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Quando se
fala de lusofonia, pensa-se logo na língua oficial dos países que
outrora foram colónias portuguesas. Porém, de um lado, nos países
lusófonos existem muitas línguas maternas, e em vários só uma
percentagem mínima da população fala português; de outro, a língua não é
uma torneira de verter palavras, estranha ao que se diz, à experiência e
emoções do sujeito falante e dos seus interlocutores. Na língua cabemos
todos, mais os problemas que nos afligem, afligiram e afligirão. Por
último, «o que temos de mais puro e virtuoso não se exprime pela
palavra», escreve Abdulai Sila.
Abdulai
Sila ultrapassa, pela problematização política e social, não só os
limites do seu país, a Guiné-Bissau, como os da lusofonia. No seu mais
recente livro, uma peça de teatro, «Dois tiros e uma gargalhada», a
questão da língua apresenta-se de modos vários, e mais à evidência pela
inserção de expressões fulas e crioulas no texto em português, mas o que
preocupa o autor não é a literatura. A dado passo, refere-se que Naugteh
abandona as perucas louras para começar a estudar três línguas nacionais
ao mesmo tempo, significando isto que a personagem deixa de imitar o
europeu para assumir os valores do seu próprio país. Ela sente
necessidade de estudar o fula, o balanta e outras línguas maternas
porque também elas preservam um património cultural e humano. A peça de
Abdulai Sila espelha uma situação comum a muitos países do mundo, a da
crise, estado de suspensão entre passado e futuro.
Vivemos
uma época pós-revolucionária, em que «os licornes e as rainhas dos
contos de fadas parecem possuir mais realidade que o tesouro perdido das
revoluções», como afirma Hanna Arendt em «Entre o passado e o futuro», precisamente. Exauriu-se o potencial das ideias mobilizadoras; o
que agora nos mobiliza é o perigo, a carência, a revolta e os
sentimentos de injustiça – paixões e não ideias. As ideias que ainda nos
iluminam, a despeito do fracasso dos sistemas governativos que as
levaram à prática, remontam ao século XVIII, daí que alguns pensadores,
face à situação crítica das nações ocidentais, e especialmente face à
destruição do Estado Social, declarem que a
Revolução Francesa chegou ao fim.
O que
chega ao fim são os regimes e as ideologias, porque o Graal permanece,
sem ter sido alcançado, como aliás é próprio das utopias. Em aparente
estado visionário, uma personagem declara, em «Dois tiros e uma
gargalhada»:
«Já aí vou, mas
antes vejamos o que está a acontecer. Há habitação decente e
saúde gratuita para toda a gente, há escolas para todas as
crianças, há emprego e bons salários para todos. Há estradas,
pontes, energia por todo o lado. Há autoconfiança de volta, há
empreendedorismo como nunca visto, há sucesso a todos os níveis,
até no desporto, onde as nossas equipas e atletas estão a
conquistar títulos e medalhas em todas as modalidades. A nossa
cultura está a reflorescer e a criatividade artística e musical
atingiu níveis que ninguém podia antecipar…».
Como se
nota, o Graal permanece vivo até em África. Porquê? Porque não existem
em toda a parte, nem com profundidade suficiente, lá onde existem,
justiça, liberdade e igualdade de direitos e oportunidades para todos,
independentemente de sexo, género, etnia, religião, opção política ou
formato de agregado familiar. O machismo e o racismo são componentes
culturais difíceis de educar, a discriminação da mulher mantém-se, os
trabalhadores arriscam-se a ser no futuro novos escravos, a classe média
está a ser destruída na Europa, o que criará um fosso entre ricos e
pobres tão grande como o que existe no Brasil, há governos que se gabam
de ter diminuído a despesa pública quando isso foi conseguido despedindo
funcionários e amputando salários e pensões, enfim, o estado de coisas
justifica a conhecida asserção dos filósofos segundo a qual já não
existe humanidade. Desumanidade e impiedade são dois tópicos de Abdulai
Sila, presentes nesta peça, ao lado de soluções inesperadas, que trazem
ao palco os seus opostos.
O que as
multidões, nas ruas de cidades lusófonas e não-lusófonas, reclamam dos
governantes, é que construam ou reconstruam o Estado Social, obra
outrora impressa nos programas da social-democracia, do socialismo e do
comunismo, inspirados na vertente benfeitora da maçonaria, da qual se
diz até ser espelho das organizações de esquerda, especialmente
comunistas. Para o conseguirem, manifestam-se nas ruas, caso recente de
portugueses, brasileiros e, fora do espaço lusófono, dos gregos e dos turcos
em Istambul.
