei despedaçado com a morte de tua mãe e com o ambiente naquela casa nos últimos tempos. O Daniel vinha em breve para casar com a Valentina e senti desejo de me evadir, o que mais tarde lastimei.

A firma que herdei de meu pai estava sediada em Angola e havia o escritório em Lisboa com pouco movimento. A tua mãe ainda soube do meu projeto de virmos para Angola logo após tu nasceres, por isso estávamos em casa de teus avós a viver. Nada que te possa dizer explica o meu afastamento. A vida foi tomando conta de mim e parecia-me de início que a tua vida orientada pela tia Valentina seria preferível a vires para aqui. A ela devo ter substituído a tua mãe, criando-te. Sei que não te posso pedir perdão, apenas que me aceites com as minhas grandes falhas. Agora, muitos anos já passados em que perdi a minha família, peço-te apenas benevolência. Achei que devia, embora tardiamente, dar-te a minha explicação. Ainda bem que tens uma família e a grande âncora que é a Valentina, foi ela que me salvou de endoidecer quando tua maravilhosa mãe faltou.    

                                  Um abraço pesaroso de teu pai

 

Quando findei a leitura fiquei com a carta murcha nas mãos. O tempo  tenebroso de chuva e vento fustigava a janela. Quando o Zé chegou estava ainda no mesmo lugar, grudada ao passado. O Zé foi chefiar outro departamento do hospital e penso que vai ficar mais aliviado. Consegui falar com a Diretora da Instituição. Foi fácil porque é socióloga e sabe lidar com estes casos embora tenha pedido a minha colaboração.

A tia Valentina chamou-me e não explicou o assunto. Juro aos meus botões que fiquei completamente perturbada. Seria porque percebeu que alguém mexeu no Livro da capa preta? Ou por a Adelina lhe ter dito que eu quis fazer-lhe perguntas? Ou preparar-me para receber o meu pai? Ou falar dos meus primos...?

Fui lá depois de uma noite em branco, mesmo com tília e um serenal. Afinal foi para me dizer que tinha ido falar com a Madre do Espírito Santo e que gostava que eu soubesse do assunto.

 - Vou-te contar um caso que também te diz respeito e que afastei de ti por razões que vais perceber. Transcrevo o que se passou embora com lacunas porque estava um pouco aérea. A Madre explicou-me que no Convento estava uma pessoa que pediu muito para falar comigo porque estava a sofrer uma crise grave de depressão. Já é idosa e diz querer morrer em paz. Para isso queria expressar o seu pesar por ter há muitos anos provocado uma lamentável tragédia na casa onde fora para acompanhar uma doente terminal. Ela dedicou-se à doente, rezava com ela e via o que se passava à sua volta. Hoje sabe que procedeu muito mal e que, excedendo-se, deu lugar a problemas que se refletiram em toda a família da doente. Depois mencionou caso a caso com pormenores. Quando a visitarem ela vai falar...

A Madre Superiora ainda contou que Laura depois de sair da casa onde levantou estas suspeitas, teve uma vida difícil durante vários anos até que moída por remorsos, complexos de culpa, próprios de uma pessoa que vivera em clausura algum tempo e sem verdadeira fé e bondade, começou com depressões graves e a seu pedido recolheu ao convento que a aceitou antes de ir para o hospital.

 Assim que entrou no convento pediu para me chamarem porque desejava ser perdoada. Só assim poderia confessar-se. Continua muito perturbada porque sabe que foi a causa de muita mágoa e de instabilidade na família. Levou o pai da criança a afastar-se. Conta que muito se enervava porque a Verinha queria sempre espreitar à porta do quarto da mãe ... enfim ocasionou um drama com graves consequências... Laura vive consumida em remorsos, essa é a verdade. Pede para lhe falar e pedir perdão. Ouvimo-la várias vezes até que tomámos a iniciativa de contactar a senhora. Desculpe fazer-lhe este pedido.

Ouvi o relato da Tia Valentina e não conseguia falar. Parecia uma história da Idade Média.

Então a Tia Valentina, pondo o seu braço por cima de meus ombros, disse-me sentando-se a meu lado:

- Esta mulher é a pessoa que eu desejaria nunca mais ver. Teu pai, se não estivesse com a cabeça perdida com a morte de tua mãe e pela calúnia que a Laura levantou, nunca teria tomado a decisão de partir imediatamente para Angola. Eu estava à espera que chegasse Daniel para casarmos. Tu eras uma sobrinha que eu adorava e, com a fatalidade da morte de Sofia, precisava de organizar-me com a Adelina e dar-te estabilidade. Tinha perdido a minha mãe e meu pai ficou apenas acompanhado com a empregada mais antiga, na casa onde vivemos por algum tempo todos juntos. A Adelina foi para a minha casa ajudar a criar-te. O Daniel chegou entretanto e casamos numa breve cerimónia. Foi um tempo difícil.   

Quando a Tia acabou tão extenso relatório sobre aqueles anos onde tudo me foi encoberto desatei a chorar. Acho que nunca chorei tanto. Era o desgosto de minha mãe, de minha avó, de meu pai me ter abandonado. De eu ter abusado da confiança da Tia Valentina lendo o Livro da capa preta e ter-me permitido desconfiar dela sobre certos aspetos que não percebia.

A Tia Valentina deve ter ficado também em estado de choque. Todo o passado aparecia desfocado mas intenso. Ambas resolvemos que não podíamos eximir-nos ao encontro. Como o meu pai chegava em breve resolvemos ir ao convento.

