REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 42-43 | dezº 2013-janº 2014

 
 

 

 

LUÍS COSTA

Vozes periféricas

 

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
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1

É MEIA NOITE. encontro-me no terraço deste hotel. estou sozinho. ou antes rodeado de anjos negros. bebo e brindo com eles. bebo um vinho forte. escuro como o sangue de um touro quando morre sobre a espada do toureiro. bebo. furiosamente, bebo. sinto um desejo brutal de beber. sinto como o álcool me percorre o sangue. tremo. digo: este é o começo da grande sabedoria.

estou salvo. estou salvo! aprendo a odiar e a amar como só os deuses sabem. não, não me venham com histórias de morais falaciosas. sou livre. livre. livre como um pássaro que, cego, se desfaz contra a noite.

esta é a grande sabedoria. a grande sabedoria. a cegueira luminosa. fecho os olhos. estou cego. mas vejo como nunca. sim, cego para os homens. encontro-me à altura dos animais. puro. deito-me no chão. rebolo-me. esfrego-me. rasgo as roupas. estou possesso. possesso. mas vejo. vejo para lá dos olhos. vejo com todos os sentidos. é o amor. o amor subindo-me nas veias. fazendo-me tremer as entranhas. rebentando-me os poros.

ah..! esta cegueira. é uma cegueira iluminada. amo como só os grandes assassinos sabem amar.

eu sei, sei que um dia a morte chegará. mas sinto - me forte para a enfrentar. para a olhar com a altivez dos sábios. pois sei que amei com quem sabe odiar, até às vísceras. sei que senti a vida em todas as suas colorações. os excessos de quem sabe que a vida é só um som. uma sonoridade que logo se extinguirá. tal como estas palavras que têm a duração de um momento. feitas para nada. não servidoras. por isso livres. livres e violentas como este álcool barbárico que me atinge os ventrículos.

ah! sinto-me iluminado. sou livre. sou um assassino. o assassino de deus. sim, assassinei deus a partir do momento em que aprendi a pensar. sou impuro. um animal sujo e impuro aos olhos desse deus. desci ao inferno. ah! desci às profundezas infernais. mas agora que ele está morto, regressei e recuperei a minha pureza. assim atingi a grande sabedoria. a ciência maior: a essência da beleza, o AMOR.

e agora danço com os anjos e bebo. ( estou puramente louco ). mais leve do que o vento danço e bebo  – bebo até que um novo deus se purifique, leve e dançante, no meu coração.

 

2

 

AINDA não era manhã. acordei. sei que acordei. tinha nas mãos um martelo e

pregos. pregos húmidos. era sangue. o sangue que escorria dos sonhos. eu via os

meus sonhos. era tudo tão real. tão real. lá dentro, estavam as ânforas de um

encarnado nocturno com desenhos estranhos. dentro delas ouviam-se as vozes,

as vozes das mães uivantes com os seus filhos mirrados ao colo.

 

as mães. os filhos. as sombras.

 

os homens tinham partido à procura da esperança: certo dia, olharam pelas janelas

( sem vidros ) e avistaram a água e seguiram a água. o poderoso curso da água. a luz.

a água. não se despediram das mulheres. simplesmente murmuraram:

“ um dia havemos de voltar.”

 

e abriram as portas e fecharam-nas com violência e seguiram o poderoso

curso da água. partiram sem nada. sem nada. só um martelo e alguns pregos nas

mãos. sem nada. nús. seguiram o curso da água. a luz da água.

 

“ um dia hão-de voltar, um dia hão-de voltar “ dizem agora as mães com os seus filhos

mirrados ao colo, acocoradas dentro das ânforas.

 

ouço-as. vejo-as nas suas ânforas nocturnas. vejo como sofrem. cheiro a sua dor

menstrual. olho-as e sofro. com um martelo e alguns pregos nas mãos, olho-os e sofro.

