REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 40 | agosto-setembro | 2013

 
 

 

 

 

 

MARIA ESTELA GUEDES

 

Abdulai Sila
Quando o Poder borra as calças

 

Foto: Ed. Guimarães    

Maria Estela Guedes. Poeta, ficcionista, cronista, dramaturga, historiadora da História Natural e da Maçonaria Florestal Carbonária. Tem umas dezenas de títulos publicados.                   

 

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  Revista Incomunidade, 13, 2013: http://www.incomunidade.com/v13/art.php?art=20
 

 

 

Quando se fala de lusofonia, pensa-se logo na língua oficial dos países que outrora foram colónias portuguesas. Porém, de um lado, nos países lusófonos existem muitas línguas maternas, e em vários só uma percentagem mínima da população fala português; de outro, a língua não é uma torneira de verter palavras, estranha ao que se diz, à experiência e emoções do sujeito falante e dos seus interlocutores. Na língua cabemos todos, mais os problemas que nos afligem, afligiram e afligirão. Por último, «o que temos de mais puro e virtuoso não se exprime pela palavra», escreve Abdulai Sila.

Abdulai Sila ultrapassa, pela problematização política e social, não só os limites do seu país, a Guiné-Bissau, como os da lusofonia. No seu mais recente livro, uma peça de teatro, «Dois tiros e uma gargalhada», a questão da língua apresenta-se de modos vários, e mais à evidência pela inserção de expressões fulas e crioulas no texto em português, mas o que preocupa o autor não é a literatura. A dado passo, refere-se que Naugteh abandona as perucas louras para começar a estudar três línguas nacionais ao mesmo tempo, significando isto que a personagem deixa de imitar o europeu para assumir os valores do seu próprio país. Ela sente necessidade de estudar o fula, o balanta e outras línguas maternas porque também elas preservam um património cultural e humano. A peça de Abdulai Sila espelha uma situação comum a muitos países do mundo, a da crise, estado de suspensão entre passado e futuro.

Vivemos uma época pós-revolucionária, em que «os licornes e as rainhas dos contos de fadas parecem possuir mais realidade que o tesouro perdido das revoluções», como afirma Hanna Arendt em «Entre o passado e o futuro», precisamente. Exauriu-se o potencial das ideias mobilizadoras; o que agora nos mobiliza é o perigo, a carência, a revolta e os sentimentos de injustiça – paixões e não ideias. As ideias que ainda nos iluminam, a despeito do fracasso dos sistemas governativos que as levaram à prática, remontam ao século XVIII, daí que alguns pensadores, face à situação crítica das nações ocidentais, e especialmente face à destruição do Estado Social, declarem que a  Revolução Francesa chegou ao fim.

O que chega ao fim são os regimes e as ideologias, porque o Graal permanece, sem ter sido alcançado, como aliás é próprio das utopias. Em aparente estado visionário, uma personagem declara, em «Dois tiros e uma gargalhada»:   

«Já aí vou, mas antes vejamos o que está a acontecer. Há habitação decente e saúde gratuita para toda a gente, há escolas para todas as crianças, há emprego e bons salários para todos. Há estradas, pontes, energia por todo o lado. Há autoconfiança de volta, há empreendedorismo como nunca visto, há sucesso a todos os níveis, até no desporto, onde as nossas equipas e atletas estão a conquistar títulos e medalhas em todas as modalidades. A nossa cultura está a reflorescer e a criatividade artística e musical atingiu níveis que ninguém podia antecipar…». 

Como se nota, o Graal permanece vivo até em África. Porquê? Porque não existem em toda a parte, nem com profundidade suficiente, lá onde existem, justiça, liberdade e igualdade de direitos e oportunidades para todos, independentemente de sexo, género, etnia, religião, opção política ou formato de agregado familiar. O machismo e o racismo são componentes culturais difíceis de educar, a discriminação da mulher mantém-se, os trabalhadores arriscam-se a ser no futuro novos escravos, a classe média está a ser destruída na Europa, o que criará um fosso entre ricos e pobres tão grande como o que existe no Brasil, há governos que se gabam de ter diminuído a despesa pública quando isso foi conseguido despedindo funcionários e amputando salários e pensões, enfim, o estado de coisas justifica a conhecida asserção dos filósofos segundo a qual já não existe humanidade. Desumanidade e impiedade são dois tópicos de Abdulai Sila, presentes nesta peça, ao lado de soluções inesperadas, que trazem ao palco os seus opostos.

