REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 39 | junho-julho | 2013

 
 

 

 

 

NICOLAU SAIÃO

Mário, ele próprio e nós outros…

(Recordando Mário Cesariny)

Com uma imagem de Manuel Mourato

Nicolau Saião (Portugal). Poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico. Efectuou palestras e participou em mostras de Mail Art e exposições em diversos países. Livros: “Os objectos inquietantes”, “Flauta de Pan”, “Os olhares perdidos”, “Passagem de nível”, “O armário de Midas”, “Escrita e o seu contrário”. 
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
Página Principal  
Índice de Autores  
Série Anterior  
SÍTIOS ALIADOS  
TriploII - Blog do TriploV  
Apenas Livros Editora  
O Bule  
Jornal de Poesia  
Domador de Sonhos  
Agulha - Revista de Cultura  
Arte - Livros Editora  

Revista InComunidade (Porto)

 
 
 
 

Creio que, neste caso, fará sentido começar esta evocação pelo fim. Em jeito de flashback cinematográfico, uma vez que o protagonista – para empregarmos esta expressão adequada ou conveniente, como se preferir - era um esclarecido apreciador de cinema.

Foi pois isto que eu escrevi em fins de Novembro de dois mil e seis e aqui se insere, a abrir, antes de passarmos adiante.

 
 

Manuel Mourato: “O bosque encantado”(180 cm X 320 cm)

   
 

Morrer sim, mas devagar… 

    No triste jet set das letras (melhor seria dizer trocaletras) da nossa praça, para além daqueles que o estimaram e o souberam ler e ver havia dois grupos de fabianos sempre de goela aberta para melhor devorarem (tentar devorar) o universo conceptual que o norteara, de que se reivindicava e onde se inventava mesmo velho e doente: o surrealismo.

    Esses dois grupos, pequenos jogadores das escritas e das pinturações, eram ou são: os que lhe exaltavam a pintura para melhor lhe rebaixarem a poesia e os que lhe elevavam a escrita para mais eficazmente lhe escaqueirarem o mundo plástico. Mas – e o truque nefando consiste nisto – no fundo não era a ele que visavam, tanto mais que a manobra já não colhia por ele lhes ter escapado para outros olimpos mais específicos. O que essa gente tentava e tenta era impedir que companheiros mais novos e com outras soluções de continuidade não ficassem sem voz, tão submersos como nos tempos da ditadura que ele detestava, como detestou todas as outras.

   Essa gente, permitindo-lhe agora existir sem peias depois de durante os princípios da sua vida o buscarem liquidar e emudecer, queriam que ele se tornasse um refém dos que em Portugal põem e dispõem através da mentira cultural que vê a escrita e a literatura como aparelhagens para fazer “fins de meses” ou carreiras que eles mesmos controlam…

   Hoje como ontem, num país onde a realidade já está mais que apodrecida, o surrealismo continua a perturbar porque não é um álibi para mercadores de carne assassinada. Por isso o acatitavam, fingindo que o amavam, visando transformá-lo numa espécie de faraó que caucionasse melhor as tentativas de extinção de um pensamento que é existência em todas as direcções e que ele sempre perfilhou.

  Durou 83 anos. Fez o que pôde e como pôde para exemplificar que as palavras que de facto contam passam pelos continentes da liberdade, do amor humano e do espírito sem algemas.

   E, apesar dos zoilos e dos medíocres continuarem a tentar queimar o “castelo encantado”, que para eles tem a forma de literatice ou de convenção imagética - seja neste país, seja nos outros onde vivem e actuam muitos companheiros de sonho e de vigília  a busca da maravilha continua. 

                                                               *

    “ (…)Depois de vir da Guiné, tive contactos durante alguns anos com vários dos autores que haviam feito sair o número único da revista “Grifo”, a seguir apreendida pela polícia política (Pide). O chamado Grupo do Monte Carlo.

    No Verão de 77, creio que em Junho, aquando duma viagem a Lisboa para que o meu filho mais velho, na altura um miúdo, tivesse consulta num ortopedista, conheci então o Cesariny: depois de termos ido aos alfarrabistas estava com o João ao pé da estação do Rossio esperando o autocarro para a Ajuda e ele pedira-me para ir experimentar as escadas rolantes. Enquanto esperava, ouvi uma voz que me pareceu reconhecer, perguntando à ardina: ”Tem um que traga notícias boas?”. Olhando em volta, eis que vi o Mário a comprar o jornal ali mesmo ao pé.

