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“Tenho o dever de me fechar em casa no meu espírito
e trabalhar quanto possa e em tudo quanto possa, para o progresso da
civilização e o alargamento da consciência da humanidade”
Fernando Pessoa
A torre gigante de
introspecção – e o vendaval de cultura em seu redor – que o poeta
Fernando Pessoa ergueu e assinou, na primeira metade do século XX, é um
dos pontos de que parto para sobrevoar o território da minha residência
europeia, onde sou um tão pequeno inquilino, interrogando-me se tenho,
ou não tenho, o dever de me fechar em casa nesta hora de grande crise,
de modo a percorrer com soluções, dos alicerces às telhas, este espaço -
para reencontrar nele um sentido de progresso da civilização e as
formas capazes de um alargamento da consciência de uma humanidade ferida
e desorientada.
Posso até começar por questionar se tenho casa, ou seja, recuar –
e complicar – pondo em causa o título -
Uma Ideia de Europa Como Ideal de
Elite -, que melhor seria simplesmente, ser: uma ideia de Europa.
Na verdade, nós, a termos casa, fabricámo-la de raíz, nós
combinámos que o quintal do vizinho começava nos Urais, mas um geógrafo
mais ortodoxo nos diria que somos uma península, um grande excrecência.
Mas somos, e não é preciso ser historiador para senti-lo e para saber
que séculos de História abafam o que qualquer mapa possa gritar.
Enrolemos então o mapa.
Para Fernando Pessoa, Portugal é o rosto da Europa, aquele que
“fita” – mas a nova interrogação é esta: para onde olhamos nós, agora
que somos um corpo dorido e muito menos a face indiferente que
contempla?
Agarro-me à cultura, que é a um tempo o espelho patrimonial de
uma memória colectiva de resíduos e a malha flexível que não só nos une
como nos sustenta em cada desequilíbrio, em cada náusea provocada pelas
quedas da História, naquilo que a História tem de mais cruel,
intoxicante, incompetente e injusto. E procuro, nos novos caminhos de
uma história cultural, Uma ideia
de Europa como Ideal de Elite para Portugal, sabendo que nos últimos
decénios essa mesma ideia foi um íman de esperança, fugidos que vínhamos
do Estado Novo, que se afirmou com um ideário declaradamente
anti-europeu, consubstanciado na afirmação salazarista do
“orgulhosamente sós”, para se tornar num equívoco de interpretações que
urge corrigir com iniciativas como a deste Congresso Internacional que
se realiza no contexto das celebrações do Dia da Europa. Não deixo de
ressalvar ainda que Elite é um termo sempre em sobressalto
e que as elites se definem não só pelo seu poder e pela sua
influência intrínsecas, como também pela sua própria imagem, que o
espelho social reflecte.
Entretanto, ao
contrário de algumas interpretações ligeiras, nós, portugueses, não
aceitámos a Europa como um destino facilitador, na nossa adesão à
Comunidade Económica Europeia. Isto é, não nos tornámos europeus por
inocência ou inevitabilidade, por assinatura ou por pedido, porque
sempre o fomos. Sempre fomos Europeus desde a antiga fundação da
nacionalidade, e com um lugar cimeiro no Mundo, desde a nossa Expansão e
ousadia empreendedora.
Depois de muito protagonismo – um povo com pouco mais de um
milhão e meio de pessoas dominava o Mundo no século XVI – enfrentámos
todas as decadências. Em algumas etapas, a nossa Elite procurava na
Europa uma solução para Portugal.
O País de Garrett e de Herculano é o da requisição de um novo
Portugal Europeu, por exemplo. O Portugal de Eça, também. E o de Antero
e Oliveira Martins, e o de Torga e António Nobre, e o de Teixeira de
Pascoais, e o de José régio e de Jorge de Sena e de tantos outros. A
vontade de libertar Portugal do seu arcaísmo, era inspirada na grande
Europa, o espaço imenso que, por contraste, mais fazia evidenciar as
nossas imprefeições e a nossa pequenez.
