(...)
"Cibaljet
repôs o livro na prateleira de cima duma das altas estantes em madeira
encerada de cerejeira. Com um sorriso ameno disse para Barre, enquanto
vertia nos copos uma generosa porção do líquido contido na garrafa de
cristal facetado: - Na adolescência fui muito suscitado pelo catorze.
Era um número que, não sei porquê, me despertava curiosos pensamentos. O
sete duas vezes, o sete para um par de enamorados ou de companheiros, ou
de inimigos...
Quando me tornei adulto, foi o quarenta e seis...
É um número de grande poder, o quarenta e seis - disse Barre suavemente.
Tem razão - redarguiu Cibaljet com um sorriso - É o sete multiplicado
seis vezes e, depois, adicionado do quatro. Ou seja: da terra, da água,
do ar e do fogo. "
***
"Senti isso uma vez perto de Claremorris, no País de Gales, quando se
começa já a descer até aos prados de Ballinrobe - disse Cibaljet entre
duas puxadelas do havano - A sensação de que estamos longe, muito
longe...como se fôssemos outros e nada nos prendêsse ao que fômos.
Entendo! - redarguiu Barre com uma expressão sonhadora - Tive a mesma
experiência certa noite junto ao Bósforo, quando ainda não me decidira a
deixar a velha Europa...
Você acha que a sensação é muito habitual, pelo menos em viajantes
experimentados e decididos, com uma boa qualidade de conhecimento de
estradas e lugares? - tornou Cibaljet passando-lhe o frasco viajeiro de
aço recoberto de couro onde a bela aguardente das Cevènnes esperara a
sua vez.
Ora...
- disse Barre na sua voz de baixo a que um leve tom de barítono
emprestava um timbrezinho peculiar - Tenha em conta que a maior parte
dos mortais com ou sem qualidades próprias de caminheiros se limitam, a
não ser que haja milagre, a deslocar-se para aqui ou para acolá como se
um vento os levasse..."
***
“Já não me recordo quem teria dito a frase “Foge de alguns, foge de um,
foge de todos” - disse Cibaljet passando a Barre a tábua onde um belo
naco de Brie exalava o seu perfume sedutor para gastrónomos encartados –
E quem teria dito, diabos levem a memória, “O companheiro Deus se quiser
existir que exista” ? Puxo pela cabeça e por mais que tente não me
consigo recordar...
Sim,
esses lapsos são apoquentadores em extremo – redarguiu Barre com um fino
sorriso, untando a fatia de pão com deleite e vasando nos copos um
Chandelle que estava mesmo a pedi-las – No meu caso, há anos que tento
encontrar pistas do poeta que escreveu “Cuco, és tu uma presença errante
ou apenas uma voz indagadora?”. Tenho procurado em antologias, em
selectas liceais, em alfarrábios...e nada! E quem teria dito “É uma
cidade soturna e desencorajante. Certas pessoas deviam entrar
directamente do hall para o páteo e nunca lhes deveria ser franqueada a
sala” ?
Por
mim sou um homem confiante – tornou Cibaljet entre duas mastigadelas –
Ainda não perdi a esperança de conseguir lembrar-me de quem foi que
disse “A vida é um mistério e não um delírio”.
Barre
pousou o copo. “Sabe - soprou de mansinho – quando era garoto um parente
meu dizia que a memória atraiçoa frequentemente os que comem muito
queijo...
E talvez seja verdade... – disse Cibaljet servindo-se de outra generosa
porção do Brie que restava na tábua – Será um caso de sabedoria
popular...
Mas nenhum deles sorriu.”
***
“Meu caro Barre: ontem, na rua do Tivoli, encontrei um alquimista. Não
se ria, essa qualidade existe. Acontece que por uma subtil concatenação
de factos esse homem é meu vizinho e tive oportunidade de lhe prestar um
pequeno obséquio que o dispôs a meu favor. É um indivíduo inteligente e
desembaraçado, com um vago ar de distância indefinível que, contudo, não
o apouca.
Após vários anos de contacto fortuito, eis que confiou em mim. Contou-me
uma história surpreendente.
Como
não saberá, mas aqui fica a revelação, os adeptos que atingem a
iluminação não precisam daí em diante de comer ou beber e
consequentemente de eliminar os resíduos líquidos ou sólidos. Habitando
vinte anos atrás um solar isolado das redondezas, entregou-se a uma
curiosa actividade: esteve 4 meses sem sair do seu quarto, imóvel numa
poltrona e lendo incessante e interessadamente as obras de Vítor Hugo.
