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Em 1970, ia Manuel Simões pelos seus 37 anos, publicava ele poemas
declaradamente neo-realistas, ajudando a desfazer a ideia de
precariedade ligada ao “elementar” e ao “utilitário”, linhas de
orientação pelas quais a escola correlata é no geral responsabilizada em
sentido depreciativo. O próprio Simões atribui a boa qualidade estética
da sua poesia desse tempo à tardia incursão pela seara lírica, quando já
adquirira um léxico especializado, de figurino universitário, e um
capital de leituras escolhidas, que lhe permitiram contornar com
desenvoltura estilística os mitos negativos e os estereótipos de
diabolização do “social” que sempre pesaram sobre este tipo de
literatura não obstante ter sido por largo período proeminente em
Portugal.
A produção do poeta neste arco temporal tem formato minimalista,
implícita e explicitamente falando – num pequeno livro, Crónica
Segunda, de setenta e seis, reunião de poemas escritos entre setenta
e setenta e quatro – o que não invalida que por essas páginas perpasse
todo o imaginário da angústia que feriu o núcleo mais esclarecido da
geração de Simões e a levou a resistir como pôde à nomenclatura vigente:
a guerra colonial, a desigualdade das condições de vida na planície do
latifúndio, os cinzentos suburbanos, os cantos de mágoa e o “modo
vicioso de controlar a fala”. A índole crítica e ética dos poemas
gerados no referido “tempo” respondem pelos anos de chumbo da ditadura;
a escrita tem por referência/influência um mestre primacial: João Cabral
de Melo Neto a que se juntaria Carlos de Oliveira, ambos símbolos de
transfiguração do real pela palavra usada como dura ferramenta de
disciplinada oficina, na perspectiva da fisicalidade do universo, mas no
caso de Oliveira sensível ao belo e ao pormenor extraordinário, à
micropaisagem.
Afortunadamente, Manuel Simões rumaria a Itália em 1971 como
leitor de português nas universidades de Bari e de Veneza, e por lá
ficaria até 2003 como professor da Universidade Ca´ Foscari, de
Veneza, responsável pelas disciplinas de Língua e literatura portuguesa
e de literatura brasileira. As obrigações docentes “matariam” o poeta,
expulsando-o irremediavelmente para o “ensaio”?, poderá questionar-se.
Foi ambiguidade que o escritor teve de resolver por si, não se purgando
de uma das aptidões em que manifestamente se sentia capaz de mostrar
serviço, mas reagindo à tentação fracturante ao providenciar a
coexistência pacífica dos dois géneros num mesmo sujeito produtor.
Uma das maneiras achadas por Simões para resolver o “conflito”
consistiu em deixar que a poesia se imiscuísse no seu labor crítico ao
ponto de ser ela a base de um notável trabalho como recenseador. A sua
fértil passagem pela revista Colóquio/Letras a partir de cujas
páginas foi um dos seus mais assíduos e conceituados observadores da
arte versificatória é, hoje em dia, verificável por meio de um simples
click de computador. Note-se que não eram pequenos textos a
despachar mas sim preciosas sínteses que a pretexto da publicação de um
livro enquadravam autor, tempo, contexto, memória, no largo espectro dos
valores que informam o nosso mais prestigiado género literário. Só à
conta deste crivo judicativo foram comentadas obras de Vicente
Aleixandre, Armindo Rodrigues, Raúl de Carvalho, E. M. de Melo e Castro,
Maria Teresa Horta, José Alberto-Marques, Manuel Alegre, José
Craveirinha, Alexandre Pinheiro Torres, Eugénio de Andrade, Senghor,
João José Cochofel, Mário Cláudio, Ana Mafalda Leite, Fernando Pessoa,
Lêdo Ivo e Umberto Saba, entre outros, e a culminar um consistente
ensaio consagrado a Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo
Neto.
O abnegado esforço na Colóquio era replicado em Veneza, na
revista Ressegna Iberistica, que M. S. ajudou a fundar em 1978 e
de cujo conselho redactorial foi membro até 2012. O esforço era o mesmo,
o objectivo diverso: dar notícia da literatura portuguesa vertida para
italiano mas num regime que não impedia o desvio da norma se num caso ou
noutro fosse essa a vontade do crítico português. Daí resulta que deva
ser prestada a Manuel Simões e à sua presença em Itália, durante todos
esses anos, o reconhecimento devido pelo facto de muitos escritores
nossos compatriotas terem beneficiado quer da sua disponibilidade para
os acolher como “anfitrião” residente, quer do acompanhamento crítico
que, por essa razão, sobre as respectivas obras incidiu. Reconhecimento
foi coisa que não lhe faltou por parte da Universidade veneziana ao
dedicar-lhe o formoso volume L’acqua era d’oro sotto i ponti
(2001) em cujas páginas vinte e nove pares homenageiam as literaturas
ibéricas e brasileira, sendo um desses textos de análise à sua poesia
subscrito por Silvio Castro e, a fechar a recolha, uma antologia
bilingue de poemas escolhidos por Giulia Lanciani, mais relacionados com
Veneza ou com Itália. Na introdução os promotores exaltam as qualidades
de um “caro amigo, sempre disponível, de aprazível companhia e
conversação.”