Uma página aviltante da nossa História deixou-nos meio século de
costas voltadas, à Europa e ao Mundo, durante o Estado Novo em que fomos
um povo adiado– e produziu em alguns de nós o fascínio enorme da vontade
de sermos cidadãos de pleno direito do Velho Continente e não os seus
parentes pobres. Em contrapartida, o mesmo período cavou a cicatriz de
muitos outros, agrupados à sombra de um País sempre em crise que tomou
posse da nossa mentalidade e postura - evidenciando em nós uma falsa
imagem de nós, que chega a ser sufocante.
Cabe-nos a gestão de uma herança pesada e fascinante: nós,
portugueses, temos da civilização romana e dos valores matriciais da
ideia de Europa que nela germinaram a variedade e os matizes do conceito
de Europa erguidos sobre um enraizamento profundo. Isso denota-se em
muitos exemplos, como na herança da poesia latina – poucos países da
Europa têm tantos poetas para mostrar - , na perduração de modelos
comportamentais e pedagógicos; na utilização de critérios de
civilização, na visão dos socialmente desprotegidos como indivíduos e
seres humanos; na tolerância religiosa; na percepção do outro e do
exótico; na integração do outro...Tudo isto numa abordagem do mundo
romano enquanto paradigma da União Europeia...
Aceitar esta linha de pensamento, distancia-nos também da matriz
grega anterior e dos seus valores onde o espaço Europa era mais um
conjunto de micro-universos fechados do que uma extensão civilizacional
comum. Curiosamente, isso distancia-nos de outros povos europeus.
Repare-se no que diz George Steiner no (seu) A Ideia de Europa : a
singularidade da cultura europeia encontra-se na síntese de duas
culturas, a de Atenas e a de Jerusalém "Muito frequentemente, o
humanismo europeu, de Erasmo a Hegel, procura diversas formas de
compromisso entre ideais áticos e hebraicos." E conclui "A 'ideia de
Europa' é (...) um 'conto de duas cidades'."
Os portugueses não frequentaram ideologicamente essas duas
cidades. A sua visão da Europa é mais a de Roma do que a de Jerusalém, e
bem pouco será a de Atenas e muito mais a de Ceuta ou a de Casablanca e
de toda a África revelada!
À Europa Romana e Grega, a Cristandade, para alguns entendida
como a pré-História da Europa, somou novos efeitos – e ainda assim a
nossa herança foi original. A denominação “história moderna” foi consagrada pelo historiador
francês Cristóvão Keller que a situou cronologicamente após a “idade
média”, definindo-a como o período entre a Antigüidade e a própria época
do autor. É o espírito “moderno” o responsável pela lógica do
eurocentrismo, que coloca a Europa da Renascença ao Iluminismo como a
percussora da modernidade, responsável pelo progresso humano e
científico e, depois, como o berço do mundo contemporâneo em que
vivemos. Essa caracterização da Europa moderna é feita pelo historiador
inglês Trevor-Hope, onde podemos observar o espírito moderno e
eurocêntrico: “se considerarmos os trezentos anos de história europeia
que vão de 1500 a 1800, poderemos considerá-los, de uma maneira geral,
como um período de progresso”. Com o fim da Guerra dos Cem Anos (
1340-1453 ) começa a tendência à centralização que marca o princípio da
Idade Moderna, que se inicia, pode dizer-se, com um novo movimento de
domínio da Europa por parte dos Habsburgos, designadamente Carlos V (1500-1558 ).
A Europa e a ideia de progresso aparecem plasmadas, responsáveis
pelo espaço geográfico e temporal onde tem início a chamada civilização
contemporânea. Do Helenismo ao Cristianismo; do Humanismo ao Iluminismo, da
supremacia da “autoridade interna” face à “autoridade externa” à cultura
dos direitos e aos Tratados de Roma, Nice e Lisboa que produziram novas
interrogações sobre o “espírito europeu”, a nossa História é lugar à
parte, oscilando entre restolhos de esperança e profundos diagnósticos
negros de auto-comiseração. Aliás, o Tratado de Lisboa, de tão recente
memória, «representa um passo em frente decisivo - para tirar a Europa
do impasse em que se encontrava, desde a rejeição dos referendos francês
e holandês, ao Tratado Constitucional. Se esse passo decisivo não fosse
dado, em Lisboa, a Europa entraria numa crise institucional gravíssima,
donde poderia prever-se, com razão, que resultasse o pior. A própria
desagregação não seria de excluir».
