REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 41 | outubro-novembro | 2013

 
 

 

 

 

RUI TINOCO

Dramaturgia

 

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
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a solidão escreveu o verso


para não se sentir sozinha.


o tempo sobre os corpos é


precisamente isso: mudança.


mas tenho de vos chamar a


atenção para a contradição


dos termos: se a solidão


inventou companhia, deixou


de se poder chamar solidão.


(as palavras nunca chegam


a parar). então escrevo


uma nova palavra, solidão,


achando ser esta a melhor


forma de terminar o texto.

 
 

o que posso oferecer? início


de frases eu posso oferecer. dos


ofícios dos homens pouco entendo:


ambições, vontades, ódios,


gestos que se somam contra o próprio


peito. o homem é um animal


patético: devora-se a si mesmo


ao conquistar o mundo que


afinal não se moveu um passo.


vai a deitar-se, arrependido


e, na manhã seguinte, fina-se


antes do almoço. por isso


só te ofereço início de frases.


queres ajudar-me a completá-las?

 
 

a personagem ergueu-se do texto


exigindo gestos próprios, emoções,


gostos, no fundo um coração.


ninguém acreditaria no sucedido


não fosse o autor: garantiu,


a pés juntos, que a personagem


surgiu-lhe à mesa, passou-lhe


os dedos pelos cabelos, beijou-o.


a cena foi tão completamente inesperada


que nem teve reação.


quando voltou a si já estava novamente


sozinho no café, rodeado de burburinho


indiferença: não teve outro remédio


que regressar ao branco, grafar


o sucedido.

 
 

quem engana o autor? proclama


«era uma vez» como se criasse


o mundo. julga-se deus


omnipotente, quando acabou


de viver um amor, sobreviver-lhe


a custo. é essa história que,


precisamente, nos vem contar


cheio de espelhos, máscaras,


improváveis figuras de estilo.


eu e tu, leitor, bem sabemos


o jogo que quer vencer: ser


personagem de si próprio, recontar-se,


ser diferente por dentro. é uma


ambição desmesurada. decidimos,


por isso dedicar-lhe este texto


em que ele, precisamente, abre


o caderno, enfrenta o branco,


inicia uma longa caminhada.

 
 

o autor, perseguido


pela sua obra mais famosa,


deixou de saber estar só


em frente ao branco. rostos


acusadores erguem dedos


sombras inexplicáveis.


a biblioteca é o monstro


Adamastor do nosso autor.


não uma biblioteca de frases


amigas, mas uma infindável


fonte de perseguições que


torce o próprio dizer


à sua expressão mais


ridícula.  eis aqui


o espelho do paradoxo:


o autor escreve sobre


o seu próprio rosto, usando


letras como rugas desconformes.


um artifício literário, é certo,


mas um artifício. e… ah,


não sei se já disse: não


sabe ficar só em frente


ao branco.

 

 

© Maria Estela Guedes
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