Este lembrete respeita a um intelectual que não corteja o ruído,
merecedor da reverência italiana e vítima da pífia indiferença
portuguesa responsável por mais um caso de descaso caseiro. Alguém que
não escapa ao labéu de “estrangeirado”. Quando se distribuem prémios,
comendas e medalhas por aí a esmo, o regimento corporativo regala-se com
as suas exclusões. O silêncio hipócrita chancela o ódio ao “expatriado”.
Uma questão cultural.
Os três ou quatro livros de poemas que, a meu ver, marcam a trajectória
poética de Manuel Simões, são contextualizáveis através das
dedicatórias/epígrafes ou prefácios. Crónica Segunda tem por
figura tutelar João Cabral de Melo Neto, Canto Mediterrâneo
acomoda Carlos de Oliveira, cantor da metamorfose, fazendo pendant
com Mário Cláudio, no prefácio, em deambulações sobre o silêncio da
“ilha” e o seu descarnado destino de infortúnio: não existe Veneza,
só a sua aparência, dita o poeta, citado pelo prefaciador. Fernando
J. B. Martinho, no livro significativamente intitulado Errâncias,
especifica, também no prefácio: A nenhum dos dois espaços o poeta
alguma vez retorna verdadeiramente. A sua “odisseia” é, para pegarmos
nas palavras de Magris, “sem retorno”. E, se assim o é, é porque, para
ele, não há apenas uma Ítaca, mas duas, que fazem dele um ser
irremediavelmente cindido.” Em Micromundos, título que pode
ser interpretado ainda como uma homenagem a Carlos de Oliveira, quem
aparece epigrafado é nem mais nem menos Jorge Luís Borges: Um homem
propõe-se a tarefa de desenhar o mundo. […] Pouco antes de morrer,
descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem da sua
cara. A cara do poeta, através das linhas do mapa de epígrafes e
prefácios, é a de um ser dedicado às Letras que moldou o seu discurso
literário ao sabor dos mundos que lhe foram dados conhecer e sobre ele
exerceram pressões e tensões cuja inclemência nem sempre o poupou.
Se a errância constitui o estímulo causal desta poética,
consequente à própria natureza das relações do sujeito da escrita com a
pátria, colhe-se dela muito mais do que o simples movimento de
itinerância geográfica reflectindo a persistente insatisfação de se
estar sempre no não lugar. A evolução do estilo tomou o rumo da certeza
formal – ao rés da lição dos mestres – estabilizando em patamares de
exigência favoráveis ao comprazimento estético que consegue repercutir
no leitor. Agora senhor da arte de guardar distâncias em relação ao
apelo imediatista das coisas, a outrora omnipresente realidade, não
afrouxa no elogio ao mestre inesquecível a quem louva o génio para fazer
delas, coisas, outra coisa.
Um dia epigrafei-te
e acreditei
ter escrito à tua maneira
Estultícia de aprendiz de poeta
A referência ao patrono, numa frente reverencial semelhante à do
poema de Salvato Telles de Menezes dedicado a Carlos de Oliveira, induz
uma ideia de respeito pelo dizer antigo e tutelar dos mestres.
Porém, como em Salvato, a voz própria acaba por se impor,
independentemente do assimilado por analogia.
Ao subtitular Errâncias de Cartografia da Errância,
como se o título fosse insuficientemente alusivo, Simões arrasta o
leitor até à superfície plana pontuada por sinais luminosos ou baços,
indicadores de alegria ou de pesar. A cartografia aparece como instância
de repouso do já descoberto, registo, sedimento, perímetro de emoções
que só o são numa actividade reminiscente buliçosa. Resolvido o problema
da certificação / localização, no mapa, do(s) lugar(es) onde as coisas
aconteceram, perpassam brisas nostálgicas num trilho iterativo marcado
pelo adjectivo “antigo / antiga”, aproveitado para requalificar o
aprendido: um bloco de madeira antiga / a antiga e aguda
sapiência /segredo transgressivo como cal antiga / rumor
antigo / o fogo antigo que sobre a pedra arde / a antiga
intuição do vento.
Uma ideia de saudade dos saberes perfeitos protocolada à volta da
superioridade do “antigo” sem manifestamente hostilizar o moderno mas
que não deixa de envolver uma comparação valorativa, sobressai, pois,
numa linguagem toda ela equilibrada em função dos “quatro elementos”,
chamados ao reforço metafórico da caligrafia comunicativa. Uma vez ao
largo do cais da memória, os poemas mostram-se porosos a descargas
sensoriais de cunho vitalista, em que o fogo, os ventos, a terra, a
água, têm desempenhos protagonistas na criação do sentido da estrofe. Se
a inevitável melancolia da paisagem lagunar ou os horizontes pequenos do
subúrbio lisboeta decorrem do olhar e da sensibilidade disfóricos do
emissor, a compensação vem das intensidades cromáticas (a luz vermelha,
o verde das colinas, o azul incrível) e de associações de júbilo
existencial como “Torna de novo com o secreto fogo do teu corpo” em que
as litanias boas do mar, a força dos ventos e as energias crepitantes se
juntam para frear a tentação do esmorecimento e da passividade
detectável nalguns fragmentos de nexo intimista e crepuscular. Também a
confidencialidade do que se refugia no “segredo” é quebradiça, fendida
aqui e além pelo ágil voo das sensações libertadas.
