REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 42-43 | dezº 2013-janº 2014

 
 

 

 

CUNHA DE LEIRADELLA

O iPhone de
Tomás de Torquemada

 

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
Página Principal  
Índice de Autores  
Série Anterior  
SÍTIOS ALIADOS  
Revista InComunidade (Porto)  
Apenas Livros Editora  
Arte - Livros Editora  
Agulha - Revista de Cultura  
Domador de Sonhos  
   
   

 

 
 
 
 

         Não gosto da minha casa. Não queria que ela fosse uma casa. Queria que ela fosse uma prisão. Um calabouço sem janelas e sem portas, e que eu nunca pudesse sair dele. Mas, infelizmente, a minha casa tem janelas e tem portas, e uma delas dá para a rua e tem uma chave que a abre e que eu carrego no meu chaveiro. E, mesmo que não queira, todas as noites a uso. Todas as noites as minhas mãos pegam nela, metem-na na fechadura, abrem a porta e eu saio da minha casa.

         Odeio as minhas mãos. Eu adoro música, sempre quis ser músico, e elas negam-se a pegar em qualquer instrumento e a tocá-lo. As minhas mãos fazem o que querem e sempre me obrigam a fazer o que não quero. Todas as noites abrem a porta da minha casa e me obrigam a sair. Eu não quero sair, não quero ir a lugar nenhum, não tenho nada que fazer em nenhum lugar, mas saio. Se não sair, a porta da minha casa fica aberta e eu não gosto de portas abertas. Principalmente, portas por onde nunca ninguém entra a não ser eu.

         As minhas saídas nunca mudam. São sempre as mesmas. Vou sempre pelas mesmas ruas, dobro sempre nas mesmas esquinas, dou sempre os mesmos passos, repito sempre os mesmos gestos, cruzo sempre com as mesmas pessoas, mas ninguém me conhece nem eu conheço ninguém. As pessoas não param para conversar comigo nem eu paro para conversar com elas. As minhas mãos não deixam. Nunca cumprimentam ninguém. As pessoas passam por mim e eu passo por elas, mas é como se nunca nos víssemos nem cruzássemos. Às vezes, tenho a impressão que alguém me olha, mas, se olha, não me . Eu passo e elas também passam. Eu sempre passo e elas sempre passam também. E, isso eu sei, embora a distância entre nós seja infinita, a cada noite aumenta mais. As minhas mãos não deixam que ela diminua. Nunca cumprimentam ninguém nem deixam que alguém me cumprimente.

         dobrei três esquinas, a próxima fica a menos de cem metros, não quero ir mais longe, e quero voltar. Estou no meio do passeio, paro, mas não volto. Não posso. De repente, as minhas mãos enterram as unhas na carne das minhas coxas e obrigam-me a seguir. As minhas mãos não gostam que eu pare e volte. Tento tirá-las dos bolsos das calças, mas elas não saem e as unhas enterram-se cada vez mais na carne das minhas coxas. Dói, e sou forçado a andar. E ando. Obrigado, mas ando. Mas me pergunto: por que é que as minhas mãos fazem isto sempre que eu paro, e sempre de repente, e sempre entre duas esquinas? Será porque elas não querem que eu morra, parado entre duas esquinas, ou será porque elas querem que eu ande para poderem ver o que está além da outra esquina? Mas será que elas não entendem que depois da outra esquina existe outra, e depois da outra mais outra, e outra e outra, sempre outras? Por mais que pense, não consigo entender o que as minhas mãos pensam. E continuo andando.

         Baixo a cabeça e olho os bolsos das calças. As minhas mãos, agora, não enterram as unhas na carne das minhas coxas. Estão imóveis, talvez descansando, e não sabem que eu as vigio. Eu estou andando como elas querem que eu ande, e elas confiam no poder que têm sobre mim. Mas eu também as conheço e sei que o momento certo de as tirar dos bolsos e de as obrigar a obedecer-me há de chegar.

         Levanto a cabeça e olho em frente, e continuo andando como se andar, mesmo obrigado pelas minhas mãos, fosse um prazer. É necessário que elas continuem pensando que eu não sei o que elas pensam. Se conseguir iludi-las, elas continuarão confiantes e eu poderei dominá-las. Não sei quanto minutos passaram, não posso olhar o relógio, mas não me importo. O importante é que as minhas mãos continuem imóveis e eu possa tirá-las dos bolsos e olhá-las, e elas saberem que eu as vejo e sei que poderei dominá-las.