No século XX, a Europa é o território das guerras – e do
relançamento. E Portugal é poupado ao esforço colossal dessa barbárie
que arrasou o Continente de 1914 a 1918 e que se repetiu de 1939 a 1945,
que massacrou a Bósnia, que sufocou a URSS...
Se séculos antes, Verney, Ribeiro Sanches, Pereira de Figueiredo
e Frei Manuel do Cenáculo, tinham trazido do coração da Europa reflexos
de oiro e brilhos de cultura cobiçáveis, as notícias da frente de
batalha traziam agora, no século XX,
a desilusão e a vontade da distância.
«Para a matriz aqui
designada do iluminismo português, canonizado com timbre oficial e
estatal, contribuíram modelarmente pensadores de craveira como Luís
António Verney, António Nunes Ribeiro Sanches, António Pereira de
Figueiredo e Frei Manuel do Cenáculo. Os dois primeiros ao lado de
Pombal, no conhecimento por dentro da Europa mais avançada, isto é,
viajando, vivendo e trabalhando no coração dessa Europa pulsante de
razão, arte e ciência novas, onde se destacaram países como a França, a
Holanda, a Itália, a Inglaterra e a Áustria[1]».
Para o português comum, a Europa torna-se assim
muito menos uma meta utópica – e mais o espaço inexplicável e distante
de sucessos surpreendentes, que vão da destruição e do massacre à
glória, à reconstrução e ao progresso. Europa-mito – que somos todos nós
sem o sabermos.
Sobretudo, a Europa Comunitária é a Europa dos Direitos do Homem.
Os direitos do Homem, a democracia e o Estado de Direito são
valores fundamentais da União Europeia. Consagrados no seu Tratado
fundador, foram reforçados pela adopção de uma Carta dos Direitos
Fundamentais. O respeito dos direitos do Homem é uma condição
indispensável para os países que desejam aderir à União Europeia e para
os países que com ela concluíram acordos comerciais ou de outra
natureza. E é bom que o seja; era
o que faltava que o não fosse! É que na nossa memória colectiva pesa –
há que dizê-lo também – os primeiros colonialismos, a subjugação de
outros povos, o truncar de outras civilizações, o arrasar de outros
templos. Foi deste continente que partiram os navios negreiros. Isso
também nos une a quase todos como europeus – uma argamassa de má
qualidade, com areia salgada ( de lágrimas ), porém uma argamassa. E já
que queremos ser família, temos de assumir, como nas famílias, que
estamos juntos em festas e enterros.
Não haverá decerto catarse melhor para essa dor na nossa memória
de europeus, do que sermos agora um baluarte na defesa dos direitos do
Homem.
E essa é a mensagem de maior orgulho para ostentarmos na nossa
casa comum.
Manuel Antunes é considerado um dos mais distintos pensadores
portugueses do século XX, com percursos intelectuais e cívicos ímpares.
Dirigiu a revista Brotéria entre 1965 e 1982 e aí assinou, sob o seu
nome e sob dezenas de pseudónimos, textos notáveis, de uma dinâmica
interdisciplinar e de uma abertura ideológica plural. Reflectiu como
poucos sobre a tensão dos contrários: mudialismo
versus etnocentrismo; e sobre
a ideia de Nação Europeia, a que podia repensar a Europa de modo
optimista. Ressalta a felicidade com que encara o espaço comum e de
libertação, de um Continente capaz de tornar-se um espaço de fronteiras
abertas, ou onde se constituissem fronteiras entre povos e culturas não
como lugar de divisão e conflito, mas como lugares de encontro e trocas. O seu texto
Europa: da comunidade económica à comunidade política
apresenta a meta da edificação de uma Nação Europeia. Uma meta
que se persegue até hoje [2]...
Na vizinhança de Eleições Europeias e na inquietação das
governações nacionais em tempo de crise, o trabalho para a consciência
política dos cidadãos deve ser reforçado sobre a prioridade à
representatividade comunitária no espaço europeu. A influência popular
devia ser o lobby efectivo,
sobrepondo-se aos habitantes do hábito político, isto é, aos eternos
“proprietários” do espectro político-partidário. Em cada um de nós,
elementos como liberdade, igualdade e progresso científico deviam ser
parceiros quotidianos. É de um logo processo de mutação e de
maturação cultural que aqui se trata. Mas cabe a cada um de nós a
interpretação e a aquisição dos intrumentos para atingi-los. Que ninguém
nos mude – isso cabe-nos decidir.
