REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 39 | junho-julho | 2013

 
 

 

 

 

PAULO AZEVEDO CHAVES


Meu nome é Madame Bovary

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
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  Este conto homenageia o romance Madame Bovary, de Gustave Flaubert, cujo personagem- título, Ema Bovary, se suicidou ingerindo arsênico em pó e teve uma morte extremamente dolorosa. Em seus momentos finais, ela exclama: “É atroz, Deus!”.
   
 
   
 

   O Sr. Carlos Oliveira, pertencente a uma família de usineiros pernambucanos, resolveu que era o momento de curtir a vida depois de se aposentar do serviço público como fiscal de rendas. Ele nunca gostara de trabalhar e a hora tinha chegado de relaxar. 69 anos, solteirão, gay assumido, pretendia viver apenas da locação de alguns imóveis de sua propriedade e dos rendimentos de suas aplicações financeiras. Alexandre – que tinha uma companheira no subúrbio e trabalhava à noite, de segunda a sexta-feira, numa fábrica no município de Prazeres, na Zona Norte --, ia quase todos os dias para fazer o serviço de jardinagem na casa térrea onde Carlos morava, no bairro de Afogados. Eles tinham se conhecido num bar gay, há cerca de cinco anos, quando Alex estava com 39 anos e Carlos com 64. Alex é um cara bem apessoado, alto, forte, que fizera musculação na época da mocidade. Até os 30 anos, era um prostituto requisitado pelos gays por seus dotes extraordinários e bom caráter. Agora, mais velho, satisfazia sexualmente apenas a Carlos e a sua companheira suburbana. Nos fins de semana eles iam para o sítio Shangri-Lah, a uns 30 km de Recife, Alex ao volante da camioneta de Carlos. Depois de cinco anos de convivência, o tesão esfriara um pouco, de parte a parte. Assim, quando iam para o sítio, levavam na bagagem vários DVDs pornôs, visando esquentar a relação. E muitas vezes também algum garotão, que Alex contratava para participar de um ménage à trois caliente e sem preconceitos. Sexo, dinheiro, conforto – que mais querer da vida? 

  A rotina de tranquilidade chegou ao fim quando Carlos fez um checkup num urologista famoso. Foi diagnosticado um câncer em estágio avançado e irreversível na próstata. O médico foi claro: o câncer atingira outros órgãos e de nada adiantaria extirpar a próstata. Carlos tinha apenas alguns meses de vida. O urologista prescreveu vários remédios (inclusive morfina) para amenizar a dor, sempre que ela se manifestasse com mais intensidade. O mundinho de Carlos desmoronara. Todos temos um pouco de O Médico e o Monstro  em nós. Naquele momento, “Mr Hyde” tomou conta de sua personalidade e ele imaginou um plano diabólico como despedida da vida. Iria organizar uma feijoada em Shangri-Lah e convidar três coroas de suas relações, além de contratar, através de Alex, dois garotões bem dotados e desinibidos para animar a festa.