Ora o que
existe de mais interessante nestas manifestações é a sua desvinculação
de organizações. Não há bandeiras nem cartazes identificadores de
partidos, sindicatos, igrejas ou qualquer outra associação, o que
denuncia um coletivo não massificado, precisamente porque a movimentação
se deve a emoções, o que é próprio do indivíduo, e não a ideologias,
próprias de um grupo. Em
suma, contra a desumanidade, os seres humanos mostram o rosto a
governantes habituados a só olharem para papéis repletos de algarismos,
e porventura já saem de casa os que mostram os dentes.
Então o
que faliu não foi o ideal, com a sua meta de felicidade para todos, à
boa maneira fisiocrática do século XVIII. Os homens é que não estão à
altura de o alcançar, transformam-se logo que se sentam no governo,
decerto porque as leis do mercado são impenetráveis e se auto-regulam,
provocando a corrupção da autoridade e do poder políticos. Porém acima
das leis do mercado existem sérios riscos de exaurirmos os produtos que
justificam a existência dos ditos mercados e as pessoas já começam a
sentir na pele a experiência do No
future que tem sido manifesto da juventude nas últimas décadas. Na
Turquia, as manifestações e desobediência civil tiveram por pretexto
algo que já toca essa tecla: dizer não ao abate de árvores do Parque
Gezi. O que nos mobiliza agora é o perigo iminente de não termos futuro,
quando muitos já nem de presente podem falar, empurrados como foram para
o suicídio ou para a pobreza.
Problemas
de multidões apartidárias, sem ideologia nem ódios étnicos, porque a fé
invocada por Abdulai Sila desapareceu; em estado de descrença, tendemos
a rejeitar lideranças políticas. Multidões desinstitucionalizadas nas
ruas porque cada vez mais a aldeia é global, por isso cada vez mais os
problemas são globais também, refiram-se eles à destruição do Planeta ou
à incompetência para governar. Ora o núcleo dramático mais intenso da
peça de Abdulai Sila resulta da transformação da autoridade em
autoritarismo e do poder em repressão e violência, no lado da
governação. No lado dos governados passa-se algo diferente. Que a
autoridade desapareceu, di-lo entre outros Hanna Arendt, para voltar à
sua obra «Entre o passado e o futuro». Mas desapareceu na Europa e nas
sociedades industrializadas. Na peça de Abdulai Sila, que decorre numa
comunidade islâmica fula, a autoridade é detida pelos homens-grandes, os
anciãos, esses que ensinam nas escolas corânicas e exclamam que «Deus é grande».
Rematemos
este apontamento vendo de mais perto o que se passa: o líder Amambarka
encarrega três assassinos profissionais de matarem uns velhos. Os
assassinos, precisando de motivação para o crime, querem saber porquê
matar velhos indefesos e desarmados. Inesperada resposta do líder: os
velhos têm poderes, por isso não lhes faltam as armas, e devastadoras.
Um dos homens-grandes é Kamala Djonko. Depois de degolado, recomenda o
líder político aos seus homens, é preciso rematarem a missão com dois
tiros, um em cada olho. Kamala Djonko não mais poderá ver o que se
passa, e por isso criticar nem
opor-se ao autoritarismo instituído.
Os
assassinos vão a casa do homem-grande para cumprirem a missão, mas
encontram-na vazia e de portas destrancadas, como aliás era hábito.
Enquanto lá estão, acomete os três uma lancinante disenteria, ficam
todos borrados, e borrados e humilhados regressam a casa, sob os olhares
de quem passa na rua e assoma às janelas. Cólera é o nome atribuído à
devastadora arma biológica usada pelos velhos para se defenderem.
Cólera, todos a temos em nós, é um dos motivos das nossas manifestações
de rua, usemo-la com precisão e quando necessário, pois é uma arma
poderosa.
Reflexão
final: o poder não é a força nem é autoridade o autoritarismo, por muito
que ambos governem o mundo, e não apenas uma sala de espetáculos em
Bissau. Quer no teatro quer fora dele, autênticos poderes e autoridades,
detidos por seres humanos, e não por contas bancárias, conseguem fazer os
governantes borrar as calças, como vamos vendo e esperamos continuar a
ver.
Maria
Estela Guedes
Casa dos Banhos, 28 de junho de 2013
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