Hoje, julgando ter grande sentido crítico, limitamo-nos a emitir
juízos de valor, numa vergonhosa demissão na discussão pública, que se
deseja acesa e preponderante. Num mundo de globalização, a classe
política parece remeter-se a uma dimensão provinciana – entenda-se : faz
província o seu próprio círculo de influência - e a quase inexistente
ideologia do nosso tempo pode querer significar que acabaremos por
assistir à vitória da incomensurável grandeza do Homem como senhor
efectivo do seu destino. No entanto, para os críticos, é a globalização
a causa do actual colapso financeiro a nível mundial, das crescentes
desigualdades, do comércio injusto e da insegurança geral. Para os seus
defensores, ela é a solução para todos estes problemas.
Não sabemos quem tem razão.
Todavia, impõe-se perguntar: à medida que avançamos no século
XXI, se estamos em tempos de mundialização, ou de redefinição de uma
nova grande fronteira, a do Velho Continente, a procurar sobreviver no
mapa novo das mutações inesperadas? Ou acabaremos por ir atrás do autoritário
Bismarck quando sentenciava que Quem fala em termos de Europa está enganado?
Recorrendo à memória e relendo o discurso de Robert Schuman, As
Causas Sociais e Políticas de Angústia, datado de 7 de Setembro de 1953,
proferido nos Encontros Internacionais de Genebra, bem como as respostas
que o mesmo deu às interpelações que lhe foram feitas no debate público
do dia seguinte, encontraremos algumas respostas. A Europa que ele
pretende é uma Europa aberta e ampla, mas com um denominador comum,
porque sem esse denominador comum teríamos apenas a simples justaposição
de países que nada têm de comum entre si. É a comunidade cultural, a
comunidade das economias, a comunidade do esforço e a comunidade do
aproveitamento comum dos recursos .
Já dizia Abraaão Lincoln que
«Para saber o que é preciso
fazer e como fazê-lo, é preciso primeiro saber de onde se vem e para
onde se vai». E em poucas ocasiões do nosso viver colectivo
estivémos tão necessitados de saber o que é preciso fazer e como
fazê-lo.
É de memórias que falamos aqui, portanto, mesmo desejando o
grande e farto espaço do futuro... Porque a memória é intensa e hoje é
requerida para o entendimento do que somos...
Para usar palavras de Guilherme de Oliveira Martins, ele próprio
um dos produtores de novos compromissos e conceitos,
«Só a memória pode preservar-nos de um futuro que esqueça a
humanidade».
Segundo Paul Ricouer, tudo assenta no « trabalho da memória».
Diria eu, um trabalho que parte do assumir da herança histórica para a
percepção da transformação necessária.
Não podemos esquecer que não podemos esquecer-nos. Não podemos
perder a memória de nós! Não podemos esquecer que somos aquilo que
fazemos – no todo complexo e metabiológico que criamos.
A cultura – é cultivar e cuidar. Temos cultivado pouco; cuidado
ainda menos. As receitas tradicionais
são, no fundo, insatisfatórias. Já não permitem uma resposta adequada
aos desafios presentes .
É ela, a cultura, a minha teia de Penélope. E a minha fidelidade,
assediada e concorrida por tantos pretendentes, consolida-se pelo
combate que travo dentro de mim. Os
desafios de hoje - e as oportunidades futuras - requerem liderança com
visão, competências, respeito por culturas diferentes e uma dedicação ao
progresso. Através do treino, da educação e de mudanças culturais, de
mentores, da investigação – e o compromisso inclui obrigatoriamente as
minorias e os seus direitos e a emergente multiculturalidade que é a
própria Europa a renascer – encontraremos a solução. É a cultura que
opera a reforma dos povos – e não as leis. Os povos passam ao largo do
«furor legislativo», desconhecem o conteúdo do Tratado, do Decreto, mas,
em contrapartida, a cultura pode fazer entender o epicentro da lei: muda
as mentalidades, transforma as práticas quotidianas, forja as
instituições, promove valores, gera instrução, edifica, põe em
movimento. E o movimento
cultural é o sustento da nossa Europa. A Europa da livre circulação de bens, produtos,
pessoas, intelectos. A Europa da Democracia – construída de dentro para
forma com uma intenção cívica de progressão e não um atavismo de
conformistas e de indiferença.