         O dedo indicador da mão direita mexeu-se. É agora. Deixo-o mexer-se mais um pouco e, de repente, num gesto rápido, tiro-as ambas as mãos dos bolsos. Apanhadas de surpresa, as minhas mãos não têm tempo de reagir e não conseguem travar a rapidez do meu gesto. Deixo-as caídas ao longo do corpo, paro e sorrio, satisfeito, gozando o prazer da minha vitória. Com elas, agora, sujeitas à minha vontade, começo a andar. Mas o meu andar é diferente. Agora eu ando porque quero, não por que as minhas mãos querem que eu ande.

         Calmo, tranquilo, como se as minhas mãos não existissem, penso sem pressa e resolvo o que fazer. Agora, o comando é meu e as minhas mãos farão o que eu quiser. Paro, tiro o cachimbo do bolso, encho-o de fumo, devagar, serenamente, pego na caixa de fósforos, acendo um e olho a minha mão direita. Sem medo, como se ela fosse apenas um lápis ou um revólver. Ela ainda treme, talvez furiosa por não ter conseguido escapar ao meu controle, mas está aqui bem na minha frente, totalmente dominada, e eu posso olhá-la e -la, segurando o fósforo aceso. Sei que é a minha mão direita, porque é ela que sempre segura os fósforos acesos quando acendo o meu cachimbo. Mas, mesmo sabendo que é a minha mão direita, e vendo-a totalmente dominada, fico pensando: será que as minhas mãos, sempre me obrigando a andar pelas ruas, de esquina em esquina, sem eu querer, também terão mãos que as obriguem a andar como eu ando, carregando os seus próprios fósforos e acendendo os seus próprios cachimbos? Não consigo encontrar uma resposta que me satisfaça, mas não me importo. O importante, agora, é que as minhas mãos me obedecem.

         Odeio as minhas mãos. Tenho certeza que, se não as vigiasse constantemente, elas me matariam. Muitas vezes, sem eu querer, nem mandar, elas começam se agitando. Imediatamente, guardo-as nos bolsos, como guardo o cachimbo, a bolsa do fumo, a caixa dos fósforos ou a carteira. Mas elas ficam furiosas e, em represália, agitam-se ainda mais. Por mais esforços que eu faça, não consigo imobilizá-las. Elas param quando querem. De repente, sem o menor aviso, mesmo que eu pense que ainda vão continuar, elas param. As minhas mãos deixam de se agitar quando acham que devem. E, às vezes, ainda cravam as unhas na carne das minhas coxas, como fizeram há pouco. Por isso é que eu tenho certeza que se não as vigiasse constantemente, elas me matariam.

         Eu odeio as minhas mãos, mas elas também me odeiam. Eu sei que elas me odeiam. Quando não estão guardadas nos bolsos das calças, as minhas mãos andam sempre na minha frente. Sempre. Mas eu sei que, mesmo andando sempre na minha frente, mesmo vendo coisas que eu não vejo, mesmo escutando conversas que eu não escuto, as minhas mãos não conseguem, ainda, separar-se de mim. Por mais que se afastem, por mais longe que possam ir, por mais independentes que sejam, são sempre obrigadas a voltar, e é por isso que me odeiam.

         Eu nunca adormeço antes das minhas mãos adormecerem. Nunca. Depois que descobri o que elas são capazes de fazer, se não as vigiasse constantemente e, alguma vez, adormecesse antes delas, tenho certeza que nunca mais acordaria. E é essa, eu sei, a única razão que ainda me mantém vivo, embora passe noite e noites sem dormir, esperando que elas adormeçam. Mas há muitas noites em que elas não adormecem, olhando para mim como eu olho para elas. Ambos acordados.

         Mas elas também se vingam dessa minha vigilância. Todas as noites abrem a porta da minha casa e me obrigam a sair. E, rua após rua, esquina após esquina, pelo prazer de se vingarem da minha vigilância, as minhas mãos me violentam. Além de cravarem as unhas na carne das minhas coxas, ainda me forçam a conhecer a presença das coisas que me cercam. É por meio das minhas mãos que eu conheço tudo que me cerca: as paredes dos edifícios, os automóveis estacionados junto das calçadas, as cascas rugosas das árvores, os bancos onde me sento ou até o vidro mal lavado dos copos onde tomo os meus conhaques. A única coisa que as minhas mãos não me obrigam a conhecer são as pessoas com quem cruzamos nas ruas ou nas esquinas. As minhas mãos não cumprimentam ninguém. De resto, tudo eu conheço através delas. E eu sei por quê. Elas fazem isso porque sabem que, cercado de volumes, o meu mundo interior fica menor.

         Quando volto e entro em casa, eu sei que estou na minha casa porque são elas que pegam a chave, a metem na fechadura e abrem a porta. Por isso as odeio. Se não fossem as minhas mãos, tenho certeza, o meu mundo seria outro. Bem mais espaçoso e bem mais condizente com o que eu sou. Nele não existiriam volumes. Paredes, cascas de árvores, automóveis, cachimbos, copos, nada a não ser eu. Nem sequer a casa de onde me obrigam a sair todas as noites.

