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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
nova série | número 39 | junho-julho | 2013
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JÚLIO CONRADO
Christian Bonnefoi no Centro Cultural de Cascais
(Portugal)
Entrevista
Fotos: Cortesia da Fundação D. Luís I
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EDITOR |
TRIPLOV |
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ISSN 2182-147X |
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Contacto: revista@triplov.com |
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Dir. Maria Estela Guedes |
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Ao visitar a retrospectiva Matisse no grand
palais em 1970 fiquei em êxtase ao observar os 4 Dos, altos relevos
realizados entre 1908 e 1931, ao ponto de receber deles o dom e de os
marcar pela realização de uma série de desenhos felizmente intitulada
ocasião, a que faz o ladrão mas também esse instante particular do tempo
(occasio) que, sob a jurisdição de Janus, implica apropriação e
aprovação imediatas sob pena de se contrariar o destino. Foi este o
ponto de partida da minha trajectória pictural. Os quadros e desenhos
que seguiram este movimento de abertura que é a base e a linha do meu
trabalho até hoje foram radicalmente minimalistas e conceptuais ou, mais
geralmente, abstractos.
Christian Bonnefoi, in Matisse, le Patron, Les editions
Bervillé,2011
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Christian Bonnefoi é uma das figuras de
topo no actual panorama da pintura francesa. O Centro Cultural de
Cascais, por iniciativa da Fundação D. Luís I, honra-se de apresentar
nas suas salas, até fins de Maio, um conjunto de pinturas e colagens do
consagrado pintor, em cujo percurso fulge igualmente uma intervenção
crítica de reconhecida importância. A sua fonte de inspiração foi uma
obra de Matisse, Les Quatre Dos (ver texto acima). A partir desse
momento fundador, o trabalho pictural de Bonnefoi girou à volta do “Dos”
matissiano, conquanto essa influência não se tenha traduzido num
mimetismo literal. O pincel de Bonnefoi não “imita” o de Matisse. Ao
“figurativo” do Mestre transforma-o o então jovem e inesperado epígono
num abstraccionismo criador que chega aos nossos dias formalmente
pujante e visualmente apelativo em trabalhos na maioria dos quais
aflora sempre um pormenor, um “Dos” mal dissimulado, homenagem ao
patrono incessantemente recordado.
Christian Bonnefoi
nasceu em Salindre, Gard, em 1948 e expõe pela segunda vez em Portugal.
Em 1987 participou na colectiva Hors Tendances mostrada na
Fundação Gulbenkian.
O pintor concordou
em responder a um certo número de questões que lhe foram colocadas como
uma simples entrevista mas que veio a redundar num depoimento pessoal
bastante rico sobre a sua personalidade e a sua obra.
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Havia uma tradição
de artistas na família? A tua infância decorreu entre tintas e pincéis?
Ou a pintura foi para ti uma descoberta tardia?
Como muitos de entre nós, o que eu desejava,
quando adolescente, era, antes de tudo, existir, quer dizer,
experimentar: de ter uma relação crítica e produtiva frente a frente com
a realidade, uma relação política em sentido lato (no sentido grego).
Penso que nunca deixei de estar aí. A experiência, isto é, a
possibilidade de transformar o real é a única via para escapar à
ideologia e aos dogmatismos. É também a única via para nos dirigirmos ao
outro. A vida, a arte, a liberdade, são processos, jamais aquisições. Se
nos deixamos distrair somos imediatamente devorados pelo mundo reificado
da mercadoria, reduzidos nós próprios à condição de mercadoria na
sociedade do espectáculo. É neste estado de espírito que me tenho
orientado mais do que pelos estudos universitários, desde muito cedo
tocado pela literatura, até que venho a descobrir na pintura uma
capacidade de agir mais livre, mais directa, mais imediata.
Uma questão de gosto? De formação?
Esta escolha da pintura acima de qualquer outra
coisa não se trata de uma questão de gosto nem de formação, dado que
tinha poucos conhecimentos neste domínio, jamais tendo posto os pés numa
escola de belas artes. Esta escolha está ligada à eficácia do modo de
aproximação do real que melhor me convinha. Quero com isto dizer que
todas as práticas, tudo o que é praxis, têm o mesmo valor absoluto. A
escolha que fazemos de uma em detrimento de outra depende de uma posição
subjectiva de respeito pelo objecto em referência.
Creio que o que a pintura tem, para mim, de
particular, é que ela não coloca o sentido em primeiro plano. Pintar é
produzir uma forma a partir de elementos dispersos, atomizados,
insignificantes em si mesmos (sem sentido em si mesmos): cores, linhas,
toques, escovadelas, texturas da tela, do papel, etc.; mas também e
sobretudo o tempo: não apenas o tempo cronológico da realização, mas as
paragens, os regressos, as repetições; a espessura do tempo, não somente
a sua linearidade.
Uma vez o quadro acabado, ele conserva essa
memória e expõe-na ao espectador na sua densidade. Fica assim numa
posição próxima da do pintor: não sabe onde tudo começa e onde acaba,
diferentemente de um texto que, mesmo de grande complexidade, se
desenvolve sempre no sentido codificado da leitura. Este defeito, ou
esta resistência à significação, é o que me interessa na pintura, porque
desde logo, pelo seu próprio modo de existência, ela põe a questão da
verdade entre parênteses ou mantém-na à distância. Os seus projecto e
objecto residem na beleza, que para mim é sempre essencial, mesmo se a
vacuidade da sua definição e o abuso do seu emprego faz dela uma velhota
aos olhos de muitos; o próprio Sócrates, no seu diálogo com Ion,
renuncia a defini-la e abandona-a “à inspiração do deus”.
Mas o desejo da escrita deixa-me numa certa
nostalgia, um pouco como o exilado pensando no país onde nasceu.
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Doutorado pela Sorbonne (mas não em belas artes)
foste, segundo algumas fontes, um aluno brilhante. Já deste a perceber
que a tua vida de universitário não foi orientada no sentido de vires a
ser pintor. Como era ser-se estudante universitário, no teu tempo, em
Paris? E que estudos fizeste?
Fiz estudos de arqueologia (Egipto, Roma), de
linguística comparada em torno do sânscrito, e de história de arte,
antes de entrar na Escola Prática dos Altos Estudos através do seminário
de Hubert Damisch intitulado “Semiologia da Arte”. Corria o ano de 1969.
Paris era então outra vez um centro de primeiro plano em matéria de
pesquisa no domínio das ciências humanas, graças a um número
considerável de professores que traziam um discurso novo (Lacan,
Barthes, Foucault, Deleuze, Schefer…). Nós seguíamos, meus amigos e eu,
esses diferentes seminários que nos introduziram em diferentes leituras
essenciais de Artaud, Roussel, Bataille, Malarmé, Claude Simon, Ponge e
muitos outros, como Benjamim e Simmel antes de traduzidos em francês.
O objectivo, se assim se pode dizer, era
simples: saber o mais possível.
Eu estava a milhas
da ideia de pintar, mesmo quando um dos seminários incidiu sobre a
tradução de De Pictura d’Alberti. Foi nessa altura que Hubert
Damisch nos pediu, a Yve-Alain Bois e a mim, para sermos seus
assistentes; isto durou de 1970 a 1976, até um seminário sobre Albers a
meu cargo, no fim do qual decidi abandonar tudo brutalmente e
consagrar-me de todo à pintura. Aí, naturalmente, o caminho é feito em
solidão, o que seria muito desagradável se a tenacidade não tomasse o
lugar da vitamina e do fortificante.
Já nos explicaste, num texto modelar, Matisse,
le Patron (Matisse, o patrono) de que modo se processou a tua fixação em
Matisse, eras então um jovem de 22 anos. A partir desse momento
fundador, axial a toda uma atitude intelectual objetualizada na pintura,
o teu percurso conheceu uma coerência que não mais viria a perder. Mas
como “aprendeste” a pintura quando nada fazia prever ser esse o caminho?
Como disse precedentemente, eu era o estudante
tipo desses anos parisienses que teve a sorte de viver um dos momentos
mais ricos da Universidade. Digo muitas vezes em tom brincalhão que essa
época recorda as horas de glória da Sorbonne dos tempos de Abélard ou de
São Tomás de Aquino.
A pesquisa teórica estava na ordem do dia; com
dois amigos dos seminários, Jean Clay e Yve-Alain Bois, criámos uma
revista para tratar essa questão; eu tinha proposto Zeuxis como título;
alguns desacordos ocorreram, antes mesmo da saída do primeiro número,
que levaram à minha exclusão por carta registada. Sem dúvida um velho
resíduo do Surrealismo. As coisas acabaram por se concertar e vim a
participar regularmente nas diferentes edições da revista, rebatizada
com o nome de Macula.
Mas o acontecimento matissiano já tinha tido
lugar; já falei disso suficientemente, mormente no texto a que aludes;
os seis desenhos que fiz diante das esculturas são verdadeiramente o meu
ponto de partida, poderia mesmo dizer um ponto móvel sobre a linha do
tempo, porque volto a ele regularmente. É somente nesse momento que
começo a frequentar as exposições de arte contemporânea, sobretudo a
pintura americana dos anos 50 e 70.
O mais importante, todavia, foi o meu encontro
com Martin Barré, que considero o grande pintor abstracto francês. Na
primeira entrevista com ele levei um cartão com desenhos debaixo do
braço: foi a única vez que fiz este género de coisa. Ficámos amigos até
ao seu falecimento. Tive ocasião de escrever alguns artigos sobre a sua
pintura; era de uma extrema solicitude, o que não prejudicava em nada a
sua assertividade plácida. Creio que a agitação que fizemos à volta
dele, com alguns amigos historiadores e pintores, o colocaram, com
justiça, na ordem do dia. Hoje, a sua reputação internacional não cessa
de crescer: é um traço típico da situação francesa onde a elite dos
museus, da crítica e dos coleccionadores tem necessidade do estado
póstumo para enfim se pronunciar positivamente.
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Voltando um pouco atrás. A Universidade terá
sido, com certeza, o suporte da tua intervenção crítica e ensaística.
Mas terá ela exercido igual influência na tua obra de criação?
A influência que ela teve sobre mim, quanto ao
exercício da pintura, foi determinante. Eu não tinha frequentado as
belas artes; aprendi a pintar ouvindo falar de Paolo Uccelo, de Picasso,
de Mondrian, de Poussin mas também dos arquitectos, Alberti ou Louis
Khan, de Mies van der Rhoe ou de Palladio. Fui também muito influenciado
pelo cinema: durante anos, um a dois filmes por dia. Aprendi a pintura
de ouvido. Os meus professores de pintura são semiólogos, historiadores
de arte ou escritores: Hubert Damisch, Jean-Louis Schefer. Deste último
segui os cursos da École Normale e o seu ensino foi fundamental. Hoje
somos amigos e tive a felicidade de a minha pintura lhe ter inspirado
dois artigos.
Como já tive oportunidade de dizer, éramos
muitos, porque a época e o lugar se mostravam propícios à paixão pelos
estudos. O meu fundo panteísta leva-me a estabelecer que os deuses nos
tratavam sem cerimónias, sobretudo Saturno e a boa deusa Astrée: “Iam
redit et Virgo, redeunt Saturnia regna;/iam nova progenies caelo
demittitur alto.”
Um dos livros
consagrados à tua obra abre com uma foto na qual estás sentado de costas
voltadas para os Dos de Matisse que te fascinaram para sempre.
Aparentemente, a pose parece descontraída. Olhando com um pouco mais de
atenção descobre-se uma forte carga simbólica. O que pretendeste ao
certo?
É uma bela foto feita por minha esposa, Sylvie
Turpin, por ocasião de uma visita ao museu Cateau-Cambrésis, em 2011,
para preparar a minha exposição ali.
A carga simbólica é evidente uma vez que para
mim se tratava de me expor com esses altos relevos que estão na origem
do meu trabalho; depois porque aqueles são os originais, as maquetas em
gesso antes da passagem a bronze. Donde a foto: ela segue-se ao momento
de alegria, fora da foto, quando a conservadora, a senhora Dominique
Szymusiack, me convidou para realizar a exposição que trazia no coração.
O momento da foto representa, antes, o abatimento de estar a ser
confrontado com o modelo; para ser mais exacto, tenho as pernas cortadas
porque estou sentado sobre o bocal onde repousam as estátuas, o que faz
com que eu fique de costas – costas contra costas, (dos à Dos).
Conscientemente, nada quis significar, é apenas a sorte de uma foto
recordação que fez surgir uma espécie de ficção em que os Dos de Matisse
são os verdadeiros e únicos autores, esculturas que teriam lido Borges.
Crítica e criação. Incompatíveis ou
conciliáveis?
Crítica é um termo complicado uma vez que o que
representa varia segundo o tempo. Por exemplo: desde há vários anos a
crítica de arte em França está catastrófica; a idade de ferro ganhou
vantagem à idade de ouro. Catastrófica e inexistente: conhecem no
estrangeiro o nome de um crítico de arte francês? Por estas razões
prefiro falar de discurso (teórico ou poético) sobre arte. Discurso e
criação não somente compatíveis mas necessários. Há mais de cinco
séculos Alberti dizia que daria um bom pintor aquele que sabe o que faz.
Esta reflexão é sempre actual.
Pela minha parte, sempre sustentei em conjunto
estas posições: ver, compreender, falar. Qualificaram-me muitas vezes de
teórico, não penso que isso seja exacto; nos meus primeiros escritos,
por exemplo, faço questão de chamar a atenção para o facto de não
utilizar um vocabulário especializado, filosófico, psicanalítico,
semiótico, etc. Prefiro a metáfora, isto é, qualquer coisa que é já do
domínio da narrativa. As minhas referências de “crítico” são Proust e
Borges.
Hoje escrevo um Tratado da Pintura no qual
desenvolvo de maneira mais evidente este modo de relação que vai da
imagem à palavra. É como um ponto que permite juntar dois territórios
separados por um abismo. A minha ideia é a de que um quadro se basta a
si mesmo por concluir a sua função de obra de arte numa relação
puramente sensível com o espectador. No entanto, o quadro é tão rico de
possibilidades que deixa acontecer outros modos de relação, por exemplo
uma relação com o saber na medida em que ela produza os seus próprios
conceitos. Deleuze dizia que cada prática produz os seus conceitos, que
a filosofia não chega senão num segundo tempo. Mas aí estamos ainda no
teórico e na interpretação. Isto não é o que me interessa, o que me
interessa é o ponto, quer dizer a passagem de uma matéria visual a uma
matéria sonora: a escrita no sentido literário ou poético parece-me ser
a mais apropriada a esta tarefa.
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Na selecção de pinturas que fizeste para a
exposição de Cascais há trabalhos de duas épocas distintas:
Stations e Fioretti de
la vie courante dos anos noventa; colagens e série
EUREKA, obras recentes.
Quiseste deixar uma marca da tua evolução ao ordenares os quadros assim?
Se sim, como consideras que esta evolução representa um acréscimo de
novidade e qualidade à tua já rica trajectória?
Penso que uma exposição como a de Cascais
necessita de uma estratégia porque, como em todas as exposições, há um
duplo movimento: a obra em si e a relação que ela estabelece com os
outros.
Por outro lado, o meu trabalho não obedece aos
critérios da criação contemporânea, bastante baseados na repetição,
linearidade e identificação. Preferi utilizar, arriscando incorrer na
“crítica” do ecletismo (o que não faltou), a grande diversidade que era
a regra antes da guerra e cujos modelos são, entre outros, Matisse e
Picasso. Mais precisamente, fiz uma síntese dos dois, retomando o modo
de exposição sistematizado pela arte americana dos anos 50-70, a série;
mas subdividi esta numa variedade de séries, cada uma encontrando a sua
razão na manifestação de uma ideia específica. Assim, as séries Babel,
Eureka, Fioretti, etc. Depois dividi cada uma dessas séries em
sub-séries em função da ideia original de partida, Babel I, II, III,
etc.
É evidente que esta “classificação” se faz à
posteriori mesmo se há por vezes, duma série a outra, ou de um momento a
um outro momento da mesma série, uma ínfima parte de previsível. Se o
que é essencial (o acontecimento, a ocasião) é a implicação na obra de
arte em general, não resta senão uma parte, como costumo dizer, do que
aparece sob a forma de um saber e que esse saber deve estar designado
aos mesmo tempo na pintura e na língua, e exposto enquanto tal.
Designado na pintura, designado na língua. Podes
avançar exemplos práticos que esclareçam os conceitos?
Por “désigné dans la peinture” entendo, por
exemplo, a série que comecei nos anos noventa e à qual chamei “Remake”.
Trata-se de quadros que pintei retomando uma estrutura ou uma forma de
um quadro antigo para o recuperar a partir de uma estrutura ou forma
actuais. Isso acrescenta uma nova dimensão temporal ao meu trabalho que
já, na sua linha geral, não é cronológico. Para parafrasear Bergson, com
os “Remake” o presente, que já está voltado para o futuro, debruça-se
sobre o passado.
Por “désigné dans la langue” entendo a
construção, nesses mesmos anos noventa, de um diagrama publicado em DVD
no catálogo da minha retrospectiva em Beaubourg: aí se vê a articulação
do conjunto das séries e das sub-séries, o seu paralelismo ou a sua
oposição, as suas lentidão ou rapidez, as idas e vindas… Além do mais
esse diagrama é pontuado de palavras (conceitos, metáforas…) e de frases
retomadas de um léxico. Prossigo este trabalho que tomou agora a forma
de um Tratado da Pintura.
Que lugar ocupa a exposição de Cascais no teu
diagrama?
As obras expostas em Cascais podem ser
consideradas como um golpe feito no diagrama, dele não retendo senão
três momentos diacrónicos: as Stations, um dos Fioretti (o V,
precisamente, que é como um bloco de notas) e Eureka VIII, os quadros
mais recentes. Estes quadros valem por si mesmos mas, para aqueles que
conhecem o meu trabalho, a memória permite-lhes reconstituir mentalmente
as ligações que vão, por exemplo, de Eureka VIII a Stations, malgrado as
diferenças de estilo assinaláveis, passando por Prophètes ou Babel II:
Borges falava de um labirinto “incessante” atribuindo-lhe uma qualidade
temporal ao que então não teria senão uma dimensão espacial.
A colagem “La petite barque de Télémaque” tem
uma outra função: ela pertence, no meu diagrama, à transformação de
séries antigas denominadas Ludo. Por oposição ao efeito de saber,
apoia-se nos efeitos de forma, nos quais a pregnância conceptual perde
toda a autoridade, diluindo-se no processo onde se misturam de maneira
indistinta a cor, a linha e a composição. É de prever (o previsível!)
que num certo momento a dimensão conceptual tenha tendência a
distinguir-se de novo e a retomar a dianteira: será o signo, então, que
este tipo de trabalho esgotou, a recorrer a uma outra forma, sob o
soslaio das máquinas ou pela intuição para reencontrar o
movimento pictural puro, livre de todo o constrangimento:
“incessantemente”.
As
colagens protestatárias são, digamos, uma herança surrealista. As tuas
grandes colagens recentes fazem apelo à mitologia. Os seus elementos
reunidos produzem uma ideia de paz, de serenidade clássica. As tuas
colagens funcionam como factor de ruptura face ao legado surreal?
Reivindico os termos “paz e serenidade
clássica”. Creio que eles definem a tradição francesa da pintura que
Matisse é o último a ter encarnado de maneira majestosa. Não se trata de
uma escolha, é a resultante dos dois corpos que trazemos em nós: o corpo
próprio, psicológico, com os seus gostos e os seus humores, e, mais
profundamente o corpo histórico, social, dado por uma cultura e uma
língua específicas. No meu caso julgo que este segundo corpo tem força
suficiente para diferir os efeitos psicológicos do primeiro, cuja
tendência é a expressão, para o trazer ao seu próprio terreno: ao mesmo
tempo gestor da herança e do seu acrescentamento. Em sentido estrito, é
uma força interior, diga-se, que visa um conteúdo e não um efeito.
Repito: o que me interessa são as condições que
permitem a produção da imagem mais do que a imagem à procura de si
mesma; uma vez produzida em tais condições terá a faculdade de
“exprimir” qualquer coisa que não é previsível de maneira deliberada ou
consciente, um suplemento. No oposto do surrealismo e do expressionismo.
A referência à mitologia na colagem exposta é um exemplo apoiado por
este fundo clássico. Mas ele não está lá como uma referência cultural, é
um material como qualquer outro, como o papel ou a cor; digamos que é um
material imaginário relativamente ao papel, que é um material textural e
a colagem um material técnico. A soma dos materiais envolvidos no
processo, apoiados uns nos outros, ou se opõem, ou permutam a sua
qualidade. Deste ponto de vista o processo é o lugar onde se fundem os
diferentes níveis, onde, por exemplo o motivo psicológico e a sua
tendência para a expressão vão ser modificados e “deformados” ao
contacto da reaparição, mas modificados, transfigurados. Poder-se-ia
chamar a isto o “crivo” do classissismo. Numa simples natureza morta o
mundo inteiro pode ser convocado: olhemos os girassóis de Van Gogh! |
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Assim sendo La Barque de Télémaque – a
esplêndida colagem que trouxeste ao Centro Cultural de Cascais, na qual
foi introduzida uma marca alusiva ao local onde foi montada
– não incorpora nenhuma mensagem de ruptura.
A “ruptura” nas minhas colagens murais consiste
na transformação da colagem clássica em qualquer coisa como uma invenção
no interior de uma invenção (a tradição). Em vez de pensar a colagem à
maneira de Picasso (colar uma superfície sobre outra), dirigi a minha
atenção, nos meus primeiros trabalhos dos anos setenta, para a própria
cola, essa substância invisível entre duas superfícies. Chamei a isso
uma interpretação metonímica da colagem, que desembaraça e liberta a
parte intermédia, o intervalo, para fazer deste objecto da colagem. Esta
“invisibilidade” chega à visibilidade, à sua exposição, de duas
maneiras:
1º) passando da sobreposição de planos da
colagem cubista a uma justaposição desses planos: os elementos são
colados borda com borda; a espessura e a profundidade são
abandonados em proveito da planura e da extensão, como se abrisse uma
colagem cubista e a desdobrasse, mostrando de uma assentada o seu
interior e o seu exterior, assim como a sua frente e o seu verso.
2º) pela utilização dominante de um médium puro,
que é transparente, nos quadros que se seguiram. Trata-se antes de uma
visibilidade paradoxal, intercalar, entre o que se vê e o que se quer
ver: o diáfano ou o transparente. Nesses quadros da série Janapa ou
Babel que são a aplicação dos efeitos de extensão das colagens produz-se
assim um terceiro acontecimento: a reconstrução da espessura e da
profundidade sobre um modo paradoxal e inédito que a transparência torna
possível, a saber, a profundidade por excelência: a fusão da frente e do
verso, quer dizer, a presença de duas posições e de duas categorias
fundamentalmente distanciadas e opostas no real.
Ao longo do teu percurso de pintor foste
motivado por alguma espécie de ascese?
Depois da adolescência, e ainda hoje, as figuras
que me marcaram são Gautama de Boudha, Gandhi e Francisco de Assis,
digamos, figuras por excelência da ascese. Não há nisso nenhuma vontade
ou ilusão de identificação, de que me situo a leste. É antes uma
resposta de uma no cravo e outra na ferradura à tua pergunta.
Quando digo “figuras” a propósito dessas pessoas, faço delas
personagens, as personagens de um teatro para uso íntimo onde o “eu” não
é uma praça forte nem uma certeza, temporal e espacial, mas uma cena
onde passam actores de todo o tipo, alguns como correntes de ar, outros
estacionando com demora sob as luzes da ribalta (Limelights, de
Chaplin). Uma cena com os seus bastidores, zona de sombra, personagens
em espera por um hipotético regresso, ou melhor ainda personagens
imprevistos, desconhecidos, portadores de um futuro que o movimento do
jogo de cena já implica e convocará no momento oportuno. Mas para que o
jogo valha a candeia é preciso que haja figuras contrastadas, não
ascéticas, pobres ou cómicas ou trágicas como no teatro clássico.
São precisos também traidores, revolucionários, santos, ladrões e
assassinos. Assim se juntam as figuras de Tintin, Durrutti, Giovanni
Acuto, Dolcino, etc. Os títulos e os sub-títulos das minhas séries são
portadores desses nomes retirados da grande história para se integrarem
na substância de um certo “eu”.
Se há uma ascese no meu trabalho, é esta: ser
uma certa pontuação na sintaxe das narrativas do mundo, uma
redução por acréscimo.
Existe um homem comum por detrás do artista
notável?
Uma vez mais te agradeço pelo “artista notável”.
É a tua opinião e tu a assumes. Mas não é bem assim. Nietzsche
explica-nos na “Genealogia da Moral” que os conteúdos das palavras
variam, sem mudarem de forma, segundo aquilo de que se apoderam. Deste
modo, quando o tirano ou o padre (o “espírito de ressentimento”) se
apropriam do poder, apropriam-se também de termos idealmente positivos
como “bem” ou “bom” para lhes dar um uso contrário. Depois de alguns
anos vai acontecendo o mesmo à noção de “artista”: artista é aquele que
se faz objecto de uma difusão intensiva dos media. Os homens políticos
estão em vias de se tornarem artistas. Ora como esta nova categorização
incide mais sobre a pura presença do que sobre o conteúdo, pode-se
prever que o “político”, no sentido em que o entendíamos até agora,
corre o risco de extinção a curto prazo. O cúmulo do novo artista é
o herói temporário das emissões de Téle-Realité: um anónimo cujo nome
brilha mil vezes mais do que o de Mondrian ou de Martin Barré; o
conhecimento e o reconhecimento do anónimo!
Mas Guy Debord fez
essa crítica. Num dos seus textos, à época quase clandestinos, dizia que
ele mesmo, inimigo da sociedade, seria levado às nuvens por esta mesma
sociedade. Coisa concluída, hoje em dia, na BN: Debord anonimizado.
Nestas condições,
e para voltar à tua questão, não reivindico o atributo de artista porque
isso suporia estar a contribuir para este estado da sociedade. Não por
razões políticas, morais ou éticas somente. É essencialmente por razões
internas à realização da obra, estando esse termo, de resto (de
momento?) fora do alcance da bulimia espectacular. A obra, por essência,
é a elaboração de um objecto a partir de posições críticas, analíticas,
formais, meditativas, experimentais, etc. Estas posições funcionam
simultaneamente, mesmo se um ritmo as atravessa de maneira descontínua
ao ponto de fazer brilhar, temporariamente, uma mais que outra. Este
movimento ondulatório, a respiração da alma e do pensamento, é também a
carne daquele que faz obra, a quem chamamos um autor. Eu estou aí, na
resultante em movimento de uma acção que iniciei e que agora me conduz,
o sonho provado de ser enfim um pássaro (Baudelaire dizia: “a minha alma
tem asas de corvo”).
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Reformulo a pergunta, ignorando o “artista”: o
homem de hábitos simples (informal no trajar, fumador, amante dos
prazeres triviais como comer bem e beber melhor, etc.) com quem durante
quatro dias convivi em Cascais, é uma ficção?
É evidente que a minha “simplicidade” não é um
estado natural nem uma disposição psicológica mas uma construção, um
artefacto, com origem no objecto que está na minha frente e que é como
que o autor duma ficção de que sou a narrativa. Hidegger, que faz parte
dos meus personagens de passagem, dizia: “o ser do produto do produto”.
É verdade que falava das botas de Van Gogh, mas essas botas
assentam-me como uma luva. A lição suprema desta relação complexa entre
a arte e a vida recebo-a de um dos meus personagens permanentes,
Montaigne, com quem um e outra se põem “aos saltos e aos pinotes”.
Cascais, Abril de 2013
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Júlio Conrado (Olhão, 26.11.1936,
Portugal)
Escritor, crítico literário. Durante vários anos alternou a crítica
literária com a ficção (incursões esporádicas na poesia e no teatro),
centrando-se actualmente no romance a sua principal actividade. Fez
crítica no Diário Popular, Vida Mundial, Colóquio Letras e Jornal de
Letras. Colaborador de Latitudes, Cahiers Lusophones (Paris) e Revista
Página da Educação (Porto). Coordenou a revista Boca do Inferno, de
Cascais. Integrou os corpos sociais de Associação Portuguesa de
Escritores, Pen Clube Português, Centro Português da Associação
Internacional dos Críticos Literários e Associação Portuguesa dos
Críticos Literários. Participou nos júris dos principais prémios
literários portugueses. Textos seus estão traduzidos em francês, alemão,
inglês, húngaro e grego. Obras principais: Romance: Barbershop (2010),
Estação Ardente (Prémio Vergílio Ferreira / Gouveia (2006), Desaparecido
no Salon du Livre (2001), De Mãos no Fogo (2001), As Pessoas de minha
casa (1985), Era a Revolução (1977) e O Deserto Habitado (1974); Poesia:
Desde o Mar (2005); Teatro: O Corno de Oiro (2009).
Ver currículo alargado no site do Pen Clube Português |
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL |
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