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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
nova série | número 39 |
junho-julho | 2013
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MARIA ESTELA GUEDES
A ironia no texto científico
constantemente referida a
SØren
Kierkegaard*
Com uma tradução de Maria Alice Costa
e fotos de Ana Luísa Janeira
Foto: Ed. Guimarães |
Maria Estela Guedes. Poeta, ficcionista,
cronista, dramaturga, historiadora da História Natural e da
Maçonaria Florestal Carbonária. Tem umas dezenas de títulos
publicados. |
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EDITOR |
TRIPLOV |
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ISSN 2182-147X |
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Contacto: revista@triplov.com |
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Dir. Maria Estela Guedes |
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Situemo-nos |
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Retomo trabalhos antigos sobre textos
científicos, porque algumas novidades me puseram de novo os
cabelos em pé. E temos pela
primeira vez publicada, que saiba, a tradução da inscrição na pedra
de cobre nativo - comece por ver as imagens. Fá-la uma excelente latinista, a quem devo grande parte
do meu conhecimento da língua, Maria Alice Costa.
Como já informei, os naturalistas que escreveram sobre o objeto só
citaram Vandelli ou transcreveram a inscrição, sempre com erros, mas
nunca a traduziram. Porquê, ignoro. Duvido que traduzissem «imperantibus»
como Orlins Santana queria que eu traduzisse (1), se bem que a cópia do
barão de Eschwege levante
tanta perplexidade histórica que o seu tradutor se vê na necessidade de garantir que em 1682 não
reinavam Maria I e Pedro II, etc., para além da inevitável correção das
suas 1616 libras (2). Em Eschwege, apesar de alemão, só um número foi
bem copiado, o "I"
de D. Maria.
No trabalho «O gaio método», escrito com
Nuno Marques Peiriço, apresentamos um sistema de gralhas sobre a pedra
de cobre nativo constituído com mais de uma dezena de textos (3). Sugiro
aos cientistas e historiadores da ciência que leiam o ensaio,
pois ficarão com a ideia de como o texto surrealista... Perdão, queria
dizer "científico"... Esqueci-me, com o lapsus linguae, do que
ia escrever, mas aproveito para informar que o caso da Chioglossa
lusitanica, nos mereceu, a Nuno Marques Peiriço
e a mim, a publicação de um livro sobre a famosa salamandra preta na editora Contraponto, de Luiz
Pacheco, que são, editora e seu diretor,
duas referências fundamentais na História dos surrealistas portugueses
(4). O subtítulo da obra é «Carbonários, Operação Salamandra», por eu
estar piamente convencida, nessa altura, de que as subversões faziam
parte da luta carbonária para a implantação da república. Interpretação
talvez errada, mas fundada em algo com valor científico, a deteção de um
padrão nas gralhas.
Até mais de meados do século XX, os cientistas
sabiam latim. Em Portugal, só a partir da Reforma da Universidade o
português passou a ser usado nos textos científicos, porém o latim
resistiu ainda, sobretudo na descrição de novas espécies, por continuar
a ser língua
internacional da ciência. Talvez a primeira ironia seja essa: para quê
imprimir em latim, já em finais do século XVIII, o que devia ser singela etiqueta de um objeto
museológico? Mais do que isso, porém, o que me espanta é a etiqueta
ter sido gravada na própria pedra de cobre, e esta ter sido subtraída a
pesagens, pela forma como foi colada ou enterrada na peanha. Com tanta pompa exposta, é um símbolo da monarquia com ela
corrida à pedrada, mais merecendo então o nome de "epitáfio".
São às centenas as piadas de ortografia, de
geografia, as aberrações de anatomia e outros casos de "gralhas". O
assunto é grave, de resto a ironia é muito séria, como afirma
Kierkegaard. Recordo-me de um dia, trabalhando com o herpetologista
E.G. Crespo, lhe ter posto o problema das dimensões atribuídas por Gray
à espécie Macroscincus coctei, os lagartos gigantes de Cabo
Verde, que terão ou teriam uns sessenta centímetros de comprimento. Em
polegadas, Gray, diretor do British Museum, atribuiu-lhes cerca de metro
e meio (5). E.G. Crespo, já perplexo com o metro e meio, ficou então
siderado quando lhe gritei que os problemas que lhe estava a levantar
eram gozações. É perante estas situações que Kierkegaard declara que a
ironia causa terror.
Foi em estado de pânico que há uns quinze
anos fui bater à porta do Grémio Lusitano, sede do Grande Oriente de
Lisboa, por coincidência em tarde de sessão maçónica. Claro que o cobridor não me deixou
entrar, o meu pedido de socorro fez-se pela frincha da porta entreaberta.
Exposto o caso, em termos de interrogação sobre possível chantagem
maçónica exercida sobre um naturalista, nenhuma ajuda
científica obtive, porém recebi a
mais sábia orientação, que ainda agora me deixa a tremer: "Minha senhora, crimes
em toda a parte são o
pão-nosso de cada dia!".
O leitor interessado tem hoje o que há vinte anos
não existia: Google,
Wikipédia, livros e artigos digitalizados na Internet. Está tudo publicado no
Triplov e alhures, basta pesquisar. Anoto entretanto os principais casos
investigados, todos eles recamados com as lantejoulas da ironia: o naturalista Francisco Newton (6), as espécies
Chioglossa lusitanica, Macroscincus coctei e Dodó (7), e a
pedra de cobre nativo (8). Do Dodó não resisto a lembrar um episódio:
entre as relíquias da ave, teria existido, antes de devorada por um
fatal incêndio, uma pata empalhada no gabinete de um alquimista que não
é famoso por empalhar uma pata de todos os exemplares estudados,
minhocas e cobras subentendidos,
sim por
sido co-fundador da Royal Society of London e altíssimo grau 33 da Maçonaria inglesa -
Elias Ashmole.
Também a literatura sobre os moluscos terrestres e dulciaquícolas de
Portugal fornece uma série de artigos cuja
introdução se fará no fim e uma curiosa geografia de Portugal capaz
de desafiar os GPSs mais sofisticados, aliás, corrijo:
capaz de desafiar os conhecimentos de qualquer camponês que nunca viu o
mar (9).
Ora, a pesquisa tem componentes às vezes tão
ferozes que impedem a entrega e mesmo a defesa de teses de doutoramento, porque falta
sempre algum texto para ler. Mais uma vez, não descobri uma memória de
Vandelli, depositada na Torre do Tombo, que considero, até prova em
contrário, e apesar de exegese diversa da minha, um 4º texto dele
com a descrição da pedra de cobre nativo (há mais, mas fiquemos
por estes 3 ou 4). O texto que lhe atribuo, contra a
interpretação de Orlins Santana (1), que defende a tese de o cobre
ter sido gravado em França (comunicação pessoal), é a inscrição em latim na própria massa
cuprífera. Em que me fundamento para tal atribuição de autoria? A inscrição está encimada
pelo brasão de armas de Portugal, donde só uma instituição monárquica o podia
cunhar.
Provavelmente, brasão e inscrição foram gravados na Casa da
Moeda, em Lisboa. De outra parte, o «p.» da penúltima linha significa
que a pedra, erigida à categoria de objeto museológico, tem um local
específico de depósito, o museu do Príncipe do Brasil - D. João (VI), após
a morte de D. José, seu irmão, que por sinal era maçon, como Domingos
Vandelli, e para quem tinha sido fundado o museu, de seu nome Real Gabinete da Ajuda. Se a inscrição tivesse sido
cunhada no Brasil ou em
França, como saberiam os seus autores que a gigantesca amostra de uma
apetecível riqueza (não existe cobre na região da Vila de
Cachoeira, Bahia, e esta é a principal indução em erro) iria parar ao museu e não ao
caixote do lixo de D. Maria I e D. Pedro III? Se a pedrada consistiu em
despertar a cobiça da Coroa, não era o Real Gabinete da Ajuda o
destinatário primeiro da prendinha. A pedra de cobre foi enviada ao ministro
Martinho de Mello e Castro, como afirma Vandelli. Martinho de Mello e Castro é que o mandou examinar. Em face dos resultados
da análise química, destinou-o ao museu, portanto
foi o seu diretor, Domingos Vandelli, quem o fez enterrar no
pedestal e abrilhantar com o epitáfio cujo texto manuscreveu, com
aquelas bestiais 2666
libras, que depois mudam no segundo e terceiro textos para 2616 e
2619 arráteis. Na sequência, com mais variantes ainda,
segundo a qualidade da ironia dos autores que se entretiveram a transcrever
e a citar a peça literária.
