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Um
sentimento profundo de abandono - a solidão como impropério de pilares
ainda não reificados pela intenção civilizadora - terá levado o homem a
criar os Deuses, face aos quais o desenvolvimento de uma dependência
arquetípica urgiria como inevitável, a mesma que coisifica o h/Homem e
que, simultaneamente, o condena à possibilidade do eterno retorno ao
mesmo Princípio que o iniciou. O eterno retorno é o resultado da
angústia de separação face a uma estrutura arquetípica rememorada como
paradisíaca. Também pode ser a necessidade de renegociar com os
fantasmas propiciadores de uma identidade ultrajada, os demónios de uma
infância em que os pilares arquetípicos, se bem que existentes, se
tornaram laxos. E se esses pilares são frágeis ou laxos, ora por défice
de deuses ou amor, ora por excesso do mesmo, a angústia de castração
surge muitas vezes no formato de uma agressividade, porque "o ataque é a
melhor defesa", porque urge gritar o domínio de um Ego deficientemente
integrado.
O
comportamento do h/Homem é, a cada momento, o resultado determinístico
da relação precoce com os seus deuses, e da relação dialéctica entre a
última e o conjunto de outros "a prioris". E o homem do Espírito, o
filósofo, é aquele que, de forma genuína, empreende a viagem mais
radical no sentido de firmar os pilares arquetípicos, enganadoramente
não tanto os do "Eu" pessoal mas mais os da Civilização, se bem que
mesmo estes acabam mesmo por ser os do "Eu", a mesma subjectividade que
preludiará a preferência por determinado paradigma e a escolha de um
modelo filosófico em detrimento de outro.
Claro que o homem do Espírito se arrisca a manter-se como tal
eternamente, pois que o adiamento indefinido da negociação com os
fantasmas privados no formato de uma racionalização e projecção para
matérias absolutistas e espirituais promete não ter resolução à vista. O
homem bem seguro de si mesmo não se torna filósofo. Não pretende ser
espiritual. Não tem sequer o sentimento de culpa de origem arquetípica
necessário à disciplinação do pensamento e ao desiderato ético que
subsume o desígnio do Espírito. A um nível radical urge o risco do
Super-Homem i/amoral.
O
próprio acto ético, tal como o comportamento perfeccionista, é
alimentado pelo fantasma castrador, aquele deus fantasmático que, ao
invés de permitir a âncora securizante, alimenta o "Big Brother"
interno. Fica o ser destinado a agradar ao seu próprio Pater
fantasmático, processo não resolúvel sem a viagem terapêutica aos
infernos, residência dos demónios recalcados. A "obra ao negro"
saturnina inicia o caminho de progressão, aquele que não é sentido como
necessário ao que se possui a si mesmo e a um atraente ancoradouro do
Princípio.
O
Arché é assim causa de saúde e patologia, harmonia e desarmonia, é o
início e o fim, o que inicia e o que reinicia, o Pai fantasmático e o
Ego tornado Pai. O presente do ser, um pouco como o Eterno Presente do
Espírito, só é possível depois do Arché ter sido purificado. Sem a
eliminação das impurezas castradoras e da poluição da relatividade
carnal íntima à temporalidade entrópica é impossível atingir a Pedra
filosofal, a sensação de completude que promete a Imortalidade.
O
tempo moderno pressente-se livre de Deus e da castração religiosa. Mas
ilude-se ao admitir a liberdade e a evolução. Uma nova religião tomou as
rédeas do controlo das consciências: a ciência, o liberalismo económico.
O homem tem uma fixação pela zona de conforto, recalcitra em
procrastinar o momento do encontro com o Si. Uma
Histórico-Sócio-Psicanálise é requerida e o desiderato de uma Ética
Espiritual afecta à presunção da Nova Era arrisca fazer regressar o
Homem ao Arquétipo religioso, ao domínio de um novo Dogma. Nada de
espantar, atendendo a que o eterno retorno cíclico há muito condenou o
Homem a repetir sempre os mesmos erros...
A
Espiritualidade só pode sê-lo se conluiada com a eticidade, mas a
ausência de um critério falsificabilista que permita ao "não sábio"
fazer a distinção entre o verosimilhante e o não verosimilhante
exponencia o risco de uma nova dogmatização mefistofélica.
A
própria modernidade científica possui já esse pendor fáustico, promete
dar ao Homem a capacidade de se autodestruir, nem que seja pela promessa
"médica" da vida eterna, ou porque é a própria Inteligência artificial
que promete vir a ser o novo Deus. A tecnologização produz a indústria
dos mortos-vivos. A máquina e o homem são um só corpo, como transparece
nos filmes de Cronenberg. E ainda há-de vir o tempo em que o Homem
pensará que terá sido o computador a criá-lo a ele e não o contrário.
É
que o tempo modifica a própria História, e são os Valores do presente
que constroem e demonizam os Valores do passado.