 

e o sangue escorre. escorre dos sonhos, alastra-se pelas paredes. o sangue. o sangue

dos sonhos. e eu olho as mulheres. as mulheres. olho-as. e sofro. sofro e reviro os olhos.

e ergo a cabeça. e enraivecido, cravo, cravo pregos nas paredes:

 

procuro a luz do colo das mães, e a noite dos homens que seguiram o curso da água.

3

 

ESTOU mais perto dos mortos que dos vivos.

o meu centro são as margens. as vastas margens.

entre os meus companheiros encontram-se:

enforcados, prostitutas, assassinos, chulos, homens de condição baixa.

venho de facto de uma raça baixa. uma raça canina. feroz.

uma raça de olhos azuis e cabelos espetados.

os meus antepassados traziam sempre consigo

uma navalha de ponta e mola. uma navalha bem amolada.

consta - se, no entanto, que entre esses antepassados

havia um homem nobre, muito belo,

um sábio ou filósofo que morreu louco. sim, louco.

há deveras na minha raça uma propensão para a loucura.

por vezes, eu mesmo enlouqueço. enlouqueço.

nessas alturas, vejo-me agarrado ao meu tio que morreu num hospício.

o meu tio e eu. agarrados um ao outro. duas cordas possantes.

os olhos azuis frente a frente... e tudo é azul. tudo é azul.

o meu tio e eu dentro de um espelho, de um espelho negro. abraçados.

o meu tio e eu, somos o mundo. o mundo. o mundo.

e choro. e o meu choro é um sismo, um rio, uma avalanche

um abalo em todos os espelhos. e tudo estremece:

os móveis . as paredes. os homens. os animais. as vísceras.

sim, estou de facto mais perto dos mortos que dos vivos.

sou talvez o último exemplar da minha raça.

uma raça suja, cruel, baixa, sem dúvida , mas independente e corajosa.

de mim certamente pouco restará, sim, pouco restará,

a não ser talvez um punhado de poemas, um punhado de poemas

escritos numa casa em ruína; uma casa muda. uma ruína.

 

4

 

UM DIA fechei-me num quarto. determinadamente fechei-me.

precisava estar só. só.

era um quarto enorme, um quarto sem janelas, escuro. enorme.

não havia móveis. nem jarras, nem flores. reinava somente a escuridão.

à minha volta o medo, a escuridão, o medo.

o abandono de quem se procura a si mesmo,

de quem procura os restos de uma biografia,

algures perdida. a identidade?

fechei-me . durante dez dias fechei-me naquele quarto.

e ali fiquei, sentado no chão, sem comer, nem dormir, nem beber.

cresceram-me as unhas, a barba e os cabelos.

comecei a cheirar mal. deitava bichos pela boca e escarrava muito.

as moscas varejeiras pairavam à minha volta.

eu era um deserto. um animal abominável, ferido, num deserto.

descobri que não havia soluções, nem respostas. só o

medo e a escuridão. o medo e a escuridão.

mas não queria morrer. só precisava de solidão.

eu era o grande doente. o grande doente solitário à procura da luz.

não da luz do sol, mas da luz que dorme dentro das sombras.

 

5

 

OLHAVAM os animais esfolados, estremecentes, nas mãos

ensanguentadas das avós ( aquelas mesmas mãos suaves

que nas tardes frias da  beira alta os acarinhavam ).

 

a luz acendia o sangue. as varejeiras brillhavam, alucinadas,

ao redor.

 

sentiam  uma tremenda repulsa e compaixão. um tremor.

comungavam daquela mortandade amorosa. 

 

6

 

TRAZEM nas mãos as flores do exílio. o seu cântico

é sujo e canino:  cheira a fezes e urina.

 

delirantes, inscrevem no próprio corpo o texto dos

açougues e das zonas periféricas.

 

iluminam-se ao cimo da transgressão.

 

7

 

METEU o dedo nas vísceras

do animal deslumbrante

sentiu a volúpia do calor húmido

subindo-lhe na alma

( como quem penetra a astúcia dos espelhos )

era uma transcendência

um acto de comunhão

com a morte viva naquele corpo ainda quente.

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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