Recapitulando: há mais de dez anos que procuro o
4º texto de Vandelli e ainda não o consegui encontrar. Parece que a
minha referência bibliográfica está errada (10). Os outros três são a
inscrição, o texto das Memórias da Academia (11) e o extrato
publicado nos Anais da Biblioteca Nacional (12), que me interrogo
agora se não será parte da peça inteira que busco, e mais pergunto: porque é
que o documento não foi publicado na íntegra? Subtrairam-lhe um bocado a
meio, de tal modo que se instaura um hiato gramatical
entre duas frases:
"longe 2 legoas da Bahia
............................. differentes paizes da Europa e da Asia".
E só agora, mais de vinte anos volvidos sobre o
primeiro artigo que dediquei aos lagartos gigantes de Cabo Verde (Macroscincus
coctei), tive acesso, via Internet, ao jornal O Patriota, onde,
segundo António Carreira, no seu livro
«Ensaio e Memórias Económicas sobre as Ilhas de Cabo Verde (Século XVIII) por João da Silva Feijó»
(13), vem uma nota a garantir que o mesmo João da Silva Feijó, no
jornal O Patriota, descreve os
lagartos desta maneira: “macroscineus” era grande, grosso, mole, lesmático, tinha
pele coberta de escamas de peixe, que servia para fazer sapatos, e o
animal vivia só de ervas. Passemos adiante da suposta gralha
«macroscineus», uma entre dezenas de variantes adúlteras do nome, em textos de
cientistas que se têm dedicado ao estudo da célebre espécie, desde o
século XVIII. Fiquemos apenas com a imagem de Reino Animal Completo que se destaca da descrição: além de répteis, os lagartos
eram moluscos e peixes. Se lhes acrescentarmos o atlas,
primeira vértebra cervical e também a primeira das 23 vértebras da
coluna vertebral, na anatomia humana, que lhe atribui Hofstteter, resta concluir que só lhes faltavam
os cornos para serem, como a pedra de cobre nativo, a Besta do
Apocalipse.
Escrevo com uma ironia tão furiosa que não pode
ser considerada figura de retórica. E não é por causa das gracinhas de
tanta luminária nacional e estrangeira sobre os lagartos, sim por
Carreira atribuir a Feijó o que este não escreveu. Ao fim de tantos
anos, chego ao jornal publicado no Rio de Janeiro, e o que está lá, o
que está n'O Patriota? O mesmíssimo ensaio sobre Cabo Verde, publicado nas
Memórias da Academia, a que dediquei um dos meus primeiros ensaios
sobre estes assuntos, publicado na Asclépio (14), e Carreira
estuda no seu livro, esse cujo título já anotei. Revi os 18 números do
jornal, podia Feijó ter publicado
mais, além do «Ensaio e memórias económicas sobre as ilhas
de Cabo Verde», no nº 3 (15) de 1814, onde de resto o título muda para
«Ensaio político sobre as ilhas de Cabo Verde para servir de plano à
história filosófica das mesmas». Dele há ainda umas "Memórias sobre a
Capitania do Ceará», e a reedição da «Memória sobre a última erupção do
Pico da Ilha do Fogo» - nº 5 (11), de 1813 -, sobre a qual publiquei um
ensaio em co-autoria com Luís Arruda. Nada de lagartos moles e
lesmáticos com pele de peixe boa para fazer sapatos, decerto concebidos para andar
sobre as águas. De resto, eu já devia ter os olhos mais abertos para
estes atos de terrorismo: nunca Feijó poderia ter chamado «macroscineus» aos
lagartos, porque a espécie, antes de Bocage, em 1873, a
reclassificar como Macroscincus coctei (Duméril & Bibron,
1839), tinha outros nomes. Antes disso, Feijó, uma vez que a espécie era
nova, só podia escrever "lagartos".
