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O Sr. Carlos
Oliveira, pertencente a uma família de usineiros pernambucanos, resolveu
que era o momento de curtir a vida depois de se aposentar do serviço
público como fiscal de rendas. Ele nunca gostara de trabalhar e a hora
tinha chegado de relaxar. 69 anos, solteirão, gay assumido, pretendia
viver apenas da locação de alguns imóveis de sua propriedade e dos
rendimentos de suas aplicações financeiras. Alexandre – que tinha uma
companheira no subúrbio e trabalhava à noite, de segunda a sexta-feira,
numa fábrica no município de Prazeres, na Zona Norte --, ia quase todos
os dias para fazer o serviço de jardinagem na casa térrea onde Carlos
morava, no bairro de Afogados. Eles tinham se conhecido num bar gay, há
cerca de cinco anos, quando Alex estava com 39 anos e Carlos com 64.
Alex é um cara bem apessoado, alto, forte, que fizera musculação na
época da mocidade. Até os 30 anos, era um prostituto requisitado pelos
gays por seus dotes extraordinários e bom caráter. Agora, mais velho,
satisfazia sexualmente apenas a Carlos e a sua companheira suburbana.
Nos fins de semana eles iam para o sítio Shangri-Lah, a uns 30 km de
Recife, Alex ao volante da camioneta de Carlos. Depois de cinco anos de
convivência, o tesão esfriara um pouco, de parte a parte. Assim, quando
iam para o sítio, levavam na bagagem vários DVDs pornôs, visando
esquentar a relação. E muitas vezes também algum garotão, que Alex
contratava para participar de um ménage à trois caliente e sem
preconceitos. Sexo, dinheiro, conforto – que mais querer da vida?
A rotina de
tranquilidade chegou ao fim quando Carlos fez um checkup num urologista
famoso. Foi diagnosticado um câncer em estágio avançado e irreversível
na próstata. O médico foi claro: o câncer atingira outros órgãos e de
nada adiantaria extirpar a próstata. Carlos tinha apenas alguns meses de
vida. O urologista prescreveu vários remédios (inclusive morfina) para
amenizar a dor, sempre que ela se manifestasse com mais intensidade. O
mundinho de Carlos desmoronara. Todos temos um pouco de O Médico e o
Monstro em nós. Naquele momento, “Mr Hyde” tomou conta de sua
personalidade e ele imaginou um plano diabólico como despedida da vida.
Iria organizar uma feijoada em Shangri-Lah e convidar três coroas de
suas relações, além de contratar, através de Alex, dois garotões bem
dotados e desinibidos para animar a festa.
Carlos
sempre comprava produtos de jardinagem, além de veneno para combater os
formigueiros no sítio, num armazém, onde também se comercializa venenos
de todos os tipos contra pragas no campo. Através de um bom papo e de
uma boa grana, pediu que o vendedor lhe arranjasse um veneno mais forte
que o de hábito, de preferência arsênico – 500g no mínimo.Na verdade,
ele gostava de ler e uma de suas últimas leituras tinha sido Madame
Bovary, de Gustave Flaubert, onde a heroína se suicida ao final
ingerindo arsênico. A morte dolorosa de Emma inspirara sua imaginação:
queria morrer sofrendo e também infligindo sofrimento aos seus
convidados. No fim de semana foi com Carlos para o sítio, levando o pó
fatal numa sacola de mão. A empregada preparou com esmero a feijoada,
colocou o vinho francês Beaujolais na mesa, junto com as taças de
cristal Bohemia, arrumou a mesa com os pratos de porcelana
Brennand e em seguida se retirou para a área de serviço, pois o próprio
Carlos iria servir a feijoada. Os boys fizeram um rápido strip-tease ao
som de funk, para animar os coroas, todos excitados com o que estava por
vir após o almoço. Depois de todos sentados, Carlos serviu a feijoada a
cada um dos presentes, colocando uma porção generosa no seu próprio
prato. A comida estava realmente uma delícia. Mas as brincadeiras e
algazarra cessaram de repente, substituídas por gemidos. Todos sentiam
dores lancinantes no ventre, suavam frio, começaram a vomitar de modo
incontrolável, manchas apareceram nos rostos. Não tardou muito
para que descobrissem que o anfitrião os tinha envenenado. “ Louco! “--
gritou Alex, enquanto esmurrava a cara do companheiro. A mesa estava
ensopada de vômito, assim como o chão da sala. Alguns mijavam de pavor
nas calças ou Bermudas, tinham os olhos esbugalhados, e o próprio
anfitrião se cagou todo, enquanto urrava de dor. “Assassino!” – gritaram
os dois adolescentes seminus. Eles e os coroas pegaram as facas e
talheres de prata portuguesa e os espetaram no abdômen, braços e costas
de Carlos. A essa altura, Alex chorava convulsamente num canto da sala
sobre sua própria merda e mijo. Não tardou muito e todos estavam
mortos e, em alguns casos, abraçados, como se buscassem socorro ou
conforto um no outro.