O que as multidões, nas ruas de cidades lusófonas e não-lusófonas, reclamam dos governantes, é que construam ou reconstruam o Estado Social, obra outrora impressa nos programas da social-democracia, do socialismo e do comunismo, inspirados na vertente benfeitora da maçonaria, da qual se diz até ser espelho das organizações de esquerda, especialmente comunistas. Para o conseguirem, manifestam-se nas ruas, caso recente de portugueses, brasileiros e, fora do espaço lusófono, dos gregos e dos turcos em Istambul.

Ora o que existe de mais interessante nestas manifestações é a sua desvinculação de organizações. Não há bandeiras nem cartazes identificadores de partidos, sindicatos, igrejas ou qualquer outra associação, o que denuncia um coletivo não massificado, precisamente porque a movimentação se deve a emoções, o que é próprio do indivíduo, e não a ideologias, próprias de um grupo. Em suma, contra a desumanidade, os seres humanos mostram o rosto a governantes habituados a só olharem para papéis repletos de algarismos, e porventura já saem de casa os que mostram os dentes.

Então o que faliu não foi o ideal, com a sua meta de felicidade para todos, à boa maneira fisiocrática do século XVIII. Os homens é que não estão à altura de o alcançar, transformam-se logo que se sentam no governo, decerto porque as leis do mercado são impenetráveis e se auto-regulam, provocando a corrupção da autoridade e do poder políticos. Porém acima das leis do mercado existem sérios riscos de exaurirmos os produtos que justificam a existência dos ditos mercados e as pessoas já começam a sentir na pele a experiência do No future que tem sido manifesto da juventude nas últimas décadas. Na Turquia, as manifestações e desobediência civil tiveram por pretexto algo que já toca essa tecla: dizer não ao abate de árvores do Parque Gezi. O que nos mobiliza agora é o perigo iminente de não termos futuro, quando muitos já nem de presente podem falar, empurrados como foram para o suicídio ou para a pobreza.

Problemas de multidões apartidárias, sem ideologia nem ódios étnicos, porque a fé invocada por Abdulai Sila desapareceu; em estado de descrença, tendemos a rejeitar lideranças políticas. Multidões desinstitucionalizadas nas ruas porque cada vez mais a aldeia é global, por isso cada vez mais os problemas são globais também, refiram-se eles à destruição do Planeta ou à incompetência para governar. Ora o núcleo dramático mais intenso da peça de Abdulai Sila resulta da transformação da autoridade em autoritarismo e do poder em repressão e violência, no lado da governação. No lado dos governados passa-se algo diferente. Que a autoridade desapareceu, di-lo entre outros Hanna Arendt, para voltar à sua obra «Entre o passado e o futuro». Mas desapareceu na Europa e nas sociedades industrializadas. Na peça de Abdulai Sila, que decorre numa comunidade islâmica fula, a autoridade é detida pelos homens-grandes, os anciãos, esses que ensinam nas escolas corânicas e exclamam que «Deus é grande».

Rematemos este apontamento vendo de mais perto o que se passa: o líder Amambarka encarrega três assassinos profissionais de matarem uns velhos. Os assassinos, precisando de motivação para o crime, querem saber porquê matar velhos indefesos e desarmados. Inesperada resposta do líder: os velhos têm poderes, por isso não lhes faltam as armas, e devastadoras. Um dos homens-grandes é Kamala Djonko. Depois de degolado, recomenda o líder político aos seus homens, é preciso rematarem a missão com dois tiros, um em cada olho. Kamala Djonko não mais poderá ver o que se passa, e por isso criticar nem opor-se ao autoritarismo instituído.

Os assassinos vão a casa do homem-grande para cumprirem a missão, mas encontram-na vazia e de portas destrancadas, como aliás era hábito. Enquanto lá estão, acomete os três uma lancinante disenteria, ficam todos borrados, e borrados e humilhados regressam a casa, sob os olhares de quem passa na rua e assoma às janelas. Cólera é o nome atribuído à devastadora arma biológica usada pelos velhos para se defenderem.

Cólera, todos a temos em nós, é um dos motivos das nossas manifestações de rua, usemo-la com precisão e quando necessário, pois é uma arma poderosa.

Reflexão final: o poder não é a força nem é autoridade o autoritarismo, por muito que ambos governem o mundo, e não apenas uma sala de espetáculos em Bissau. Quer no teatro quer fora dele, autênticos poderes e autoridades, detidos por seres humanos, e não por contas bancárias, conseguem fazer os governantes borrar as calças, como vamos vendo e esperamos continuar a ver.

 

Maria Estela Guedes
Casa dos Banhos, 28 de junho de 2013

   
 
 

ABDULAI SILA
Dois tiros e uma gargalhada
Posfácio de Laura Cavalcante Padilha
Ku Si Mon Editora, Bissau, 2013

   
 

 

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