RELATO DUVIDOSO DO QUE SE PASSOU CERTO DIA DO QUAL NINGUÉM RECORDA UMA SÓ
PALAVRA
A história foi toda escrita ao contrário.
Só assim resultaria permanentemente desacreditada.
O tempo se arrasta como um símbolo perdido.
Um pássaro aplicado à linguagem tentando descobrir
uma função para o excesso de aspas.
Púlpitos são comprados em brechós.
A memória jamais deixou de ser abundante e perversa,
como uma escada largada na garagem.
Aos que não vivem sem um oráculo, consultem a
escada, consultem os brechós.
Há uma longa distância a atravessar entre o que
vemos e o que não conseguimos tocar.
Querem mesmo saber o que houve naquele dia?
Tudo parecia despertar deslizando na matéria de
nossa percepção.
As dádivas da perda se associando às lágrimas como
um dragão dominado pela assimilação demoníaca.
Como nunca, eu desejei ser o abismo do mundo.
O que vi foi a minha filha expirada em mim, a minha
vida tomada como uma alusão volátil, um rio de sangue e mais nada.
A eternidade nunca faz parte da cena.
A vida mói o espírito, o princípio e até mesmo os
anjos não adaptados.
Eu teria me desfeito em sangue por ela.
Deus algum saberá até onde eu fui.
Nem importará sabê-lo, pois não importa o mais
implacável de todos os destinos.
A minha filha se foi dentro de mim, consagrada ao
vazio como uma espécie perdida.
Os dias felizes são tangíveis.
O ENIGMÁTICO SONHO DE ROSALÍA DE CASTRO NO ALPENDRE DE SUA CASA EM TEMPOS
VERDES
Parte do que fomos jamais conheceu uma outra versão de nossos abismos.
A noite percorria com inquieta intimidade um labirinto de sonhos que
teimávamos em decifrar.
Uns pássaros rascunhavam na escuridão a imaginária linha do horizonte,
até que o calor de teus lábios testemunhasse nossos corpos reescrevendo
suas formas.
Atrás de uma pequena coluna, cada abraço parecia abranger um mistério
propício.
Apenas o teu sonho colecionava metáforas entre satisfeitos gemidos.
Tudo isto quando o alpendre da casa recortava teu sorriso e com ele
compunha uma trilha de inquietudes, teu olhar finalmente decidido a
incendiar-me as miragens.
Metade de teu corpo ficou presa na cama em que nos encontrávamos.
Eu nunca pude entender como voltávamos um para o outro e recomeçávamos a
partir do que havia sobrado da noite anterior.
A outra metade acumulando sombras antes que o sol desaparecesse.
A NOITE EM QUE UM ANIMAL FABULOSO RENASCE NO NINHO DE TUAS MÃOS
As tuas mãos tateando verbetes em minha pele.
Descobrindo onde dormia o verão. Despertando um balé
profano em minhas vértebras. Anunciando um beijo a cada sensação de
desmaio.
As tuas mãos são o meu gerúndio preferido.
À noite escuto apenas o rumor das ondas de meu mar
interior.
E uma voz que reconheço ser minha deslacra outro
abismo com sua gramática imprecisa: Eu sou tua, você me roubou, seu
diabo!
Os meus mamilos se multiplicam e desarvoram a
paisagem salpicada de lábios.
A sombra de tuas mãos imersa em minhas águas
primordiais simula a dissolução de tudo quanto fui.
Eu me recupero em tuas nascentes. Como semelhante de
teus sonhos.
E não vim nem mesmo para ficar. Tu me revelas a
descrição de uma lenda esquecida.
Decerto a ela retornarei.
O OLHO DO CREPÚSCULO CONTEMPLA A PAISAGEM COM SUAS FLORES CARNÍVORAS
SOBRE OS OMBROS DA TORMENTA
Dedilho teu seio possível como um castelo de larvas que preparam meu
renascimento.
A terra enlouquecida geme como
uma orgia de nuvens adentrando as confidências do tempo.
A luz deságua seu vidro de
essências fantasmais e reabre as feridas para lhes ensinar alguns
motivos esquecidos.
O horizonte despista as fontes
que querem bebe-lo de uma só vez ondulando uma linha de insetos que
festejam o truque como uma lâmpada em delírio.
O abismo se refaz das primeiras
quedas e descreve o dilema do labirinto embebido no ouro de óleos em
cujas gotas ainda é possível entrever um bosque desmatado em silêncio.
Eu penso em ti como se ainda
fosse possível voltar a perder-te, como se inquietos oásis flutuassem
sobre a queima dos carnaubais.
Eu penso em teus lagartos
camuflados sob o ossuário do que fomos.
Eu penso e as trevas
ricocheteiam como disparos desperdiçados.
Não espero que me acompanhes
enquanto renasço, embora deixe uma trilha de miolos de meu espírito,
caso queiras sobreviver à luxúria da tormenta.
UMA TARDE O ESPELHO DESATOU SEUS NÓS E A ESCURIDÃO COMEÇOU A DEDICAR-SE
À CRIAÇÃO DE OUTRA RESSONÂNCIA DE SI MESMA
A tua luz me antecipa e chega mesmo antes que percebas.
Não havia outra luz, reconhecem todas as frestas.
Embora o criado-mudo ainda conserve amassado teu ofegante manuscrito:
o amor não existe.
Haverá um que escape à retina das sombras.
Um ninho sem progresso, em que as idades avançam alheias ao tempo.
Este é o gráfico em que isolo as fórmulas gastas do destino.
Um ideograma de abismos onde toda forma de beleza é incomparável.
A tua luz tece um mundo desconhecido cuja simetria eu tateio na volúpia
de uma silhueta amorosa.
Morte ou incesto, nenhum arcano nos afasta ou consagra, nenhum asceta ou
ermitão transcreve os circuitos de nossos instintos.
A tua luz reparte o centro de meu ser, alimenta a caixa escura de minhas
obsessões.
Eu me desenraizo para que me refaças.
Eu me revelo para que me ocultes.
A tua luz é a única forma familiar do que ainda não vivi.
DEVANEIO CÍCLICO DO TEMPO ACENTUADO PELAS DESCONFIANÇAS DO ACASO
Todas as línguas estão manchadas de memória.
Os livros derivam de sombras sorrateiras que picharam o enigma por
dentro.
Casulos com três ou quatro pedras alojadas entre a perfeição e a beleza.
Eu me oriento pela transparência de teus lábios.
Tu te esquivas dos presságios.
Quando nos vimos pela primeira vez há muito já nos conhecíamos.
As nossas letras secretas, os vultos do verbo, a penumbra dos gemidos,
de incontáveis modos o mundo estava preservado e se agitava em nós.
Segundo a lenda não somos senão essa imagem obrigada a vagar pelas
encostas do desejo.
Porém tudo o que me disseste antes de nosso encontro não era o sopro de
um signo disposto aos caprichos da harmonia divina.
Talvez fôssemos a fagulha das letras emblemáticas que não couberam no
livro santo.
Porém não queríamos senão voar.
Ante a petrificação da paisagem com suas ordens mitológicas e seus
papiros carcomidos de virtudes, tudo o que queríamos era voar.
Eu me debato entre a fome e a saciedade de teu espírito.
Tu te recuperas dos vapores da regeneração.
Todas as línguas são consumidas pela memória.
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