         Mas eu também me vingo. Há muito aprendi a vingar-me. Mesmo sem vontade de fumar, tiro o cachimbo do bolso, encho-o de fumo e acendo um fósforo. Como agora. O cachimbo está na minha boca, o fósforo está aceso, mas eu sei que não vou fumar. Tudo que fiz até agora, tirar o cachimbo do bolso, enchê-lo de fumo, metê-lo na boca e acender o fósforo, tudo isso não passou de um pretexto para me vingar. Deixar o fósforo arder até ao fim e queimar os dedos das minhas mãos. Castigá-las. Mas elas não sabem disso. Felizmente, as minhas mãos agem sempre como se tudo tivesse, obrigatoriamente, uma sequência lógica. Para elas, tirar o cachimbo do bolso, enchê-lo de fumo, metê-lo na boca e acender um fósforo, pode ter um significado lógico: eu querer fumar. Mas, para mim, não. Eu posso, perfeitamente, tirar o cachimbo do bolso, enchê-lo de fumo, metê-lo na boca, acender um fósforo e não fumar.

         Na realidade, a única vantagem que eu tenho sobre as minhas mãos é nenhum dos meus atos ser, obrigatoriamente, um ato lógico. Não fosse isso, muito estaria morto.

         Agora, como sempre, foi a minha mão direita que acendeu o fósforo. E eu tenho certeza que ela está pensando que este fósforo que está ardendo e quase queima os dedos dela, foi aceso para acender o meu cachimbo. Nenhuma das minhas mãos, nem a esquerda, que segurou a caixa, nem a direita, que acendeu o fósforo, sabe que não vou fumar. Da forma como procederam, com a tranquilidade com que agiram, para as minhas mãos, se o que elas fizeram foi lógico, eu também posso agir com lógica. Se tirei o cachimbo do bolso, se o enchi de fumo, se o meti na boca e se acendi um fósforo, eu posso querer fumar. Por isso elas não estão preocupadas e fazem o que eu quero com a maior boa vontade. Mas eu não vou fumar. Vou castigá-las. Eu sei que, quando a chama do fósforo começar queimando os dedos das minhas mãos, eu também vou sentir dor. Mas elas vão sentir a dor primeiro do que eu, e esse será o seu castigo.

         Estou com raiva. Há instantes, logo que comecei andando, as minhas mãos, tenho certeza, para se vingarem da minha vitória sobre elas, me agrediram. Mais uma vez me violentaram. De repente, sem o menor aviso, sem eu ter tempo sequer de as guardar nos bolsos, elas me obrigaram a conhecer mais uma coisa. Outro volume. Aquele automóvel que está estacionado ali atrás. Especificamente aquele. Eu posso imaginar, perfeitamente, um automóvel. Sei o que é um automóvel porque tenho um e o dirijo, e posso imaginar como serão os outros automóveis, mesmo que sejam diferentes do meu. Mas aquele, especificamente aquele, XQ - 51 - 83, existiu para mim quando tomei conhecimento da sua presença. Quando as minhas mãos o roçaram com a polpa dos seus dedos. Se as minhas mãos não o tivessem tocado, não lhe tivessem tateado a placa, ele, para mim, não existiria nem seria mais um volume cuja presença me sufoca.

         Eu sei que as coisas existem. Sempre existiram. Existiram antes de mim, existem comigo e continuarão existindo depois de mim. Mas quando as minhas mãos as tocam é que eu as sinto e a sua presença me sufoca. Enquanto eu, simplesmente, as imagino, são elas que existem em função de mim, não eu em função delas. Se eu não imaginasse nada, nenhuma coisa, nenhum volume existiria. E se as minhas mãos não tocassem em nada, nada me sufocaria. Mas, no momento em que sou obrigado a ter consciência das coisas que as minhas mãos me obrigam a conhecer, sou também obrigado a reconhecer que eu existo em função delas. E é, justamente, isso que me angustia, que me sufoca. Eu existo porque o volume que me cerca também existe.

         Por isso é que as minhas mãos, porque me odeiam e conhecem a minha angústia, me fizeram conhecer a presença daquela automóvel. Até que elas o tocassem e eu sentisse o seu volume, ele, para mim, não existia. Até àquele justo momento eu existia. E é por essa razão que as minhas mãos estão sendo castigadas. Eu não existo em função de mim. Eu existo em função do volume que me cerca. O fósforo está queimando os meus dedos, mas eu tenho prazer em sentir a dor. As minhas mãos a sentiram primeiro do que eu e sofreram antes de mim.

 

CUNHA DE LEIRADELLA     .     leiradella@sapo.pt

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL