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Ele
sequer sabia o motivo, mas precisava chegar àquele endereço na Zona
Norte de São Paulo. Porém, sempre limitado ao seu próprio bairro, não
tinha ideia de como fazê-lo. Em sua solidão, estava inteiramente
despido. Isso, no entanto,
não era percebido por ele ou
pelas pessoas que transitam apressadamente pelas ruas.
Pouco
antes de chegar à parada de ônibus pediu informação a uma senhora que,
naturalmente, o orientou a pegar o 724 e descer na penúltima parada. No
ônibus quase lotado, seu corpo nu encostava em pessoas vestidas nos mais
diferentes estilos. Algumas dormiam, outras liam, poucas conversavam e a
maioria parecia apenas seguir pensando no futuro ou em qualquer outra
coisa ainda mesmo importante... O homem era visto como uma criatura
normal. Em nenhum momento foi ignorado; sua nudez, sim!
Desceu na
penúltima parada do longo trajeto e, mesmo com o endereço anotado em um
pequeno pedaço de papel, continuava sem saber para onde ir. Aproximou-se
de uma jovem com uma criança no colo e, mais uma vez, solicitou ajuda,
lendo em voz alta o endereço: Rua
da Esperança, 797. Ficava
a poucas quadras de sua casa – a mulher respondeu -
e, complementando, disse que
poderiam seguir juntos.
A menina,
dois ou três anos, que a mãe levava nos braços o observava de cima a
baixo. Seu olhar parecia ir muito além de sua pele desprotegida pela
ausência das roupas.
Ao
chegarem à casa, a mulher, mesmo após informar que o endereço buscado
estava na primeira paralela abaixo, bastando dobrar na primeira rua à
direita, na seguinte à esquerda e caminhar mais meia quadra, convidou-o
a entrar. Havia duas outras crianças na casa.
Dois meninos. O menor, talvez
com uns cinco anos; o outro com uns sete. Todos descalços, mas vestidos.
Ele, nu, caminhou por todos os cômodos da casa, parando nos fundos,
próximo do pequeno quintal. De lá avistou todo o bairro que se esticava,
inteiramente desconhecido.
Partiu
tentando ser fiel às instruções recebidas, mas como se não apenas as
roupas lhe faltassem, a memória o traía... Dobrou na segunda rua à
direita, quando deveria ser à esquerda... Avançou por três longas
quadras acompanhado de sua impune nudez, até que, inseguro e sentindo-se
perdido, decidiu retornar. Entrou, pela segunda vez, na casa da mulher
das três crianças e novamente percorreu todos os seus cômodos. Parou
próximo ao quintal e, desta
feita, já não achou o bairro tão desconhecido.
Enquanto
repassava as informações com a mulher, seus três filhos, mais uma vez, o
observavam e o examinavam meticulosamente. Sentiu um calor estranho
sobre a pele, algo cortante que, mesmo sem produzir qualquer ferimento,
a penetrava e, depois, corria solto dentro de seu corpo. Caminhou, tenso
e suando muito, até a porta.
Despediu-se da mulher, ainda sob o severo olhar das crianças e, pouco
antes de partir, viu um homem se aproximar e parar ao lado dela. Este o
olhou atentamente, não como as crianças, mas o olhou muito, muito
inquisitavamente.
Quase
correndo, alcançou a esquina e dobrou à direita. Na seguinte corrigiu o
erro anterior e entrou à esquerda e, pouco depois, chegou ao número 787
da Rua da Esperança, mas o
número 797, anotado no pequeno
pedaço de papel, não existia. Concluiu que, na anotação, o número oito
fora, por engano, trocado pelo nove e que o endereço buscado era mesmo
aquele: Rua da Esperança, 787.
Tocou a campainha; bateu palmas; gritou... Nenhuma resposta. Minutos
depois uma vizinha, de sua janela com floreira, falou que há muitos anos
a casa estava vazia. Nua por dentro, ele pensou. E mais além: Se ele era
um corpo sem roupa, a casa era uma roupa sem corpo e sem alma. Pensou em
entrar, vesti-la e em seu interior, quem sabe, também vestido ser.
Desistiu. Algo lhe dizia que o endereço, ainda em suas mãos, já não
tinha qualquer utilidade. Quando teria sido escrito? E quem o escreveu,
para onde foi e que roupa
vestia? Ele em frente, permanecia desnorteado naquele ponto ermo da Zona
Norte. Desnorteado. Imóvel e nu.
Seus
pensamentos foram subitamente interrompidos por uma multidão que,
frenética, gritava: Canalha! Pervertido! Criminoso! Só lhe restava
fugir, mesmo não sabendo para onde. Tinha que se proteger daquela horda,
formada pelas mesmas pessoas que lhe deram informações, pelos
passageiros e motorista do ônibus, pela mãe das três crianças e seu
marido, e pelos curiosos que a ela foram aderindo.
Todos partiram, furiosamente, ao
seu encalço.
Agora ele
era visto como sempre esteve: nu. Agora ele próprio se percebe nu... Mas
por que somente agora? O que teria acontecido antes?
Exausto,
finalmente, ele foi capturado. A massa, ensandecida, por pouco não o
linchou; policiais chegaram, providencialmente. Foi preso em flagrante,
sob a acusação de atentado ao pudor e recolhido ao 39o. Distrito
Policial da Zona Norte. A multidão do lado de fora já ostentava faixas e
cartazes pedindo justiça, punição para aquele que,
a essa altura, já era taxado de
“o tarado da Zona Norte”. A imprensa fazia plantão diante da delegacia
com boletins ao vivo, reportando inúmeros crimes atribuídos ao frio
criminoso. Incomunicável, o monstro, não tinha como se defender. Fora o
seu próprio corpo, a única coisa que lhe restara era o pequeno pedaço de
papel como o endereço que o fez ir até ali. Olhou o endereço mais uma
vez e foi tomado de espanto: Rua
da Esperança, 797. Aquele era endereço de onde agora ele se
encontrava. O endereço da delegacia! Seu corpo nu,
depois de percorrer um longo
caminho, chegou à Rua da
Esperança e lá ele praticamente foi vestido por um pequeno cubículo
de 2 x 3 metros de concreto.
Cansado,
deitou-se no duro catre. Amassou o papel até transformá-lo em uma
pequena bola, a encerrou em sua mão direita e dormiu. Dormiu
profundamente.
Acorda
confuso e com uma forte dor de cabeça. Está em casa, em sua própria
cama. Bebeu tanto na noite anterior que, ao chegar,
jogou-se sobre o edredom sem
sequer tirar o terno e a gravata. Levanta-se e livra-se inteiramente de
suas roupas. No banheiro lava o rosto com água gelada. Lembra, sem
qualquer arrependimento, dos excessos da noite anterior. Rosto pingando,
olha-se no espelho e ri do seu próprio sonho.
Banho
quente e demorado. Exibindo para ninguém um sorriso meio maroto, começa
a escolher as roupas que vai usar. Pronto. Olha-se no espelho e se vê
devidamente vestido. Dispensa o café e, mecânico, parte para mais um dia
de trabalho.
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Raimundo Gadelha
é formado em Publicidade e em Jornalismo pela
Universidade Federal do Pará, com especialização na Universidade de
Sophia, em Tóquio, Japão, onde viveu durante três anos, depois de ter
estudado em Nova York. Poeta e fotógrafo, sua obra percorre o romance e
a poesia, geralmente associada à Fotografia. Trabalhou durante três anos
como editor da Aliança Cultural Brasil-Japão e, em 1994, fundou a
Escrituras Editora. É autor de diversos livros, entre eles: Tereza,
perdida, Tereza (contos, 1978), Colagem Trágica
(poemas, 1980), Este circo tem futuro (Teatro, 1982) e
Cristal (CD de Música Popular Brasileira, gravado em parceria
com Cláudio Vespar, 1984), Um estreito chamado horizonte
(1992), que o transformou no primeiro brasileiro a escrever em Tanka, a
forma poética mais tradicional do Japão, Em algum lugar dentro de
você mesmo (poesia, 1994, português-japonês), Brasil Retratos
Poéticos 1 (fotografia/poesia, 1996, 7a edição), Para não
esqueceres dos seres que somos (poesia, 1998, CD com participações
especiais de Chico César, Marisa Orth, Celso Viáfora e Ná Ozzetti),
Brasil Retratos Poéticos 2 (fotografia/poesia, 2001, 3a edição),
Histórias do olhar (contos, 2003, com outros autores),
Brasil Retratos Poéticos 3 (fotografia/poesia, 2003, 2a edição),
Brasil Natureza e Poesia (fotografia/poesia, 2004), Vida
útil do tempo (poesia, 2004), Brasil - Livro e Postais
(fotografia, 2005) e Em algum lugar do horizonte (romance,
2000), publicado em 2007 na Grécia e no México. Em 2007, Raimundo
Gadelha assumiu o controle acionário e administrativo da Arte Paubrasil
(www.artepaubrasil.com.br), uma das mais reconhecidas livrarias virtuais
do País. |