Entende-se então quanto de dificuldade emerge dos conceitos: cada
povo é a cultura que o alicerça. São um e outra indissociáveis. Ou, como
diz Eduardo Lourenço , «Cada povo só o é por se conceber e viver
justamente como destino, isto é, simbolicamente como se existisse desde
sempre e tivesse consigo uma promessa de duração eterna. É essa a
convicção que confere a cada povo, a cada cultura, pois ambos são
indissociáveis, o que chamamos ‘identidade’ [3] ».
E esta interiorização da
identidade é, talvez, dos mais importantes desafios. Num mundo que se
mistura, quando cada vez mais carregamos connosco as âncoras que
fundeamos longe do nosso espaço geográfico, social e religioso é
importante, é vital, será um dos grandes desígnios da Europa continuar a
ser Europa nessa mescla. É que de continente de partidas massivas
passámos a ser a terra do acolhimento. Os ventos mudaram e a diáspora é
agora um filme que vemos ao contrário. Nós, tão habituados a fazer
visitas, somos agora anfitriões. O ser europeu hoje, passará por, nesta
nova situação, usar a mundividência que temos obrigação de ter e usá-la
para aplacar histerias nacionalistas e xenófobas que nos ficam tão mal,
a nós que temos essa tão decantada patina milenar.
Eduardo Lourenço apontou o excesso de imaginário mítico e de
passado que Portugal carrega sobre si. Este excesso de passado, se é uma
vantagem identitária, em alguns aspectos, é também uma ficção
mítica que aprisiona o olhar sobre a sua história e o impede de olhar
decididamente o presente e de projectar o futuro, enredado que fica na
espera agónica de sebastiões de outro tempo que possam ressurgir para
resolver a nossa crise - os problemas de um Portugal-sempre-em-crise [4].
“Eduardo Lourenço surpreende-nos ao falar de uma Europa
desencantada. A Europa era, de algum modo, vítima do seu próprio
sucesso. Acabara a Guerra Fria, o império soviético desmorona-se e havia
novas expectativas e novas perplexidades a ditarem a sua lei. A
fragilidade europeia estava à vista, provindo quer da dificuldade
interna de superar contradições antigas, quer de uma campanha externa
persistente no sentido de não deixar o velho continente ser aquilo que
desejaria ser”.[5]
Nós, europeus, somos um ponto no mapa. Só o continente
australiano tem uma superfície menor do que a nossa, que anda à volta
dos dez milhões de quilómetros quadrados. Em relação com outros, somos
um continente pouco povoado – e a envelhecer a olhos vistos.
Podemos atravessar o nosso Continente a pé – coisas de que poucos
podem gabar-se. E temos a obrigação de saber arrumar um espaço assim,
que parece apto às hegemonias e à resolução dos antogonismos, por ser um
espaço de proximidades.
O historador Jacques Pirenne dizia que um cidadão
que viajasse de Eburacum (Iorque) a Cádis sentia-se no seu País. Hoje
isso torna a ser possível, de Lisboa a Varsóvia? O Evangelho de Augusto foi substituído pelo Evangelho de Cristo,
pelos idos de 380 d.C. e pelo Edicto de Tessalonica do Imperador
Teodósio I – e isso fez a unidade do território. Hoje, os Estrangeiros e
Fronteiras permitem a livre circulação de bens, pessoas e serviços. Mas
será que o tal cidadão sentir-se-ia mesmo em casa? Não é essa, penso, a
unidade que nos une. Não adianta escamotear: é brutal a nossa
diversidade – meia dúzia de quilómetros percorridos e já não nos
sentimos em casa. Andamos há muitos séculos a fazer este
patchwork com retalhinhos diferentes na cor, na textura, no
material. É a convivência dessa diferença que nos une e não a
normalização. Nesse campo, talvez outros continentes tenham essa
unicidade, mas o intrincado da nossa História fez com que tenhamos de
buscar denominadores comuns mais elevados, mais conceptuais.