Em Micromundos prevalece o código da errância utópica mas
a errância real está arrumada em dois compartimentos estanques: Sobre
as margens do Mediterrâneo e Litorais Atlânticos. O autor
fixa a sua “cisão” em território já explorado e refina nesses dois
“cortes” a cordialidade com que frequenta os respectivos mitos, sejam os
dos argonautas, sejam os dos nautas das Descobertas. O coração repartido
abre ao afecto da palavra poética espaços culturais que permitem a
vizinhança sem fronteiras: uma evocação emotiva de Carlos Paredes e dos
seus “Verdes Anos” ou o fascínio da “incrível geometria etrusca” da
colinas de Voltera declinam a mesma vontade de
encontro no “lugar aberto à escrita da água”. Simões consegue-o
com o rigor e a exactitude de um ser racional refém dos demónios do
sentimento mas que soube resolver as suas dicotomias com espírito
conciliador e uma clara atitude de respeito pelo produto poético como
obra de arte.
O ofício docente impõe a Manuel Simões um aperfeiçoamento de saberes (e
de linguagens) a que ele se submete com o afinco do intelectual
consciente de nessa aquisição de conhecimento estar o melhor ferramental
para dar corpo e voz a um ambicioso projecto: a digressão ao fundo dos
papéis antigos que descrevem os passos primordiais da Errância maior que
nos é ancestral. E assim o convite à viagem em ensaios sustentados por
um léxico banhado de erudição académica (longe da limpidez clássica da
escrita poética, mais cingido à gíria universitária) traz à actualidade
interpretações de textos coevos das Descobertas sobre os quais, muitas
vezes, recaem a dúvida e a polémica, ou apenas a inércia de quem antes
lhes negligenciou a mensagem, como são, por exemplo, os casos da
“relação do Piloto Anónimo” no achamento do Brasil, da epistolografia
jesuítica, com especial ênfase na do padre José de Anchieta sobre como
catequizar o índio brasileiro, ou nos desvios à norma, de Fernão Mendes
Pinto, analisados enquanto sátira ao “outro” como “máscara”. (O Olhar
Suspeitoso).
Ao utilizar o aparato técnico-académico comprometido com uma
esfera vocabular codificada e com um horizonte referencial de alto
padrão, MS expatria voluntariamente da vulgarização a sua ensaística, e
no entanto como ela seria útil se formalizada em termos de accionar a
“função divulgativa” até atingir a fronteira do receptor comum. Da
recepção possível, no limite. Mas a viagem prossegue, indiferente ao
modo como o pivot da investigação vai sacando das malhas que o
império tece os motivos que a dado momento deixam de ser da ordem do
domínio administrativo-militar (do ponto de vista do
colonizador/ocupante) para passarem a ser emergências do
da língua comum como herança a proteger. E assim o ensaio de
Simões propaga ecos de Jorge Amado, Adonias Filho, Clarice Lispector,
Drumond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Agostinho Neto, Luandino
Vieira, José Craveirinha, entre outros, no que se afigura uma
continuação lógica do trabalho dos pioneiros, um segmento da viagem
pós-instauração da Língua como factor de unidade nacional nos diversos
países de idioma oficial português, alicerce de luxo da sua hegemonia
territorial. (Outras Margens) Neste sentido, apesar da sedução da
brisa mediterrânica e do seu bafo amigável, o viajante não se detém ante
a urgência em acudir aos mundos familiares que para a sua itinerância
apelam: cumpre generosamente esse desígnio sem esquecer, bem entendido,
aquela que Mário Cláudio com uma ponta de humor sardónico lhe reservou,
chamando-lhe “a pátria que o pariu”. Vemos, lemos, então Simões a
discorrer ensaisticamente sobre os autores portugueses num quadro
interpretativo sem idade, “percorrendo” demoradamente Fernando Pessoa
mais José Rodrigues Miguéis, José Saramago, Gil Vicente, o padre António
Vieira, Lopo de Almeida, Violante do Céu, Matias Aires, Eça de Queirós,
entre outros. (Tempo com Espectador).
Por este apontamento se percebe quão entusiástica foi a entrega
de MS a essa nobre tarefa de divulgar a literatura portuguesa e os seus
artífices, cá como em Itália, e como o designativo de “confidencial” que
sobre esse labor pesa encobre o travo agridoce das dedicações mal
recompensadas.
Nos oitenta anos de Manuel Simões nem toda a “pátria que o pariu”
esqueceu o que fez por ela.
S. João do Estoril, Agosto de 2013
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