   Dirigi-me logo a ele, identifiquei-me e ele, com bom humor, disse-me isto de imediato: “E eu que pensava que como bom alentejano eras baixo e moreno e, afinal, és alto e louro…”(cabelo castanho claro, na verdade). Na senda do bom humor, respondi-lhe: “E eu pensava que usavas chapelão e, afinal, usas boné!”. Espontaneamente demos um abraço, ele fez uma festa na cabeça do João e convidou-nos logo a irmos ao seu “atelier” tomar qualquer coisa e, principalmente, conversar. E enquanto o meu filho, depois de ter comido umas bolachas - nós bebíamos um chá -  dormitava num dos sofás e depois dormia a sono solto, conversámos a valer até lá pelas 4 da manhã.

   A seguir, num gesto muito usual nele (era um grande utilizador de táxis…) levou-nos até perto da casa dos meus parentes e, ao despedir-se, deu-me dois livros dele e uma “História do cerco de Lisboa” para o João.

   Durante vários anos contactámos regularmente, nomeadamente efectuando textos para colaborações aqui e lá fora. Por 3 anos seguidos, num trecho das férias, eu e o João ficávamos no “atelier” e, com ele como cicerone em regime de pensão completa (almoçávamos e jantávamos e não nos deixava pagar fosse o que fosse…), passeávamos pela cidade: íamos a museus, à Feira Popular, a ver o rio…

  Recordo-me que uma vez o meu filho ficara a olhar encantado para um desses brinquedos que se vendiam na rua: um paraquedista de um palmo ou assim, que o homem embrulhava no pequeno paraquedas de plástico e atirava ao ar e lá vinha ele descendo, descendo…Não se atrevera a pedir que o comprasse. O Mário nada disse mas notei que reparara. Uns dias depois recebemos em Portalegre uma encomenda – e lá dentro vinha o boneco e, para mim, várias folhas de fotocópias (tenho-as aqui) tiradas por ele: “Altaçor ou a Viagem em paraquedas”, do Vicente Huidobro…! O Màrio tinha gestos destes, simultaneamente discretos e sensíveis.

  Quando eu uns anos depois sofri duma negregada nefrite que me obrigou a ser operado em Santa Cruz, o Mário ia esperar-me a Santa Apolónia, levava-me a almoçar ou a jantar (algumas vezes na sua casa da Basílio Teles), acompanhava-me pacientemente às consultas ou às análises e depois, para me acalentar nas dores frequentemente bastante marcadas, íamos ao cinema, ao teatro, aos livros de preço simpático na Feira Popular, pelo menos uma vez ao circo… E abancávamos com confrades nos cafés. Eu ia a Lisboa geralmente de 15 em quinze dias, se havia razão para isso semanalmente – nos fins de semana. (…) Alguns dos companheiros recorrentes eram o arqtº Mário de Oliveira, o Edgardo Xavier, o Relógio e, principalmente, o Manuel Hermínio Monteiro, umas vezes levado por mim o José do Carmo Francisco e, na última fase, também o Carlos Martins com quem se organizou a exposição “Surrealismo & Arte Fantástica”(…). Esta surgiu da maneira mais espontânea e informal que possa pensar-se, quase que  por acaso: tanto o Mário como o Carlos partilhavam comigo o deslumbramento pelas coisas do Lovecraft, do Georges du Maurier, do “Monk Lewis”, do Bulgakov, dos antigos e modernos cultores do humor negro, do maravilhoso e do fantástico e falávamos muito a seu propósito. Como nessa altura o Carlos e a Ana estavam no Teatro de Xabregas, ela como atriz e ele como encarregado do sector cultural, pensamos em artilhar a mostra. Eu conhecia o Miranda Calha, que estava secretário de Estado do Desporto e ele falou com o Coimbra Martins, ministro da Cultura de então. Ultrapassadas algumas dificuldades que nessa época ocorriam - o Cesariny por seu turno falara com a secretária do Mário Soares -, articulou-se a exposição com o apoio do movimento Phases e de autores ingleses, brasileiros, belgas, angolanos, moçambicanos, holandeses, etc.