Seguindo as palavras do próprio Jean Monnet, importa sublinhar
que o projecto de 9 de Maio de 1950 não era uma mera escolha técnica,
mas antes um processo de inventar formas políticas novas... As primeiras
linhas da declaração redigida por Jean Monnet, comentada e lida à
imprensa por Robert Schuman, Ministro dos Negócios Estrangeiros da
França, dão imediatamente uma ideia da ambição da proposta: "A paz
mundial não poderá ser salvaguardada sem uma criatividade à medida dos
perigos que a ameaçam".
É de uma nova paz que se trata agora, neste conturbado início do
século XXI, que para não ser mais um século de falências, de ignomínia,
de especulação, de corrupção, de genocídios, de guerra indiscriminada,
como tantos outros, exige a urgência de novos ideiais. É de uma nova paz
- que repudie os fundamentalismos, económicos, sociais, políticos,
mentais, religiosos, institucionais...culturais e que devolva o Homem ao
centro das acções, contrariando este tempo em que vivemos, onde a
pobreza é a dos valores tradicionais do humanismo, a pobreza que
escorraça o Homem de si mesmo – é nessa paz, é nisso sim, o século XXI
poderá ser pioneiro.
Em 1985, nos Encontros Internacionais de Genebra sobre a «Europa
de hoje», Edgar Morin dizia que
«o drama da Europa e o que torna o seu futuro tão problemático é o facto
de historicamente a Europa não ter passado».
Vou, então retomar no passado o que pode constituir a alavanca do
futuro; de Fernando Pessoa, a outras inspirações: Camões, Vieira,
António Sérgio, Manuel Antunes, Fernando Gil, Ortega y Gasset, Oliveira
Martins, Eduardo Lourenço – até Adorno, Habermas, Kraus, Marcuse..., e a
George Steiner e àqueles que, na diáspora, fizeram a Europa em todos os
locais. E que Europa? O continente real ou o imaginário de identidades
múltiplas? A que teve Sócrates e a filosofia? A Europa grega ou a
romana? A Eslava? A Ibérica? A
Europa positivista ou a da Teoria Crítica? A dos Economistas ou a dos
Pensadores? A de Shakespeare, Baudelaire, Rosseau, Marx, Freud, Marcuse,
ou da massa anónima? A Europe des Patries, a «Europa do Atlântico aos
Urais» do general Charles de Gaulle? A que teve Auschwitz, a Bósnia e o
luto? A Europa Islâmica, Judaica, Cristã, Agnóstica, Ateia,
Multi-sensível ou a Europa desorientada, a Europa dos descaminhos, do
desemprego, da corrupção e da insensibilidade? Como afirmar
“Uma ideia de Europa como
Ideal de Elite para Portugal”, tal como no passado pensei
encontrá-la nalguns dos meus mais dilectos pensadores?
A deusa Europa, filha de Agenor, rei da Fenícia, está idosa mas
solteira – e quer um novo sentido de ser, até porque a esperança de vida
é maior nos nossos dias e ela trabalhou de mais, exige o privilégio
simples da dignidade. Até porque a Europa é mais do que uma “senhora”
idosa, é uma senhora culta, e
a cultura “ mais do
que erudição e eloquência, significa cortesia e respeito”.
A qualidade da História identifica paradigmas e exemplos – e a
historiografia trata duma criação da memória colectiva, que se traduz
numa complexa diversidade, confinada à temporalidade, à factividade e à
própria memorialidade. Dos baús, retiro as palavras de Churchill , ditas
no cerne da nova construção que nos trouxe aqui. Devemos proclamar a
missão e concepção de uma Europa unida, cujo conceito moral granjeará o
respeito e a gratidão da humanidade e cujo poder físico será tal que
ninguém ousará molestar o seu tranquilo percurso (...) Espero ver uma
Europa em que homens e mulheres de todos os países darão a mesma
importância ao facto de serem europeus como ao facto de pertencerem ao
seu torrão natal e em que para toda a parte que forem neste vasto
domínio possam pensar verdadeiramente: "Aqui, estou em minha casa". Sem
querer corrigir Churchill, eu diria antes que espero ver uma Europa em
que homens e mulheres de todos os países darão a mesma importância ao
facto de serem europeus como ao facto de serem seres humanos e que
ecologicamente interiorizem o planeta como uma – a única – casa comum.
