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A notícia da morte do António Bento Vintém
chegou-me do mesmo modo como, para quem está longe, vêm as demais
informações – de chofre, embrulhada por uma frase simples: “morreu um
amigo”. Que fora um enfarte. Foi uma parte de mim que findou. E
começaram a desfilar, de súbito e na memória, muitas das cenas que
vivemos em conjunto.
Descobri-o em 1963, aquando uma das minhas idas a
Santarém de visita a meus tios: ele fora levado, por engano, para a
Frente de Estudantes Nacionalistas, onde fora eleito secretário-geral. O
episódio levara-o a descartar-se, que não queria ter nada a ver com o
salazarismo – provou-o mais tarde. Por minha mão, o António foi
arrastado para o suplemento “Juvenil” do Diário de Lisboa (diga-se que o
Mário Castrim aplaudiu) e depois para as páginas do “O Tempo e o Modo”,
com gáudio do Bénard da Costa e do Vasco Pulido Valente. Foi o início de
uma camaradagem e de uma amizade que, naturalmente, teve os seus altos e
baixos, os seus incidentes, como acontece com todas as relações que
estruturam a vida.
Recordo-me que, nesses longínquos anos de 60, ele
veio a Lisboa para uma decisiva conversa entre nós e que foi decisiva
para os caminhos políticos que tomámos: caminhámos lado a lado toda a
noite pelas ruas da capital, desde o Bairro Alto até ao estádio
municipal, quando resolvemos (no amanhecer) escandalizar o pároco de uma
igreja do Campo Grande – fomos descobertos, ainda descalços, na pia de
água benta onde nos preparávamos para lavar os pés. Impenitentes ateus,
atendíamos a uma necessidade sem nos preocupar com as consequências.
Podia ter dado para o muito torto.
Já comprometidos com as organizações de
extrema-esquerda, certa feita subi eu à cidade escalabitana. Em casa do
António (morava ele então num segundo andar), entretivemo-nos a
descobrir como se produz a nitroglicerina. Quando concluímos a façanha,
surgiu uma dificuldade: como nos livrarmos dela. Descemos vagarosamente
as escadas, transportando no prato com muito cuidado as gotas
fabricadas, parando de quando em quando no caminho para que o Bento
pudesse dar os seus saltinhos da praxe (ele sofria de uma doença do foro
nervoso que o obrigava a tais preparos): colocámos a coisa numa oliveira
em frente da casa e fisgámos de longe a loiça – a árvore rachou ao meio
e lá ficou nesse estado durante anos e anos.
Num encontro havido numa pensão em Coimbra (já
estava eu clandestino no Porto), combinámos que ele iria a Paris para
organizar com o Eduíno Gomes (o camarada Vilar) a ligação do nosso
grupo, a que chamámos o Movimento Marxista-Leninista Português, com o
Comité Marxista-Leninista Português. Era nossa preocupação reconstituir
a Frente de Ação Popular, que fora desmantelada pelas terríveis
detenções do Francisco Martins Rodrigues, do João Pulido Valente e do
Rui d’Espiney e de quase todo o grupo inicial – foi essa uma das razões
do fraccionismo que avassalou a esquerda portuguesa por anos a fio.
Todavia, o
Bento Vintém nem se encontrou com o Eduíno e nem lhe entregou a carta
que na altura lhe escrevi (conhecera-o no Instituto Superior de
Engenharia, nas reuniões da revista “Binómio”). Em vez disso, por
qualquer razão que nunca apurei – dado que fomos disso impedidos pela
nossa prisão pela PIDE, tendo ele sido detido quando se aprestava para
ir ao meu encontro na estação de Campanhã, no Porto, onde em vão o
aguardava com a Dúlia -, o Bento contactou a IV Internacional: do facto
resultou a indevida fama do meu trotskismo, coisa que nunca teve algum
fundamento, mas me provocou alguns amargos de boca na Cadeia do Forte de
Peniche. Contudo, não me podia defender das acusações uma vez que nunca
fui informado dos motivos que levaram o Vintém a esta opção. Não é que
me ofendessem muitas das teses de Leão Trotsky, cuja obra conhecia no
essencial, mas daí a entender-se que eu aderira ao trotskismo vai uma
distância tão grande como de Lisboa ao México.
Após a sua libertação, o Bento casou e escapou para
Itália (Milão). Empregou-se na editora Enaudi e viveu em casa de Petra
Kreuze onde deu de caras com o célebre Carlos, o terrorista, com quem o
seu filho terá aprendido a jogar ténis de mesa. Foi em Milão que nasceu
o grupo do “Proletário Vermelho” - “O Bolchevista”. Não o acompanhei
nesses passos. Segui-o de longe, já que tinha aderido, ainda na cadeia,
ao Comité Comunista de Portugal.
Apenas reencontrei o Bento Vintém no seu regresso a
Portugal, depois de 1974. Criou ele então a livraria Outubro, na Póvoa
de Santo Adrião, e uma tipografia, a Pentaedro, enquanto em termos
políticos deu apoio ao CARP-ml, o que ocasionou desavenças entre nós.
Até à sua rotura com o CARP, as coisas rolaram com cada qual por seu
lado. Reaproximámo-nos em 1975 quando enveredei pelo Movimento contra a
Independência Unilateral de Angola: éramos apoiantes da causa
independentista, mas opúnhamo-nos a um envolvimento nas opções angolanas
repartidas por três grandes organizações (FNLA, UNITA e MPLA, para mais
este dividido em três fações – Agostinho Neto, Revolta do Leste e
Revolta Ativa, que arregimentava muitos dos meus amigos, nomeadamente o
Joaquim Pinto de Andrade, o Liceu Vieira Dias e o Gentil Viana, então
estes dois presos pelos netistas). O reconhecimento da independência de
Luanda significava uma tomada de posição favorável a uma das tendências
angolanas, o que contrariava os nossos princípios.
Por isso, o Eduíno Gomes, juntamente com o Bento
Vintém, com a JSD e comigo, escolhemos opor-nos à declaração de
independência por Luanda. Tivemos contra nós a maioria do MFA. A nossa
posição era incompreendida, injustamente confundida com uma opção
colonialista, o que não era de nenhum modo o caso – alguns dos senhores
que bateram palmas, sem vergonha, ao colonialismo e à guerra colonial
não tiveram a coragem de se opor frontalmente ao salazarismo, quando tal
implicava a liberdade, como nós o tínhamos feito e disso estávamos
justamente orgulhosos.
São coisas do passado que hoje recordo. O Bento
seguiu a sua carreira de editor, em certa altura dei-lhe uma ajuda, mas
preferi encaminhar a minha companheira da altura, a Dúlia Maia, para
responsável da Pentaedro. Afastado do PC de P (O Bolchevista), tal como
eu me afastara da UCRP, o Bento Vintém encontrava-se comigo quando
podíamos. E, mal dos meus pecados, desaconselhei-o a publicar os seus
poemas como durante algum tempo interessado nisso. De facto, a meus
olhos, à semelhança da poesia de alguns dos seus amigos italianos, a sua
poética era de baixa qualidade, ao contrário do que acontecia com o seu
pensamento, que eu aplaudia.
O Bento Vintém deixa muitos amigos em África, por
ter colaborado na edição, durante muitos e muitos anos, em muitos países
africanos, inclusive em Cabo Verde. Foi uma referência obrigatória em
Portugal e ficará, até ao último sopro de vida, uma das minhas grandes
amizades que não posso esquecer. Estou triste, estou de luto, com a sua
morte.
Nuno Rebocho
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