Por causa destas frustrações, que me
despertam vontade de desancar todos os naturalistas, volto ao assunto, agora
"armada como
exército disposto em ordem de batalha" com a terrífica bomba de SØren
Kierkegaard, «O conceito de ironia constantemente referido a
Sócrates». "Eu só sei que nada sei", lamentava-se Sócrates. A partir desta primeira ironia, Kierkegaard
desenvolve o seu ensaio e eu o meu.
E o leitor pergunta: Afinal esses
cientistas estão a rir de quê? Nos trabalhos indicados na bibliografia já
deixei várias hipóteses de explicação, consoante os casos. São hipóteses,
logo falíveis. Explicar isso equivale a dar atenção à physis, aos
objetos da natureza. Ora uma das primeiras granadas de Kierkegaard é a
de afirmar que a ironia é comprazimento do sujeito irónico no que diz, nele
mesmo que o diz, e na reação de quem ouve, não tendo valor assim o
objeto sobre o qual se exerce o seu sentido de humor. Então o que é que
tem valor para a ciência? O que tem
valor para a ciência fundamental é a natureza, as coisas naturais, aquelas que
teoricamente estão na Terra sem nunca terem sofrido manipulação
humana. Quando o cientista, com a ironia, põe de parte o seu objeto de
estudo, para se ocupar nele como sujeito, na linguagem que usa e na reação do
interlocutor, quer dizer que aquilo a que se refere, a coisa
teoricamente natural ou nativa, não tem valor científico. Ocupemo-nos portanto das
jóias e não do pechisbeque.
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INSCRIÇÃO NA PEDRA DE COBRE NATIVO
Traduzida por Maria Alice Costa |
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NO REINADO DE MARIA I E PEDRO III
COBRE NATIVO MISTURADO COM MINÉRIO DE
FERRO
PESO 2666 LIBRAS
ENCONTRADO NA CAPITANIA DA BAHIA
JUNTO DA
CIDADE DE CACHOEIRA
E EXPOSTO
NO MUSEU DO PRÍNCIPE DO BRASIL
1782
Nota da tradutora
A libra latina pesa 333 gramas.
Parece é que a onça tem valores diferentes conforme o sistema em que é
utilizada. Disso é que já entendo pouco ou quase nada! Mesmo no valor da
libra latina encontro discrepâncias, pois num livro encontro 327 gramas
correspondendo a onça à duodécima parte da libra. No dicionário de latim
diz que a libra tem 333 gramas e que tem 12 onças.
Agradecimento meu e mais
Alice, obrigada do coração por teres traduzido.
Quanto às observações, com o
333 abres mais um campo de trabalho, pois esse número é o
mesmo que os 33 graus da Maçonaria. O que pões
em causa é o sistema métrico decimal, que em Portugal só foi legalmente
adotado na segunda metade do século XIX. Até lá, as canadas, os almudes,
as libras, as polegadas e as onças variavam de valor consoante o país, a
província e o ladrão. Alguém que queira dedicar-se ao estudo do sistema
decimal, pode ver por que motivo nos dicionários, enciclopédias, nos
textos científicos e mesmo na sinalética das estradas, há tanto 33, ou
333 gramas, no caso vertente, quando a Lei garante que a(s) libra(s)
valem menos que metade de 666.