Estará esta ideia de casa europeia, produzida por Churchill, muito distante da
casa do espírito pessoana? Não pretendem ambos o mesmo progresso da
civilização e o alargamento da consciência da humanidade?
Ocorre evocar Antonio Sérgio:
"Não sei se a saudade nos libertará desta lógica da História: mas
creio que não. E visto que não temos entre nós uma disciplina
tradicional do trabalho, uma educação, ou como lhe chamar, vivemos e
respiramos uma atmosfera de inércia parasitária, é esse o elemento que
havemos de pedir ao estrangeiro: os métodos, a técnica, a educação para
a produção crematística ".
Talvez em nossos dias este conceito aristotélico - Crematística -
que advém das idéias de khréma e atos - busca incessante da produção e
do açambarcamento das riquezas por prazer, se torne de impactante
actualidade! A prática crematística consiste em colocar a procura da
maximização da rentabilidade financeira (acumulação de numerário) antes
de qualquer outra coisa, em detrimento, se necessário, dos seres humanos
e do meio-ambiente. É da natureza da prática crematística recorrer a
diversas estratégias de acção nocivas, como especulação financeira,
degradação sócio-ambiental etc, sem preocupação com as consequências.
A Ideia de Europa deve sublinhar, exatamente, que se preocupa com
as consequências – e identifica bem as causas. Que deve estabilizar-se a
partir da plataforma segura da Justiça, para partir das adversidades
para uma nova felicidade disposta na casa comum dos povos em espaço
antropológico convergente. Um futuro, como se estivéssemos todos
reunidos na mesma esplanada em tarde de sol.
Aliás...
"A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria
de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos gangsters
de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos
seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo (…). Desenhe-se o
mapa das cafetarias e obter-se-á um dos marcadores essenciais da 'Ideia
de Europa'". É assim que George Steiner escreve em A Ideia de Europa,
livro que recupera o texto - e o título - de uma palestra que o escritor
proferiu no Nexus Institut de Amesterdão. As palavras trazem-nos à
memória tardes de estudante em esplanadas de vida. Mas A Ideia de Europa
tornou-se com a crise a sombra negra a pairar sobre esplanadas vazias,
por não termos o que beber, o que comer, o que pensar...
Como disse Rob Riemen, Presidente do mesmo Nexus
Institute, tudo se centra “na questão de saber se a Europa continua, ou
não, a ser uma boa ideia e qual é realmente a importância e a relevância
politica do ideal europeu de civilização”. Fernando Gil, argumentaria:
«As controvérsias mais importantes e mais interessantes são, em geral,
as mais indecidíveis e, sobretudo, aquelas em que - antes ainda das
divergências sobre as melhores soluções - os objectos não são os mesmos
para todos»[6].
O ex-presidente português Mário Soares, em entrevista ao jornal
El País, em Março de 2009, dizia que sem uma integração europeia
conduzida seriamente (...) a UE tende a desagregar-se. Mário Soares
frisava então que o restabelecimento da confiança da população «é
fundamental» para sair da crise e advertia que isso não será possível
«se os grandes responsáveis pelos erros e pelas fraudes continuarem
impunes e se os responsáveis políticos não mudarem de ideias e de
comportamentos».
Impõe-se-me o raciocínio: só há explicação na História; no
instante passado. Já que o instante presente é tão ocasional que impede
a crítica – e o futuro é um investimento que não podemos garantir em
absoluto. Só António Vieira
– entre muitos que aqui ficam citados - falava de milagre e profecia. Em
contrapartida, fazia-o concebendo uma vontade legitimadora, capaz de
contrariar o fatalismo e a decadência. Creio que é no passado e no
presente que encontraremos as respostas aos novos desafios. “ Da
Construção histórica da “Ideia de Europa” ao voluntarismo construtivista
da
“Ideia Europeia”, o caminho tem sido cheio de
obstáculos...
Os historiadores têm uma tarefa cívica muito importante que é
lutar pela memória das memórias.
É essa, em suma, a reflexão. “Não sei o que amanhã trará” – mas é
hoje que a vida nos reclama. Regresso a casa, ficando em casa. É o
segredo de ser Europeu.
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