O envenenamento
coletivo foi assunto dos jornais,noticiários televisivos e na Internet
nos dias que se seguiram. “Suicídio Coletivo”, “Bacanal de Sangue”,
“Tragédia em Shangri-Lah” , “Festim Diabólico” foram algumas das
manchetes publicadas na mídia impressa ou digital. Mas ninguém jamais
soube o que acontecera realmente. Por segredo profissional, o
urologista, o único que sabia da doença de Carlos, nunca revelou que o
motivo da tragédia tinha sido a metástase que se instalara no organismo
de seu paciente.
Depois de dois ou três dias, a tragédia de Shangri-Lah começou a ser
esquecida: a mídia se ocupou de outros assuntos, as pessoas seguiram
suas vidas rotineiras, escândalos de corrupção no Governo brasileiro
voltaram a ocupar a primeira página nos jornais e a serem destaque nos
noticiários das mídias digitais. Mas no domingo seguinte foi publicado
um editorial num jornal local de grande circulação, cujo título foi:
“Um bando de bichas loucas e suicidas”. E coisas muito injustas e
desagradáveis foram ditas de todos os participantes do almoço. Afinal,
os gays são sempre culpados. Embora neste caso, em particular, só
houvesse mesmo um culpado pelo massacre – o cara com um tumor maligno no
rabo chamado Carlos.
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PAULO AZEVEDO CHAVES (BRASIL)
Advogado, jornalista e poeta,
assinou no Diário de Pernambuco, nos anos 70/80, a coluna cultural
Poliedro, e de meados dos anos 80 até 1993, a coluna Artes e
Artistas, especializada em artes plásticas. Livros publicados:
Versos Escolhidos,Ed. Pirata,1982, traduções);Trinta Poemas e Dez
Desenhos de Amor Viril (Pool Editorial Ltda,1984, traduções); Nu
Cotidiano (Grupo X,1988, poesias); Os Ritos da Perversão (Ed.
Comunicarte, poesias, 1991); Nus (Ed. Comunicarte, 1991,
poesias). Em 2003, participou de uma coletânea de artigos publicados na
seção Opinião do Jornal do Commercio, com o título de Escritas
Atemporais (Ed. Bagaço). Em 2011, lançou um livro de prosa, poesias
e traduções de poemas com o título de Réquiem para Rodrigo N (Ed.do
Autor). Poemas Homoeróticos Escolhidos (em parceria com Raimundo
de Moraes) e Os Ritos da Perversão e Outros Poemas foram
lançados, em 2012, em edição digital, no site ISSUU.Todos os livros de
Paulo Azevedo Chaves tiveram seus projetos gráficos assinados pelo
designer pernambucano Roberto Portella.
http://issuu.com/paulo_azevedo_chaves/docs/a_sombra_da_casa_azul |