REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 39 | junho-julho | 2013

 
 

 

 

 

MARÍLIA LOPES

Memoria africana
e outros poemas

Marília Miranda Lopes (Portugal, 1969). Poetisa, crítica literária, dramaturga e escritorade canções, formou-se em Línguas e Literaturas Modernas pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. É professora de Língua Portuguesa do Ensino Secundário e formadora nas áreas das Didácticas Específicas e das Oficinas de Escrita – Poesia e Teatro.

 

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Memoria africana

Memoria de los fuertes brazos de mi nana
corriendo en el aeropuerto de los afectos.

Dónde estás, Maimuna? Te veo todavía
inundando mis juegos con la pureza del agua

Agua que limpiaba
agua que se llevaba la tristeza de mis ojos
y nosotras dos, el tiempo por completo ahí
chapoteando

Fue tiempo de gerundios. lento y tierno. sin las prisas actuales

Cantábamos fuera de la casa como hijas
de un ritmo vibrante de tambores

Todavía los oigo. la piel se eriza – fría, tu ausencia

Maimuna, vivirás para siempre mientras la música nos lleve
por sanzalas, con los pies descalzos – me subes a tu regazo
El sol es tu sonrisa, la luz.

Como diosa de senos plenos
amamantas mi sed de claridad

Temo no encontrarte nunca más
¿Reconocerías a la persona que hoy hay en mí?

¿Mirarías dentro de mis cielos y verías el brillo de tu presencia en la nostalgia
                                                                      [plúmbea que dejaste?

 

Maimuna, estos días de peregrinar la vida nos vuelve breves

Y la poesia vagabundos

Eres mi memoria más lejana, memoria africana

reflejada por completo en el mar.

 

Versão em espanhol de Manuel Calleja. In Antologia de poesia hipano-marroquina

  

 

Sem garantia 

Sem garantia está qualquer amor

Não se consertam músculos cardíacos nem objectos interiores danificados

A força de muito padecer por causa de melancolia, ansiedade, tristeza

não valida qualquer garantia. que se desenganem

os códigos de barras em piercing nos seios ou nos bíceps

Que se desenganem as plumas dos pavões e as cores exuberantes dos machos na sua corte às fêmeas.

 

Aviso: não há garantia!

 

Fora de prazo fica quando

a ardência deixa de expandir a loucura que não há, aparentemente,

em nenhum olhar

 

Fora de prazo fica quando

há cansaço acre em vez de doçura

imundos desejos, em vez de sede

 

Sem garantia está o amor que fica

sentado num banco de jardim

num aeroporto, ou numa estação de comboios

a ver os que se vão

 

Às vezes é tudo uma questão de dizer adeus ou saudade

e pensar que há outras palavras que também

não nos dão, de qualquer forma, nenhum certificado

 

Hoje, o aviso na porta. será melhor irmos com Régio.

 (inédito, 2013)

  

 

Fumo 

Esquece-te de mim

amor que eu quero

só na neblina

só no desfeito

silêncio da sílaba

 

Esquece-te de mim

perde de vista

o meu fantasma

na estação Desejo

 

Esquece-te das mãos, dos gestos

do rosto que nos beijos

te levou sem nada

 

Esquece-te do nome, da figura

Esquece-te de quem fui

não sendo em ti

mais do que pó

 

Assim, na carruagem, a combustão

golpeará o fim do trajecto

e no céu

o fumo intenso.

(inédito, 2013) 

 

Vai, rapaz!  

(ao meu filho João André)

Uma escada

à altura do teu tamanho

para alcançares a falésia

 

Desapareceram fumo e abelhas do teu medo. tens uma baía no rosto

 

Vai, rapaz, saúda a corda

Pé ante pé, descalço

sob a ameaça das pedras

 

Os dedos cortados, os erros naturais. talvez queiras conhecer

cada degrau com carapaça de escaravelho

 

No fim o suco da subida

adoça o som agreste da cascata 

 

Aproxime-se o fogo. Fumiguem-se insectos. a água cai na tua cabeça

livre de incêndios

 

Vai, rapaz!

Recolhe-se o mel

com muitas picadas.              

(inédito, 2013) 

 

Espera

A espera é um estado messiânico. não espero

encobertos sem volta

já que os teus olhos

não se esgotam nas estações

nem os meus ficam para sempre fechados

a receber luz. já não me importa

o silêncio ou o ruído

 

Quero ficar entre as asas

daquele pássaro que me conhece do quintal

Ele é a música que raramente escutamos

quando nos apercebemos do diamante que é o dia vulgar

sem grandes acontecimentos, sem grandes inquietações

 

Quando chove, abrigo-me nos seus olhos sobreviventes

e escrevo. 

 (inédito, 2013)

 

Dia da Poesia 

À primeira hora já muitos séculos passaram
e tu continuas a curva, até onde desconheço:
cavalo em fogo, ave sangrando, na terra, no espaço
entre os dedos, entre as esferas, entre as margens
que nunca habito por inteiro

Vou contigo num errar contínuo. principio da raiz

Revolvem, sem sentido, os versos
que não dizem

Depois a aurora esclarece:
o acontecimento
sem palavras, nem diseurs

Inaugura-se o dia como se houvesse um fenómeno
a romper mesmo
sem cordas vocais.  

 (inédito, 2013) 

 

Válvula 

Era como se tivesse mergulhado

numa calda indolor:

 

A terra sumia-se na lonjura. os átomos, em reunião

cancelavam as vozes e toda a magnitude explodia

 

O grito aéreo ecoava na tontura sem aflição:

- Já não tenho oxigénio

 

Como havia de accionar a válvula

libertária?

 

Ainda não seria a minha Hora. teria de voltar a estremecer com ruídos

 

Maldita ensurdecedora campainha que só eu não ouvia. entretanto, o sangue

fora  estancado.

As mulheres em volta, parturientes, cobriam-me de beijos. 

(inédito, 2013) 

 

Ponto de fuga 

Às vezes perdes-te de mim

evitas o que transborda. invades-me

com jardins que respirámos. afagas-me o sorriso, ó ternura

que me queres a mais ausente

 

Uma tentativa: deixar a razão

 

O meu rosto - vive-lo na tua gota de gelo:

Nervuras

visitações na estação brilhante

 

Rasga tudo. mente. desenterra a ferida soterrada no chão

de onde me rompe a fragilidade

que também espera

 

Dormem as raízes. viajo

à velocidade do amor

 

Na carruagem, a melodia de um lugar vazio: a tua mão

na minha.

(inédito, 2013) 

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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