    Carlos sempre comprava produtos de jardinagem, além de veneno para combater os formigueiros no sítio, num armazém, onde também se comercializa venenos de todos os tipos contra pragas no campo. Através de um bom papo e de uma boa grana, pediu que o vendedor lhe arranjasse um veneno mais forte que o de hábito, de preferência arsênico – 500g no mínimo.Na verdade, ele gostava de ler e uma de suas últimas leituras tinha sido Madame Bovary, de Gustave Flaubert, onde a heroína se suicida ao final ingerindo arsênico. A morte dolorosa de Emma inspirara sua imaginação: queria morrer sofrendo e também infligindo sofrimento aos seus convidados.  No fim de semana foi com Carlos para o sítio, levando o pó fatal numa sacola de mão. A empregada preparou com esmero a feijoada, colocou o vinho francês Beaujolais na mesa, junto com as taças de cristal  Bohemia, arrumou a mesa com os pratos de porcelana Brennand e em seguida se retirou para a área de serviço, pois o próprio Carlos iria servir a feijoada. Os boys fizeram um rápido strip-tease ao som de funk, para animar os coroas, todos excitados com o que estava por vir após o almoço. Depois de todos sentados, Carlos serviu a feijoada a cada um dos presentes, colocando uma porção generosa no seu próprio prato. A comida estava realmente uma delícia. Mas as brincadeiras e algazarra cessaram de repente, substituídas por gemidos. Todos sentiam dores lancinantes no ventre, suavam frio, começaram a vomitar de modo incontrolável, manchas apareceram nos rostos.  Não tardou muito para que descobrissem que o anfitrião os tinha envenenado. “ Louco! “-- gritou Alex, enquanto  esmurrava a cara do companheiro. A mesa estava ensopada de vômito, assim como o chão da sala. Alguns mijavam de pavor nas calças ou Bermudas, tinham os olhos esbugalhados,  e o próprio anfitrião se cagou todo, enquanto urrava de dor. “Assassino!” – gritaram os dois adolescentes seminus. Eles e os coroas pegaram as facas e talheres de prata portuguesa e os espetaram no abdômen, braços e costas de Carlos. A essa altura, Alex chorava convulsamente num canto da sala sobre sua própria merda  e mijo. Não tardou muito e todos estavam mortos e, em alguns casos, abraçados, como se buscassem socorro ou conforto um no outro.

  O envenenamento coletivo foi assunto dos jornais,noticiários televisivos e na Internet nos dias que se seguiram. “Suicídio Coletivo”, “Bacanal de Sangue”, “Tragédia em Shangri-Lah” , “Festim Diabólico” foram algumas das manchetes publicadas na mídia impressa ou digital. Mas ninguém jamais soube o que acontecera realmente. Por segredo profissional, o urologista, o único que sabia da doença de Carlos, nunca revelou que o motivo da tragédia tinha sido a metástase que se instalara no organismo de seu paciente.

     Depois de dois ou três dias, a tragédia de Shangri-Lah começou a ser esquecida: a mídia se ocupou de outros assuntos, as pessoas seguiram suas vidas rotineiras, escândalos de corrupção no Governo brasileiro voltaram a ocupar a primeira página nos jornais e a serem destaque nos noticiários das mídias digitais. Mas no domingo seguinte foi publicado um editorial num jornal local de grande circulação, cujo título foi:  “Um bando de bichas loucas e suicidas”. E coisas muito injustas e desagradáveis foram ditas de todos os participantes do almoço. Afinal, os gays são sempre culpados. Embora neste caso, em particular, só houvesse mesmo um culpado pelo massacre – o cara com um tumor maligno no rabo chamado Carlos.

   
 
  PAULO AZEVEDO CHAVES (BRASIL)
Advogado, jornalista e poeta, assinou no Diário de Pernambuco, nos anos 70/80, a coluna cultural Poliedro, e de meados dos anos 80 até 1993, a coluna Artes e Artistas, especializada em artes plásticas. Livros publicados: Versos Escolhidos,Ed. Pirata,1982, traduções);Trinta Poemas e Dez Desenhos de Amor Viril (Pool Editorial Ltda,1984, traduções); Nu Cotidiano (Grupo X,1988, poesias); Os Ritos da  Perversão (Ed. Comunicarte, poesias, 1991); Nus (Ed. Comunicarte, 1991, poesias). Em 2003, participou de uma coletânea de artigos publicados na seção Opinião do Jornal do Commercio, com o título de Escritas Atemporais (Ed. Bagaço). Em 2011, lançou um livro de prosa, poesias e traduções de poemas com o título de Réquiem para Rodrigo N (Ed.do Autor). Poemas Homoeróticos Escolhidos (em parceria com Raimundo de Moraes) e Os Ritos da Perversão e Outros Poemas foram lançados, em 2012, em edição digital, no site ISSUU.Todos os livros de Paulo Azevedo Chaves tiveram seus projetos gráficos assinados pelo designer pernambucano Roberto Portella.

http://issuu.com/paulo_azevedo_chaves/docs/a_sombra_da_casa_azul
 

 

© Maria Estela Guedes
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