A
própria noção moderna de espírito não corresponde verdadeiramente à
noção de Espírito da sabedoria perene. Pois a linearidade
Judaico-Cristã-Aristotélica igualiza espírito e alma e contribui para
individualizar aquilo que só fazia sentido na perspectiva da Totalidade
Ética. O liberalismo vem iniciar decisivamente a temporalidade, matando
o Arquétipo, matando Deus, com a vantagem da morte do mau dogma, com a
desvantagem da morte do bom dogma, com a vantagem da destituição do Deus
exotérico e religioso, com a desvantagem da destituição de um certo
panteísmo de continuidades, e lá se trocou definitivamente a noção de
Uno pela noção de Separatividade, afecta à cientificidade das
disciplinas e descontinuidades e ao espírito da individualidade
político-económica.
O
próprio espírito autorístico e a obsessão pelo «Eu» é uma criação do
Ocidente e da modernidade. As Luzes vão reificar o racionalismo com
vista ao paradigma de um Ouro liberal. Na Ciência, é a Razão empirista
dos anglo-saxónicos e o cartesianismo corpo-mente. Na Educação, a
massificação dos conteúdos cria a Pedagogia e reitera o racionalismo
humanista, e a razão Espiritual que justifica o Ensino magistrocêntrico
perde-se e até acaba por ser demonizada. A obsessão pelo «Eu» na
Educação moderna levou inclusive à perda da noção do verdadeiro objecto
da Universidade, quando, na verdade, esta não é sequer Educação, nem lhe
compete visar a criação de competências ou profissões.
O
mercado e a cultura da celeridade industrial e plastificada parecem
querer dar o toque final na dessacralização dos tempos modernos. Mas
desenganem-se os que pensam que esta cultura dessacralizada é isenta de
deuses. O Big Brother tecno-científico e industrial aí está repleto de
força, a ditadura do mercado dita a degeneração final do que vale
per si; as coisas já não valem
o que valem, elas valem o valor que lhes é imputado, e esse valor é
decidido pelo mercado, e ficam assim o clássico e o sagrado destituídos
da sua qualidade, porque o mercado os acha "antiquados", coisas do
passado, quando o eterno não é passado, presente ou futuro, mas a
modernidade diz também que o eterno não existe, é a ilusão do homem do
Espírito, o mesmo que teve necessidade de criar o Eterno por temer a sua
própria destruição. Esquece o homem moderno que também ele teme a sua
destruição. Matou os deuses, mas inventou outros instrumentos
pseudo-arquetípicos, mas que, não sendo sagrados, não param o tempo, não
securizam, não pacificam.
Às
tantas, mais vale o arquétipo controlador do tipo ético, do que aquele
que faz a violência. Mas é que o Homem está condenado a transformar
qualquer Arquétipo inicialmente bom numa estrutura de conforto alienante
e castrador. Demanda o tempo entrópico que o homem volte sempre a fazer
asneira. A entropia é a fisiologia do eterno retorno. Para que,
transpondo a condição humana, o próprio Arché demande a evolução, a
mesma que poderíamos querer gorar, mas que estamos destinados a não o
conseguir desejar. E como estamos condenados a tornar-nos deuses mesmo
que o não queiramos, poderíamos sempre tentar a vanidade da vontade, a
desistência do caminho, mas é que a nossa condenação itera a própria
desistência da desistência, senão a ilusão da liberdade...
A
eterna repetição é a regra de um Ocidente que opta por manter a ilusão
de que a actualidade é evoluída face ao passado, quando é o próprio
mecanismo temporal que obriga ao desgaste da estrutura do Princípio
paradisíaco. É mais uma ilusão, a concorrer com a ilusão etnocêntrica -
que implica a noção da superioridade da cultura ocidental, assim como a
ideia de que a Europa é o velho mundo, quando, na verdade, a cultura
oriental é que é realmente o berço da Sabedoria - e a ilusão especista -
que depreende que o ser humano é o único ser dono de consciência,
sofrimento, e, como tal, de direitos ético-morais.
Há
ainda a ilusão dos Valores estanques, aquela que permite avaliar o
passado à luz dos valores actuais, sem que um esforço de adaptação
hermenêutica tenha sido requerido. A mesma que permite considerar o
passado como "atrasado" face ao presente, como "mau" relativamente ao
"bem" do presente (como se o "bem" e o "mal" não tivessem sido sempre
meros julgamentos de valores...), quando há somente uma incapacidade de
perceber que não há verdade alguma senão a nossa verdade, o nosso
contexto, e que a tentativa de nos colocarmos num outro contexto reitera
a saída de nós mesmos, o exercício de uma racionalidade meta-egóica, e a
necessária elevação na escada/escala da Consciência, o propósito da
libertação da nossa condição, a tentativa de libertação de uma mente a
partir da mesma mente de que nos pretendemos libertar. Oxalá a mente
permita o funcionamento quântico, pois, de outra maneira, a libertação
não terá outra resolução senão na morte da carne, na extinção do Eu, no
encontro do Si-mesmo com o Nulo que somos incapazes de trazer à
cognoscência.
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