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I.
relegou o pensamento a um rompante vago, se falso,
se real, tanto fazia, porque de tão claro na ideia, ainda que falso,
outros bem reais e semelhantes se tinham sucedido.
em seu redor tudo era negro de uma escuridão
aflitiva, abafada na mudez que também a ela ameaçava. o rosto que via
desfazia-se entre o verdadeiro e coisas, porque desumanas, coisas que o
pesadelo mais incongruente temeria evocar.
não fales, não lembres, não recordes, nunca, ouviu
dizer-se-lhe.
hesitou longos segundos e o seu rugir seguiu-lhe o
braço que seguiu a mão, sem pejo, carregada de dor, bateu de encontro ao
rosto que frente a ela se desfazia, inimigo de tudo o que perpetua.
vivendo nua; em seu interior; no seu corpo
despojado de vestes; de vestes sobre o corpo, em nudez permanente. cada
vez mais longe da nudez absoluta dela recém-nascida, cada vez mais perto
da nudez absoluta dela recém-morta; dos despojamentos puros do início e
do fim, fim?
os dedos percorrem a linha de chão em esquina com a
frincha da porta, puxando do outro lado o fio polvoroso do rastilho. os
olhos abertos na claridade nocturna, não se baixam para acompanhar a
mão, de gesto sem propósito definido como ela em criança. dedilha a
torsão fina, os leves grãos, recordando o odor ceroso e salgado do fio
do norte, nunca para mim é nunca perder o fio à meada. esquecer, o único
olvido é o que fica para além dos ramos das árvores que ladeiam o
jardim, o doce silvo do vento no álamo é o ponto de escape, o plano de
fuga bem sucedido. se eu me duplicar e sair do meu corpo, e contar as
vértebras de minha coluna dorsal, cada uma delas um número infinito de
recordações, de saberes, de memórias, de relatos. porque sofre meu
coração nessa memória agora tão viva e feroz, todas aquelas que como eu
souberam, testemunharam, entenderam, e quiseram sem medo, de sua voz, de
suas palavras, relatar os sucedidos – porque todas nós carregamos na
fronte, nos olhos, o peso do ferrete imposto. o ai de ti que fales. o
não te lembres, não te recordes, nunca. não perder o fio à meada. o
rastilho puxado, mão que não mata e se dobra batendo o pulso contra o
comprimento do fio de pólvora. quando as lágrimas são duras demais,
assim se sentem, como a pedra mais dura. quando as lágrimas podem
destruir a maior dureza, porque desta a origem nem sempre é feliz,
saltam para trás num rugido circular interior e mudo.
quiseram que não falasse, não lembrasse, não
recordasse. não satisfeitos de relegar ao exílio, não satisfeitos de
impor ferretes sem conta, não satisfeitos das vezes sem conta que
universos frágeis a abandonaram na desolação, não satisfeitos dos
incontáveis corpos marcados – consumidos pelo ódio de, face às fugas
colocarem longe e salvarem
do alcance da agressão.
não satisfeitos, re-membro; ou a capacidade de
entender que depois de tudo isso, quiseram ainda que me esquecesse.
quiseram-me vazio silencioso e desmemoriado; desconexo, incongruente,
sem sentido, insano até. não falar, não lembrar, não recordar, não
apenas o inflingido, mas tudo o que me salva e mantém íntegra. lembro,
recordo, falo alto de tudo o que me – que nome se dá ao mal?
mais alto ainda de tudo o que me ergueu, reergueu e
me orientou em frente, me devolveu o que me tiraram; tudo o que me
re-membrou;
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