  Conseguimos também, por intervenção do Mário Soares junto de certas embaixadas, a participação de alguns autores do leste…

  Os portugueses (Mário Botas, Paula Rego, Eurico, Armanda Andrade, António Quadros, Relógio, Garizo do Carmo, Areal, Júlio Reis Pereira, Escada, Isabel Meyrelles, entre muitos mais) quando vivos eram contatados por conhecimento próprio de uns e de outros ou disponibilizavam-se ao saber da coisa. Se falecidos, falava-se com os herdeiros.

  A minha contribuição de maior vulto - além de traduzir textos e publicar poemas no catálogo-livro e expor dois quadros - foi descobrir um surrealista ínsito, meu companheiro de adolescência. De sua profissão carpinteiro, meio-surdo e com dificuldades na fala, mas muito atento e inteligente, o Manuel Mourato nos dias em que tivera de ficar em repouso por haver partido uma perna pintara um enorme quadro com as tintas da profissão: O bosque encantado, título de minha lavra e que foi uma das revelações da Mostra. O Mário ficara entusiasmado, era a demonstração de que o surrealismo, no caso em Portugal, para brotar não carecia de cultura livresca ou entonações intelectuais.

  Mal recebida pela crítica au pair (estava-se em plena época da reação pura e dura aos que não aceitassem os ditames culturais dum certo setor, o marxiano) a mostra foi depois levada para a Sociedade Nacional de Belas Artes pela mão competente e esclarecida do crítico democrata Rui Mário Gonçalves.

  (…) Vi sempre o Mário como um ser de poesia e singeleza. Certa gente referia ser ele uma pessoa distante ou, por vezes e pelo contrário, agudamente frontal e sem papas na língua, querendo com isso significar provavelmente que não guardava a voz numa gaveta para lhes retorquir com acentuações adversas se necessário. Quanto a este ponto, sim; vi-o sempre como pessoa frontal mas nunca despejada, usava antes uma elegância imaginativa até quando era preciso contrariar ou infirmar o “interlocutor” oponente, digamos assim com suavidade. Era irónico, mas sempre com uma feição imaginativa…Para mim foi sempre cordial, extremamente fraterno e respeitador das minhas opiniões, que por vezes buscava de facto inflectir mas sempre com urbanidade e humor.

  E até quando se referia a gente de que não gostava (ou francamente detestava) - como um certo poetarrão e grande intelectual novelista e ensaísta sempre ressentido com a colectividade e com os colegas, que a seu ver o festejariam escassamente; ou outro, um pensador das pechas nacionais mas que a seu ver nunca verdadeiramente acertara uma e quis ensinar Pessoa a pensar (não digo os nomes mas creio que se infere quem eram os cavalheiros) – tinha uma maneira de o fazer que mostrava como se pode ser agudamente crítico sem descer a um nível rasteiro.(…). 

  (…) Muitos confrades estrangeiros, alguns deles ainda meus contactos regulares, chegaram-me por seu intermédio. Nomeadamente da América do Sul, da França e Espanha e da Europa Central.

   Um dia fomos a casa de um confrade e amigo que ele me queria apresentar, pois achava que faria sentido eu traduzir-lhe um livro. Chegámos e abriu-nos a porta um senhor com um  ar muito delicado e com umas maneiras de grande navegador dos espaços poéticos. O Mário disse-me o nome para que eu lhe apertasse a mão: Emílio Adolpho Westphalen, o excelente poeta peruano que, nessa altura, era adido cultural da embaixada do país dos Incas…

   E traduzi-lhe de facto vários poemas, muito embora por razões diversas não tivesse saído em livro nessa altura. Já não tenho bem presente porquê, mas aconteceu.  

  Mais tarde, anos depois, as voltas da vida fizeram-nos, principalmente a mim, seguir outro rumo sem que contudo nos perdêssemos de vista.(…)”.

*

 

(Estas leves e breves, difusas evocações, foram retiradas e ligeiramente adequadas, para melhor exposição, das entrevistas que através dos anos me foram feitas por Floriano Martins, Jorge Perestrelo e Manuel Caldeira)

                                                                                             ns

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL