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Morrer sim, mas devagar…
No
triste jet set das letras
(melhor seria dizer trocaletras) da nossa praça, para além daqueles que
o estimaram e o souberam ler e ver havia dois grupos de fabianos sempre
de goela aberta para melhor devorarem (tentar devorar) o universo
conceptual que o norteara, de que se reivindicava e onde se inventava
mesmo velho e doente: o surrealismo.
Esses dois grupos, pequenos jogadores
das escritas e das pinturações, eram ou são: os que lhe exaltavam a
pintura para melhor lhe rebaixarem a poesia e os que lhe elevavam a
escrita para mais eficazmente lhe escaqueirarem o mundo plástico. Mas –
e o truque nefando consiste nisto – no fundo não era a ele que visavam,
tanto mais que a manobra já não colhia por ele lhes ter escapado para
outros olimpos mais específicos. O que essa gente tentava e tenta era
impedir que companheiros mais novos e com outras soluções de
continuidade não ficassem sem voz, tão submersos como nos tempos da
ditadura que ele detestava, como detestou todas as outras.
Essa gente, permitindo-lhe agora existir sem
peias depois de durante os princípios da sua vida o buscarem liquidar e
emudecer, queriam que ele se tornasse um refém dos que em Portugal põem
e dispõem através da mentira cultural que vê a escrita e a literatura
como aparelhagens para fazer “fins de meses” ou carreiras que eles
mesmos controlam…
Hoje como ontem, num país onde a realidade já
está mais que apodrecida, o surrealismo continua a perturbar porque não
é um álibi para mercadores de carne assassinada. Por isso o acatitavam,
fingindo que o amavam, visando transformá-lo numa espécie de faraó que
caucionasse melhor as tentativas de extinção de um pensamento que é
existência em todas as direcções e que ele sempre perfilhou.
Durou 83 anos. Fez o que pôde e como pôde
para exemplificar que as palavras que de facto contam passam pelos
continentes da liberdade, do amor humano e do espírito sem algemas.
E, apesar dos zoilos e dos medíocres
continuarem a tentar queimar o “castelo encantado”, que para eles tem a
forma de literatice ou de convenção imagética - seja neste país, seja
nos outros onde vivem e actuam muitos companheiros de sonho e de vigília
a busca da maravilha continua.
*
“ (…)Depois de
vir da Guiné, tive contactos durante alguns anos com vários dos autores
que haviam feito sair o número único da revista “Grifo”, a seguir apreendida pela polícia política (Pide). O chamado
Grupo do Monte Carlo.
No Verão de 77, creio que em Junho, aquando
duma viagem a Lisboa para que o meu filho mais velho, na altura um
miúdo, tivesse consulta num ortopedista, conheci então o Cesariny:
depois de termos ido aos alfarrabistas estava com o João ao pé da
estação do Rossio esperando o autocarro para a Ajuda e ele pedira-me
para ir experimentar as escadas rolantes. Enquanto esperava, ouvi uma
voz que me pareceu reconhecer, perguntando à ardina: ”Tem
um que traga notícias boas?”. Olhando em volta, eis que vi o Mário a
comprar o jornal ali mesmo ao pé.
Dirigi-me logo a ele, identifiquei-me e ele,
com bom humor, disse-me isto de imediato: “E
eu que pensava que como bom alentejano eras baixo e moreno e, afinal, és
alto e louro…”(cabelo castanho claro, na verdade). Na senda do bom
humor, respondi-lhe: “E eu pensava
que usavas chapelão e, afinal, usas boné!”. Espontaneamente demos um
abraço, ele fez uma festa na cabeça do João e convidou-nos logo a irmos
ao seu “atelier” tomar qualquer coisa e, principalmente, conversar. E
enquanto o meu filho, depois de ter comido umas bolachas - nós bebíamos
um chá - dormitava num dos sofás
e depois dormia a sono solto, conversámos a valer até lá pelas 4 da
manhã.
A seguir, num gesto muito usual nele (era um
grande utilizador de táxis…) levou-nos até perto da casa dos meus
parentes e, ao despedir-se, deu-me dois livros dele e uma “História do cerco de Lisboa” para o João.
Durante vários anos contactámos
regularmente, nomeadamente efectuando textos para colaborações aqui e lá
fora. Por 3 anos seguidos, num trecho das férias, eu e o João ficávamos
no “atelier” e, com ele como cicerone em regime de pensão completa
(almoçávamos e jantávamos e não nos deixava pagar fosse o que fosse…),
passeávamos pela cidade: íamos a museus, à Feira Popular, a ver o rio…
Recordo-me que uma vez o meu filho
ficara a olhar encantado para um desses brinquedos que se vendiam na
rua: um paraquedista de um palmo ou assim, que o homem embrulhava no
pequeno paraquedas de plástico e atirava ao ar e lá vinha ele descendo,
descendo…Não se atrevera a pedir que o comprasse. O Mário nada disse mas
notei que reparara. Uns dias depois recebemos em Portalegre uma
encomenda – e lá dentro vinha o boneco e, para mim, várias folhas de
fotocópias (tenho-as aqui) tiradas por ele: “Altaçor ou a Viagem em
paraquedas”, do Vicente Huidobro…! O Màrio tinha gestos destes,
simultaneamente discretos e sensíveis.
Quando eu uns anos depois sofri duma
negregada nefrite que me obrigou a ser operado em Santa Cruz, o Mário ia
esperar-me a Santa Apolónia, levava-me a almoçar ou a jantar (algumas
vezes na sua casa da Basílio Teles), acompanhava-me pacientemente às
consultas ou às análises e depois, para me acalentar nas dores
frequentemente bastante marcadas, íamos ao cinema, ao teatro, aos livros
de preço simpático na Feira Popular, pelo menos uma vez ao circo… E
abancávamos com confrades nos cafés. Eu ia a Lisboa geralmente de 15 em
quinze dias, se havia razão para isso semanalmente – nos fins de semana.