Escusado dizer que tudo que fui fazendo até lá funcionava como passagens aceleradas para a data do encontro.

Preciso escrever o que vi, o que ouvi, as reações de cada uma de nós perante um passado que nos marcara e que não se podia extirpar das nossas vidas.

O convento situa-se numa zona alta da cidade e tem um aconchegado claustro onde há canteiros de flores muito bem tratadas. Dirigimo-nos as duas para uma porta com aldrabas pesadas. Passamos pela capela onde as monjas iam orar, subimos umas escadas seguindo a pessoa que a Madre do Espírito Santo indicou para nos conduzir até ao quarto onde a doente se encontrava.

Estava numa cadeira de repouso com uma manta cinzenta sobre as pernas e ao ouvir-nos entrar virou-se. Numa pequena janela de peitoril de pedra grossa num solitário de vidro estava uma rosa vermelha, já seca. A irmã saiu e sentámo-nos nas cadeiras disponíveis frente àquela criatura que parecia saída de um caixão no dia seguinte ao seu funeral.

Vou apenas escrever aqui o que me lembro porque a extrema emoção não me permite contar com exatidão. A tal Laura agradeceu a nossa vinda que apelidou de grande generosidade. Disse que a sua vida quando saiu do convento por lhe parecer não estar apta para seguir a vida conventual foi difícil e precisava empregar-se. O pai, alcoólico inveterado, já tinha morrido e a mãe nunca lhe perdoou tê-la deixado numa altura em que tanto precisava do seu auxílio. Quando o pai de Valentina e Sofia a contratou ela achou que deveria cumprir com desvelo o seu trabalho. Depois disse:

“A D. Sofia era um encanto de beleza e bondade e contei-lhe a minha vida. Tentei que ninguém a perturbasse, que tivesse medicamentos e refeições a horas e defendi-a de tudo que se passava à volta. Sei que me excedi e aborrecia-me sempre que a Verinha passava a correr à porta do quarto e atirava com qualquer brinquedo para dentro. Preocupava-me com tudo que lhe dissesse respeito. Se as refeições que ia buscar à cozinha não estivessem quentes ou em atraso...preferia que o Sr. Álvaro não a visitasse demasiado porque ficava alterada.... - a D.Valentina desculpe - mas receava qualquer interferência ...”

A Tia Valentina que, como eu, se mantivera calada, esperando que tudo acabasse depressa ainda lhe perguntou: “Não percebo o que podia recear de mim...” ao que ela respondeu que supôs que o marido da sua doente estivesse talvez... a ligar-se demais à cunhada e que a D. Sofia se apercebesse... não sabia que estava noiva do tal senhor que depois chegou de Israel...enfim ...

A tia Valentina estava tensa e ereta na borda da cadeira como se quisesse a todo o momento levantar-se e abandonar o quarto-confessionário. Acho que fui eu que, pondo-lhe uma mão nos joelhos, a compeli a aguardar até ao fim. - “Viemos escutar uma doente terminal” - disse-lhe ao ouvido.  

Laura pediu desculpa entre lágrimas por ter atuado com pensamentos tão maldosos, percebeu e lastimou o mal que veio a proporcionar. Soube, mais tarde das consequências e tapando a cara com as mãos esquálidas desatou a soluçar pedindo perdão...

Quando íamos a sair do quarto ainda disse, olhando para mim: “Como pôde o seu pai partir e deixá-la, menina Vera. Perdoem-me...queria sempre ver a mãezinha...”

Quando nos vimos na rua, depois de uma despedida breve à Madre Superiora, continuámos até casa da Tia Valentina sem palavras.

Em pouco tempo a minha vida tinha regressado atrás e percebi que atirava brinquedos para ver minha mãe...a Laura era um cão de guarda e nada mais.

Levei a Tia Valentina a casa e quando saiu do carro disse: “O meu amigo David chega no mesmo dia que teu pai vem e partiremos logo para a Galiza, vamos participar num Movimento para a paz israelo-palestiniana que se iniciou recentemente”.

Achei que precisava de ir para casa. Nada havia para dizer sobre a desgraçada criatura que parecia estar a consumir-se com memórias de um mau passado. Estava apenas à espera deste encontro para ir para o hospital. A Tia Valentina dera-me esta notícia da sua partida com David de chofre.

Cheguei a casa, felizmente a Guilhermina já tinha saído e o Zé só voltaria tarde. Mergulhei no sofá das “convalescenças”, como sempre é conhecido e esperei que o tempo passasse. As memórias andavam pela casa dos avós e com os olhos fechados percorria toda a casa e via com nitidez alguns móveis que julgava esquecidos. O sol a esconder-se para lá da bow-window da sala refletia os seus raios na estante de livros e punha uns tons rosados que pareciam despedidas.

Queria curar as mágoas e não contagiar os outros com as feridas por fechar. Teria de fazer aquilo que se faz para haver paz, harmonia, respeito pelos outros. Deixar sarar e continuar. O passado é sempre irreversível.

Sei que depois destes acontecimentos vou enfrentar a minha vida de outra forma  saberei acolher o meu pai. Ninguém é herói.

 

(M.G., revisão terminada a 10 de novembro de 2013) 

 

 
 

[1] Elementos colhidos no artigo de Narciso Machado no Jornal Público de 12 de Outubro de 2012: “ O cinquentenário do Concílio Vaticano II “

[2] Refere-se a umas linhas de um poema de Luís de Camões: “se lá no assento etéreo onde subiste/ memória desta vida se consente...”

 

 

 

© Maria Estela Guedes
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