REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 39 | junho-julho | 2013

 
 

 

 

 

 

 

 

 

NUNO REBOCHO

Morreu um grande senhor: Bento Vintém

Nuno Rebocho (1945, Portugal). Escritor e jornalista.                                      
 

EDITOR | TRIPLOV

 
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A notícia da morte do António Bento Vintém chegou-me do mesmo modo como, para quem está longe, vêm as demais informações – de chofre, embrulhada por uma frase simples: “morreu um amigo”. Que fora um enfarte. Foi uma parte de mim que findou. E começaram a desfilar, de súbito e na memória, muitas das cenas que vivemos em conjunto.

Descobri-o em 1963, aquando uma das minhas idas a Santarém de visita a meus tios: ele fora levado, por engano, para a Frente de Estudantes Nacionalistas, onde fora eleito secretário-geral. O episódio levara-o a descartar-se, que não queria ter nada a ver com o salazarismo – provou-o mais tarde. Por minha mão, o António foi arrastado para o suplemento “Juvenil” do Diário de Lisboa (diga-se que o Mário Castrim aplaudiu) e depois para as páginas do “O Tempo e o Modo”, com gáudio do Bénard da Costa e do Vasco Pulido Valente. Foi o início de uma camaradagem e de uma amizade que, naturalmente, teve os seus altos e baixos, os seus incidentes, como acontece com todas as relações que estruturam a vida.

Recordo-me que, nesses longínquos anos de 60, ele veio a Lisboa para uma decisiva conversa entre nós e que foi decisiva para os caminhos políticos que tomámos: caminhámos lado a lado toda a noite pelas ruas da capital, desde o Bairro Alto até ao estádio municipal, quando resolvemos (no amanhecer) escandalizar o pároco de uma igreja do Campo Grande – fomos descobertos, ainda descalços, na pia de água benta onde nos preparávamos para lavar os pés. Impenitentes ateus, atendíamos a uma necessidade sem nos preocupar com as consequências. Podia ter dado para o muito torto.

Já comprometidos com as organizações de extrema-esquerda, certa feita subi eu à cidade escalabitana. Em casa do António (morava ele então num segundo andar), entretivemo-nos a descobrir como se produz a nitroglicerina. Quando concluímos a façanha, surgiu uma dificuldade: como nos livrarmos dela. Descemos vagarosamente as escadas, transportando no prato com muito cuidado as gotas fabricadas, parando de quando em quando no caminho para que o Bento pudesse dar os seus saltinhos da praxe (ele sofria de uma doença do foro nervoso que o obrigava a tais preparos): colocámos a coisa numa oliveira em frente da casa e fisgámos de longe a loiça – a árvore rachou ao meio e lá ficou nesse estado durante anos e anos.

Num encontro havido numa pensão em Coimbra (já estava eu clandestino no Porto), combinámos que ele iria a Paris para organizar com o Eduíno Gomes (o camarada Vilar) a ligação do nosso grupo, a que chamámos o Movimento Marxista-Leninista Português, com o Comité Marxista-Leninista Português. Era nossa preocupação reconstituir a Frente de Ação Popular, que fora desmantelada pelas terríveis detenções do Francisco Martins Rodrigues, do João Pulido Valente e do Rui d’Espiney e de quase todo o grupo inicial – foi essa uma das razões do fraccionismo que avassalou a esquerda portuguesa por anos a fio.

 Todavia, o Bento Vintém nem se encontrou com o Eduíno e nem lhe entregou a carta que na altura lhe escrevi (conhecera-o no Instituto Superior de Engenharia, nas reuniões da revista “Binómio”). Em vez disso, por qualquer razão que nunca apurei – dado que fomos disso impedidos pela nossa prisão pela PIDE, tendo ele sido detido quando se aprestava para ir ao meu encontro na estação de Campanhã, no Porto, onde em vão o aguardava com a Dúlia -, o Bento contactou a IV Internacional: do facto resultou a indevida fama do meu trotskismo, coisa que nunca teve algum fundamento, mas me provocou alguns amargos de boca na Cadeia do Forte de Peniche. Contudo, não me podia defender das acusações uma vez que nunca fui informado dos motivos que levaram o Vintém a esta opção. Não é que me ofendessem muitas das teses de Leão Trotsky, cuja obra conhecia no essencial, mas daí a entender-se que eu aderira ao trotskismo vai uma distância tão grande como de Lisboa ao México.

Após a sua libertação, o Bento casou e escapou para Itália (Milão). Empregou-se na editora Enaudi e viveu em casa de Petra Kreuze onde deu de caras com o célebre Carlos, o terrorista, com quem o seu filho terá aprendido a jogar ténis de mesa. Foi em Milão que nasceu o grupo do “Proletário Vermelho” - “O Bolchevista”. Não o acompanhei nesses passos. Segui-o de longe, já que tinha aderido, ainda na cadeia, ao Comité Comunista de Portugal.

Apenas reencontrei o Bento Vintém no seu regresso a Portugal, depois de 1974. Criou ele então a livraria Outubro, na Póvoa de Santo Adrião, e uma tipografia, a Pentaedro, enquanto em termos políticos deu apoio ao CARP-ml, o que ocasionou desavenças entre nós. Até à sua rotura com o CARP, as coisas rolaram com cada qual por seu lado. Reaproximámo-nos em 1975 quando enveredei pelo Movimento contra a Independência Unilateral de Angola: éramos apoiantes da causa independentista, mas opúnhamo-nos a um envolvimento nas opções angolanas repartidas por três grandes organizações (FNLA, UNITA e MPLA, para mais este dividido em três fações – Agostinho Neto, Revolta do Leste e Revolta Ativa, que arregimentava muitos dos meus amigos, nomeadamente o Joaquim Pinto de Andrade, o Liceu Vieira Dias e o Gentil Viana, então estes dois presos pelos netistas). O reconhecimento da independência de Luanda significava uma tomada de posição favorável a uma das tendências angolanas, o que contrariava os nossos princípios.

Por isso, o Eduíno Gomes, juntamente com o Bento Vintém, com a JSD e comigo, escolhemos opor-nos à declaração de independência por Luanda. Tivemos contra nós a maioria do MFA. A nossa posição era incompreendida, injustamente confundida com uma opção colonialista, o que não era de nenhum modo o caso – alguns dos senhores que bateram palmas, sem vergonha, ao colonialismo e à guerra colonial não tiveram a coragem de se opor frontalmente ao salazarismo, quando tal implicava a liberdade, como nós o tínhamos feito e disso estávamos justamente orgulhosos.

São coisas do passado que hoje recordo. O Bento seguiu a sua carreira de editor, em certa altura dei-lhe uma ajuda, mas preferi encaminhar a minha companheira da altura, a Dúlia Maia, para responsável da Pentaedro. Afastado do PC de P (O Bolchevista), tal como eu me afastara da UCRP, o Bento Vintém encontrava-se comigo quando podíamos. E, mal dos meus pecados, desaconselhei-o a publicar os seus poemas como durante algum tempo interessado nisso. De facto, a meus olhos, à semelhança da poesia de alguns dos seus amigos italianos, a sua poética era de baixa qualidade, ao contrário do que acontecia com o seu pensamento, que eu aplaudia.

O Bento Vintém deixa muitos amigos em África, por ter colaborado na edição, durante muitos e muitos anos, em muitos países africanos, inclusive em Cabo Verde. Foi uma referência obrigatória em Portugal e ficará, até ao último sopro de vida, uma das minhas grandes amizades que não posso esquecer. Estou triste, estou de luto, com a sua morte.

Nuno Rebocho

 

 

© Maria Estela Guedes
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