(…) Alguns dos companheiros recorrentes eram
o arqtº Mário de Oliveira, o Edgardo Xavier, o Relógio e,
principalmente, o Manuel Hermínio Monteiro, umas vezes levado por mim o
José do Carmo Francisco e, na última fase, também o Carlos Martins com
quem se organizou a exposição “Surrealismo & Arte Fantástica”(…).
Esta
surgiu da maneira mais espontânea e informal que possa pensar-se,
quase
que por acaso: tanto o Mário
como o Carlos partilhavam comigo o deslumbramento pelas coisas do
Lovecraft, do Georges du Maurier, do “Monk Lewis”, do Bulgakov, dos
antigos e modernos cultores do humor negro, do maravilhoso e do
fantástico e falávamos muito a seu propósito. Como nessa altura o Carlos
e a Ana estavam no Teatro de Xabregas, ela como atriz e ele como
encarregado do sector cultural, pensamos em artilhar a mostra. Eu
conhecia o Miranda Calha, que estava secretário de Estado do Desporto e
ele falou com o Coimbra Martins, ministro da Cultura de então.
Ultrapassadas algumas dificuldades que nessa época ocorriam - o Cesariny
por seu turno falara com a secretária do Mário Soares -, articulou-se a
exposição com o apoio do movimento Phases e de autores ingleses,
brasileiros, belgas, angolanos, moçambicanos, holandeses, etc.
Conseguimos
também, por intervenção do Mário Soares junto de certas embaixadas, a
participação de alguns autores do leste…
Os
portugueses (Mário Botas, Paula Rego, Eurico, Armanda Andrade, António
Quadros, Relógio, Garizo do Carmo, Areal, Júlio Reis Pereira, Escada,
Isabel Meyrelles, entre muitos mais) quando vivos eram contatados por
conhecimento próprio de uns e de outros ou disponibilizavam-se ao saber
da coisa. Se falecidos,
falava-se com os herdeiros.
A minha
contribuição de maior vulto - além de traduzir textos e publicar poemas
no catálogo-livro e expor dois quadros - foi descobrir um surrealista
ínsito, meu companheiro de adolescência. De sua profissão carpinteiro,
meio-surdo e com dificuldades na fala, mas muito atento e inteligente, o
Manuel Mourato nos dias em que tivera de ficar em repouso por haver
partido uma perna pintara um enorme quadro com as tintas da profissão:
O bosque encantado, título de
minha lavra e que foi uma das revelações da Mostra. O Mário ficara
entusiasmado, era a demonstração de que o surrealismo, no caso em
Portugal, para brotar não carecia de cultura livresca ou entonações
intelectuais.
Mal
recebida pela crítica au pair
(estava-se em plena época da reação pura e dura aos que não aceitassem
os ditames culturais dum certo
setor, o marxiano) a mostra foi depois levada para a Sociedade Nacional
de Belas Artes pela mão competente e esclarecida do crítico democrata
Rui Mário Gonçalves.
(…)
Vi sempre o Mário como um ser de poesia e singeleza. Certa gente referia
ser ele uma pessoa distante ou, por vezes e pelo contrário, agudamente
frontal e sem papas na língua, querendo com isso significar
provavelmente que não guardava a voz numa gaveta para lhes retorquir com
acentuações adversas se necessário. Quanto a este ponto, sim; vi-o
sempre como pessoa frontal mas nunca despejada, usava antes uma
elegância imaginativa até quando era preciso contrariar ou infirmar o
“interlocutor” oponente, digamos assim com suavidade. Era irónico, mas
sempre com uma feição imaginativa…Para mim foi sempre cordial,
extremamente fraterno e respeitador das minhas opiniões, que por vezes
buscava de facto inflectir mas sempre com urbanidade e humor.
E até
quando se referia a gente de que não gostava (ou francamente detestava)
- como um certo poetarrão e grande intelectual novelista e ensaísta
sempre ressentido com a colectividade e com os colegas, que a seu ver o
festejariam escassamente; ou outro, um pensador das pechas nacionais mas
que a seu ver nunca verdadeiramente acertara uma e quis ensinar Pessoa a
pensar (não digo os nomes mas creio que se infere quem eram os
cavalheiros) – tinha uma maneira de o fazer que mostrava como se pode
ser agudamente crítico sem descer a um nível rasteiro.(…).
(…) Muitos
confrades estrangeiros, alguns deles ainda meus contactos regulares,
chegaram-me por seu intermédio. Nomeadamente da América do Sul, da
França e Espanha e da Europa Central.
Um dia
fomos a casa de um confrade e amigo que ele me queria apresentar, pois
achava que faria sentido eu traduzir-lhe um livro. Chegámos e abriu-nos
a porta um senhor com um ar
muito delicado e com umas maneiras de grande navegador dos espaços
poéticos. O Mário disse-me o nome para que eu lhe apertasse a mão:
Emílio Adolpho Westphalen, o excelente poeta peruano que, nessa altura,
era adido cultural da embaixada do país dos Incas…
E
traduzi-lhe de facto vários poemas, muito embora por razões diversas não
tivesse saído em livro nessa altura. Já não tenho bem presente porquê,
mas aconteceu.
Mais tarde,
anos depois, as voltas da vida fizeram-nos, principalmente a mim, seguir
outro rumo sem que contudo nos perdêssemos de vista.(…)”.
*
(Estas
leves e breves, difusas evocações, foram retiradas e ligeiramente
adequadas, para melhor exposição, das entrevistas que através dos anos
me foram feitas por Floriano Martins, Jorge Perestrelo e Manuel
Caldeira)
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