Entre um e outro livro, dormia a sono solto para se distrair com os
sonhos. Depois, recomeçava.
Os músculos não se atrofiavam pois as células corporais, nessas pessoas,
mantêm a elasticidade. Quando chegava ao fim dos tomos, reflectia sobre
as qualidades e defeitos da Obra do mestre. Adquiriu assim a certeza de
que a leitura roda no espírito humano como um planeta o faz à volta do
Sol.
Vai dentro em breve recomeçar o mesmo périplo, desta vez com as obras de
Balzac. Para isso isolar-se-á numa vivenda que descobriu nos arredores
do Languedoc, no cimo duma colina e no meio de um bosque fora dos
circuitos de quem quer que seja. Estará nisto, segundo prevê, 8 meses
seguidos. Depois, será a vez de Homero, de Dante, de Borges, de John
O'Hara, de outros mais. Dará aí para coisa de 4 anos. No entanto, desta
vez acompanhará as leituras com intervalos durante os quais, cozinheiro
emérito em que se tornou por gosto e sensibilidade gastronómica,
preparará pratos sumamente apetitosos conforme a sua disposição do
momento.
Disse-me que um dia, em meio às suas leituras futuras, já os homens
terão chegado a um planeta habitado fora do nosso sistema solar. Sairá
então, com o intuito de renunciar à leitura dos clássicos e votar-se a
passeios incessantes durante os quais ordenará na sua cabeça todas as
páginas que leu.
A solidão não o assusta. A única coisa que parece preocupá-lo um pouco é
que, entrementes, uma catástrofe nuclear aniquile a nossa velha Terra.
Eu disse-lhe que deveria começar a pensar em manobrar de forma a que os
governos que se interessam pela aquisição atómica não tivessem esse
ensejo.
Uma vez que dispõe de incomensuráveis possibilidades, já de tempo já de
sabedoria, isso ser-lhe-á possível a meu ver.
Ele olhou-me fixamente durante uns segundos e depois respondeu: “Saiba
que mesmo a nós é extremamente difícil inflectir a loucura dos homens.
Já outros antes de mim o souberam. Confiemos antes nas leis do acaso”.
Despedímo-nos à porta do edifício que ambos habitamos, em andares
diferentes.
Agora
estou sentado a ouvir uns trechos de Brahms, enquanto lhe
escrevo. Jantei costeletas
grelhadas com um fiozinho de molho inglês para acertar a preparação.
Sinto, contudo, uma leve inquietação que não consigo definir se vem da
conversa ou do leve zumbido que algures soa vindo do apartamento do
lado, onde reside aquela morena de que não sei se já lhe falei.
Até que nos encontremos.
Cibaljet”
***
“De cada vez que ouço Stravinsky ou leio Maupassant sinto sempre que
alguém foi demasiado longe. Há autores que nos deslumbram e outros que
nos sufocam. E o mais grave é que ambas as coisas podem ser
suplementares. Nunca consegui
ler mais do que três contos de Maupassant de uma vez só. E nunca
consegui ouvir Stravinsky durante um inteiro quarto de hora. O pássaro
de fogo põe-me todo a tremer. Tal como sucede com O colar de Maupassant.
A meu ver existe algures, perdida no meio dos séculos e das coisas, dos
acontecimentos e das descobertas, uma lógica inquietante que ainda não
foi avaliada. Algo para além das frases e dos sons. Tem-se a impressão
que certos autores tocaram com o dedo nu o mistério da espécie... -
regougou Barre em voz cava
Junto
da janela, Cibaljet olhava atentamente para fora. Traçava,
distraidamente, figurinhas no vidro embaciado com a mão direita,
enquanto a esquerda levava aos lábios, intermitentemente, o charuto já
meio fumado.
Vem aí uma forte pancada de chuva... - disse enquanto se virava e
apanhava o cálice de “Napoléon” da mesinha de mogno envernizado - O céu
está negro ali para Norte...Vai ser de escachar!
Barre
inclinou-se e, duma pequena taça de cerâmica com arabescos, tirou uma
boa porção de amêndoas torradas.
Gosto da chuva quando cai numa tarde assim de princípios de primavera,
como esta – afirmou com um leve suspiro.”