Estela
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Foto: Ana Luísa Janeira |
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Da importância do 666 no
texto científico |
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Como é natural, quando SØren Kierkegaard define o
conceito de ironia - afirmações contrárias ao que pensamos -, o problema
que levanta logo é o da verdade. Não é verdade que a pedra de cobre pese
2666, 2616, 2619, 1666 nem 2000 libras ou arráteis, podendo algum destes pesos
ser verdadeiro, mas não todos eles, até porque a pedra, a ter sido
pesada, só o foi
antes de enterrada no trono. A partir daí, trata-se de transcrições e citações
irónicas. Não é verdade que os Macroscincus coctei tivessem
metro e meio de comprimento, porque,
lagartos com metro e meio, só se forem crocodilos,
dragões de Komodo ou a Besta do Apocalipse. E o que é a Besta do
Apocalipse? Como o nome diz, é uma dupla figura que aparece no
Apocalipse de S. João, híbrida como a imagem que Carreira dá dos
lagartos: a primeira ascende do mar, tem dez cornos e sete
cabeças, parece-se com um leopardo, tem boca de leão e patas de urso. A
segunda Besta ascende da terra, tem dois chifres como o cordeiro mas
fala como um dragão. Esta é enganadora, ludibria os habitantes da terra,
é a própria encarnação da ironia:
«Aqui é preciso sabedoria: o que é inteligente decifre o número da
Besta, que é um número de homem; o seu número é seiscentos e sessenta e
seis.» (Ap.13).
O 666 (que em certos textos tem a variante 616,
como nos 2616
arráteis
de Vandelli) assinala aquilo que
é humano, portanto o que não é natural ou nativo. Mas que tipo de
cientista, ainda por cima em plena Época das Luzes, e após ela, provoca a
irrupção dos símbolos em textos racionalistas? Foi para
responder a estas questões que derivei para a Maçonaria, e mais
precisamente para a Maçonaria Florestal Carbonária, mas bati com a
cabeça noutra parede: se a ciência ortodoxa confessa a sua ignorância e
recua com pavor da irrupção do literário na sua linguagem, a Maçonaria ignora o que
se passa nos textos científicos, e alguns maçons até são religiosamente
criacionistas. Por isso cumpre responder a José Manuel Anes, que uma vez
me perguntou, num colóquio, se eu defendia a teoria da conspiração. Não,
não há aqui conspiração nenhuma, o que se passa é que cada um usa as
ferramentas que tem à mão para falar em situação de censura: os maçons
recorrem aos símbolos, esse é o seu meio, mas nem todos os cientistas
são maçons. Os que o não são nem devem reparar na categoria mística da
ironia. Por isso respondem com aberrações geográficas ou anatómicas de
caráter profano. O que une uns e outros é um mesmo discurso irónico,
que cria uma clique e, lembremos, traz à cena a questão da verdade.
Acontece que a ciência não se ocupa da verdade,
não significando isto que possa mentir, ela ocupa-se da
explicação dos fenómenos naturais, por isso deixemos este aspeto para nos centrarmos no que ele implica: o que por aqui corre é a
relação de intersubjetividade que a ironia cria entre os participantes
do jogo. A relação estabelece-se assim connosco, como leitores estranhos
à comunidade científica ocupada neles, e o resultado é o pânico, a
estupefação, o terror, e também a humilhação, porque o irónico, como diz
Kierkegaard, coloca-se numa posição de superioridade, ele é aquele que
sabe. Os irónicos
constituem-se numa aristocracia, continua o filósofo dinamarquês, eles assumem-se como
élite, tal como os diplomatas, cujo discurso se exprime na máxima: "mundus vult decipi,
decipiatur ergo (o mundo quer ser enganado, logo, que seja enganado)". O sujeito
estranho ao clube dos sapientes, neste caso
eu, não só não quer ser enganado como crê que nada de mais
revoltante existe do que, estando de boa-fé, apanhar com uma punhalada nas
costas. Há sofrimentos que não encolerizam, agora o ludíbrio, o ataque
ao estado de inocência, equivale a um estupro.
Porém os que usam a ironia também não são felizes, também eles vivem em estado
de cólera e terror, porque a Festa do Burro, ou o Carnaval instaurado pela
violação dos direitos do sujeito que ela implica, é isso mesmo: transgressão das normas científicas, que
exigem, logo à partida, objetividade e não subjetividade, racionalidade
e não irracionalidade do símbolo religioso. O discurso irónico
nasce da paixão e não da positividade matemática. As normas exigem
seriedade e não o riso que a ironia pode desencadear. Em suma, os
sentimentos não fazem parte do discurso científico normativo. De outra
parte, o irónico, ao mentir, fica enredado numa teia de dissimulação de que só
consegue sair
com mais mentiras e mentiras cada vez maiores. Assim o confirma o
povo com o ditado de que, ao conto, o sujeito irónico acrescenta mais um
ponto.
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Foto: Ana Luísa Janeira |
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«A ironia é uma determinação da subjetividade»
(Kierkegaard) |
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Por subjetividade entenda-o o que é próprio do Eu, o sujeito, a pessoa
que constrói a sua própria individualidade tomando consciência de si
mesma. Onde fica a natureza, como aquela parte de nós que distinguimos
como diferente de nós, por ser o lugar onde vivemos? Em parte nenhuma,
já o dissemos. O cientista, ao entrar no terreno da ironia, sai do seu
mundo de pensamento sobre a natureza, para o mundo do pensamento sobre o
pensamento e sobre a expressão desse pensamento, a linguagem. Neste
ponto, o terreno é de areias movediças para o cientista, porque já não
tem os pés na terra, sim na literatura e na estética. Por todos estes
motivos, acrescidos do romantismo e sentimentalidade inerente, diz
Kierkegaard que Hegel abominava a ironia. Num ponto exagerado da
subjetividade, realmente o que encontramos é uma literatura a puxar pela
lágrima no olho. Numa perspetiva estética, de equilíbrio e contenção do
sujeito falante, ela causa aversão. Mas não são os amores contrariados que fazem
chorar os naturalistas ou nos convidam à leitura de lenço de assoar, sim
o seu desespero, a sua impotência para sair do jogo irónico. Uma fresta
apenas abro para repetir que, sob a língua diplomática,
um pequeno paradoxo os salva da minha total condenação: é que a
ironia, ao ocultar, revela. Revela que algo está mal, que algo de muito
anómalo se passa para, em vez de falarem abertamente da coisa científica, os cientistas se
divertirem com gracinhas. Isso que está mal, para voltar a Kierkegaard,
é a coisa-pretexto de ironia, que nada vale, é nada: «Pode-se então
dizer da ironia que ela leva (o) nada a sério». O riso
transporta em si mesmo um veio de seriedade, aliás a ironia, com tudo o
que tem de abominação para Hegel, é muito séria e deve ser levada a
sério, sob pena de sermos duplamente atraiçoados. A ironia produz
realidade, como um livro, e é Kierkegaard quem, por sua vez, invoca
outro monstro bíblico, que não é a espécie de lagartos Macroscincus
coctei, sim o aterrador crocodilo cujo hálito queima como brasas e
cuja boca lança chamas (Job, 41): a ironia, escreve o filósofo, no plano
prático goza de uma liberdade divina que não conhece entraves, ela «joga
desenfreada e alegremente, retouçando como um Leviatã no mar».
E que liberdade é esta, contrária à prisão de que já se falou? Oh,
suprema ironia! Depois de tudo o que já demonstrei - com a ajuda do
filósofo dinamarquês - não ser texto científico normativo, depois de já
ter carreado para a dissertação a subjetividade, a religião, o
misticismo e a literatura, falta só dar o nó final, explicitando de que
literatura se trata, quando a ironia cospe luz pela boca - a poesia.
Nem a ciência nem os seus historiadores e filósofos conseguem
interpretar corretamente estes textos. Razões há muitas, mas a principal
delas fornece-a Kierkegaard: «a grande exigência da ironia é de que se
deve viver poeticamente». Deve-se viver em autopoiesis, em construção da
própria individualidade. A ironia é o contrário da vulgaridade, ela luta
contra «estes homens ordinários, produzidos às dúzias, de que o mundo
está cheio». Ela quer algo mais, quer o homem que se auto-cria
poeticamente, tal como a Terra está em autopoiesis contínua.
Daí a aversão da ciência ortodoxa, a sua incompreensão, e daí também
que, apesar da minha, ainda esteja aqui, armada com as minhas
ferramentas de exegese de poetas tão obscuros como Herberto Helder.
Salvo a beleza da forma, a origem destes textos científicos trespassados
de ironia e os dos poetas claros e obscuros de todos os tempos é a
mesma.
Tudo isto parece muito simples, mas Kierkegaard esquece-se de
dizer, ou eu não terei lido tudo, que a ironia é extremamente difícil de
detetar e interpretar. Sabemos que consiste em exprimir o contrário do que
pensamos, certo. Mas como sabemos em que está a pessoa irónica a pensar?
Eu digo: "O presente Governo é o mais competente e sábio desde
Pombal». Com que autoridade e competência pode alguém afirmar que penso
exatamente o contrário? Deixe passar cem anos sobre a minha
declaração, e note que passou mais do que isso sobre as gracinhas de
certos naturalistas. Como é que sabemos? Sem a posse de toda a
informação sobre o sujeito falante, referentes do discurso e circunstâncias do
meio em que viveu, o comum dos estudiosos toma-os
à letra, ou tudo considera erros involuntários. Não nos apercebemos da existência da ironia. Em que estado
de ânimo ficamos
quando tomamos à letra o que significa o contrário do que nos dizem?
Maria Estela Guedes
Casa dos Banhos, 14 de maio de 2013
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Bibliografia |
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*
Soren Kierkegaard, O conceito de ironia - Constantemente referido a Sócrates.
Petrópolis, Vozes, 1991. Apresentação e tradução de Álvaro Luiz
Montenegro Valls.
(1)
http://www.triplov.com/hist_fil_ciencia/Orlins-Santana/2011/cobre_nativo/
(2) Vá até ao fim da página:
http://www.triplov.com/estela_guedes/evoe/eschwege.html
(3)
http://www.triplov.com/estela_guedes/gaio_metodo/
(4) Carbonários, Operação Salamandra. In:
http://www.triplov.com/salamand/
(5) Entre outros: «Memórias do lagarto caboverdiano». In:
http://triplov.com/cabo_verde/coctei/
(6) Francisco Newton, Cartas da Nova Atlântida. In:
http://www.triplov.com/newton/
(7) «Do Dodó à Fénix». In:
http://www.triplov.com/dodo/
(8)
http://www.triplov.com/coloquio_02/cobre/index.htm ; e em:
http://www.triplov.com/estela_guedes/evoe/index.html
(9)
http://www.triplov.com/hist_fil_ciencia/augusto_nobre/
(10)
Memórias inéditas de Domingos Vandelli. Memória sobre a pedra de cobre.
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Documentos vindos do Brasil,
livros 28, 29 e 30. Não foi visto ainda.
(11) Veja a página até ao fim.
http://www.triplov.com/estela_guedes/evoe/vandelli.html
(12) «Memoria sobre o cobre virgem ou nativo da Capitania da Bahia
descoberto no anno de 1782». In:
http://www.triplov.com/coloquio_02/cobre/catalogo_ms_02.htm
(13) In:
http://www.google.pt/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&frm=1&source=web&cd=1&ved=0CC4QFjAA&url=http%3A%2F%2Fasclepio.revistas.csic.es%2Findex.php%2Fasclepio%2Farticle%2Fdownload%2F381%2F379&ei=rAuIUfysFeje7Ab35YFY&usg=AFQjCNE3qr6dgmCN5AxyVzg
ZCdifKt2WYg&bvm=bv.45960087,d.d2k
(14) António
Carreira, Ensaio e Memórias Económicas sobre as Ilhas de Cabo Verde
(Século XVIII) por João da Silva Feijó. Instituto Caboverdiano do
Livro. Col. Estudos e Ensaios, 1986.
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL |
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