***
“Lacordaire
ultrapassa em muito a sua própria lenda. Nisso está nos antípodas de
Stevenson, cuja lenda é do tamanho da sua vida vivida. Não é fantasia e
sim realidade o facto de que escreveu “O médico e o monstro” de rajada,
horas depois de ter tido um sonho onde lhe foi oferecida a imorredoira
história. - E, dizendo isto, Barre estugou o passo ao longo da álea que
bordejava o canteiro de flores diversas e multicoloridas.
Sim, mas só até à segunda transformação. Daí em diante teve ele de
inventar – retorquiu Cibaljet com um leve sorriso enquanto, tomando
Barre pelo braço, o encaminhava na direcção da pérgola um pouco mais
adiante.”
***
“Caro
Cibaljet: Contaram-me ontem que Marcel Proust deixou algures, de acordo
com um dos seus melhores exegetas, dois livros inéditos. A meu ver
trata-se de não mais que um boato vago, talvez incrementado por um
editor voraz e arteiro com o intuito de despertar uma nova curiosidade
pelas obras já existentes. Mas e se fôr verdade? Que novas visões isso
despertará, não acha? Críticos, leitores, simples observadores, andarão
à porfia durante sei lá que tempo em roda da obra do aristocrata mais
socialista de França. E já me revelaram que se trata de um diário e de
cartas confidenciais. Que
bico de obra, que bela jornada para duas ou três épocas!
Gostaria
de ouvir a sua opinião. Até domingo próximo e os meus respeitos à
senhora sua Mãe.
Barre”
***
“Meu
caro Barre: A meu aviso trata-se de um boato, desses que surgem
ciclicamente na nossa sociedade hiper-literária. Ou, melhor dizendo,
sofisticada pelos piores motivos. Mas sempre lhe digo que, a ser
verdade, teria importancia apenas nas vendas e nos fins-de-mês das
livrarias. E daria durante um lustro pano para mangas aos batalhões
académicos da especialidade, mas nada mais. Quando um autor está morto,
fisicamente morto e várias décadas passaram sobre a sua desaparição da
cena, transforma-se em História com todas as consequencias que se
conhecem. Nada mais modifica, quando muito suscita um arrepio
intelectual e algumas paixões de segunda ordem.
Assim,
se por exemplo um autor, trinta anos passados sobre o seu último livro,
anunciar que vai publicar um tomo de inéditos que lhe haviam escapado,
arriscar-se-á a passar por velho relho à guisa de plagiador da sua
própria obra.Tanto mais que, entretanto, apareceram novos ritmos, novas
maneiras de indagar os séculos e o século, um novo olhar sobre a
escrita.
Infelizmente
e creio que digo bem, a literatura é um pouco como as bananas, que devem
ser consumidas na hora. A novidade, tanto quanto me parece, advém-lhe
sempre de novos relances, de leitores sucessivos, não de descobertas
materiais.
Seja
como fôr, a ser verdade, creia que estarei como um dos primeiros
compradores dessa iguaria, tanto mais que a frequentação das velhas
glórias é uma das características de que não abdico. E, além disso,
qualquer página de Proust é no fundo como se tivesse sido escrita mesmo
agora, o que contradiz absolutamente tudo o que lhe disse atrás.
Até
domingo, pois. E uma saudação respeitosa a seu Tio.
Cibaljet”
***
“E esta é uma das peças que me chegaram ontem – disse Barre assim que
entrou, sustendo cuidadosamente nas mãos uma peça de cerâmica de côr
esverdeada, com pequenos elementos abstractos, que Cibaljet logo se
apressou a contemplar tão-logo foi deposta sobre a toalha que cobria a
mesa no centro da pequena sala -
Ainda nem sequer a coloquei junto de outras irmãs de outras
civilizações. Não é uma beleza?
Cibaljet,
sem a levantar, rodou-a cuidadosamente, quase com ternura. Olhava-a como
que extasiado. Virou-se e olhou Barre com unção.
Tão simples e no entanto tão bela! - afirmou - Olha-se para isto e quase
se ouvem os sons do passado em que esta peça foi um elemento do dia a
dia. Posso quase ver os que dela se serviam, o camponês comendo nela o
seu alimento enquanto olhava os filhos e a mulher, ou enquanto sentado à
porta de casa olhava os longes da floresta na tardinha que chegava. Os
sons dos animais que começavam a ouvir-se na noite nascente...
Neste
caso – disse Barre com um trejeito, contudo assaz delicado – temo que se
engane: é um exemplar, muito bem conservado, das taças ou tijelas,
conforme queira, em que os participantes no rito maia bebiam o sangue da
vítima propiciatória que o sacerdote acabara de degolar.”
(...)
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