REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 39 | junho-julho | 2013

 
 

 

 

ADELTO GONÇALVES


Ferreira de Castro na Amazônia:
uma vida resgatada


Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003).
E-mail: marilizadelto@uol.com.br
 

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FERREIRA DE CASTRO: UM IMIGRANTE PORTUGUÊS NA AMAZÕNIA, de Abrahim Baze. Manaus: Editora Valer, 3ª ed. revista e ampliada, 2012, 266 págs., R$ 69,00. E-mail: editora@valer.com.br Site: www.editoravaler.com.br

 
  I

            Não se deve levar em conta livro de ficção como documento histórico, ainda que tenha sido largamente inspirado na própria vida do autor. É que na ficção o romancista ou o poeta se desprende de seu compromisso com a realidade e deixa a imaginação voar, misturando tempos e acontecimentos sem rigor cronológico. Mesmo assim, isso não significa que não se possa ler determinada obra como à clef, como sabe quem já cotejou o poema Cartas Chilenas, de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), com a documentação da época que consta do Arquivo Público Mineiro, em Belo Horizonte, e dos arquivos públicos de Ouro Preto e Mariana, em Minas Gerais.

            É por isso que Abrahim Baze, historiador e museólogo, não andou mal ao escrever Ferreira de Castro: um imigrante português na Amazônia com base no romance A Selva (1930), de Ferreira de Castro (1898-1974), tomando do personagem Alberto muitas experiências que teriam sido vividas pelo próprio romancista que deixou o lugar de Salgueiros, na freguesia de Ossela, no concelho de Oliveira de Azeméis, em 1911, aos 13 anos de idade, para embarcar no vapor inglês Jerome, rumo a Belém do Pará, onde seria despachado para o seringal Paraíso, nas margens do rio Madeira, no Estado do Amazonas.

            O resultado do esforço de Baze foi um ensaio biográfico livre das amarras metodológicas, como bem observou Almir Diniz de Carvalho Júnior, professor de História da Universidade Federal do Amazonas, autor de um dos prefácios deste livro, que acaba de ganhar terceira edição revista e ampliada, depois de ter a sua primeira edição publicada pela Revista Portugal, de Oliveira de Azeméis, em 2001, e sua segunda edição em 2005, já pela Editora Valer, de Manaus.

            Como brinde, acompanha esta edição um DVD com o longa-metragem A Selva, obra de adaptação do romancista Márcio Souza, responsável também pela sua direção. Rodado em 2001, o filme contou com a participação de artistas brasileiros e portugueses de renome, como Diogo Morgado, Maitê Proença, Cláudio Marzo, Paulo Gracindo Júnior, Roberto Bomfim e Chico Dias, além de outros 40 atores e três mil figurantes amazonenses.

 
 
II

          É verdade que, ao levar em conta episódios ficcionais como se fossem reproduções fiéis da realidade, Baze cometeu anacronismos e alguns enganos, como já assinalou Maria Eva Letízia, professora do Centre de Recherche et d´Etudes Lusophones et Intertropicales da Universidade Stendhal, Grenoble III, da França, em crítica publicada na Revista Castriana, do Centro de Estudos Ferreira de Castro, de Oliveira de Azeméis, e reproduzida nesta terceira edição do livro.

            Um deles foi ter colocado o jovem José Maria Ferreira de Castro a imaginar-se, quando ainda vivia no seringal Paraíso, passeando pela Avenida da Liberdade, em Lisboa, local que teria sido freqüentado pelo protagonista Alberto, mas que só seria conhecido pelo biografado em seu retorno a Portugal em 1919. Armado com suas lembranças da época em que vivia na Amazônia, Ferreira de Castro escreveu A Selva de abril a novembro de 1929, quando já estava amadurecido e carregava uma boa experiência no jornalismo diário. O livro saiu à luz em 1930 e ganharia tradução alemã em 1933, alcançando grande difusão internacional, tendo sido publicado também na França, Espanha, Inglaterra, Rússia, Tchecoslováquia, Romênia, Suécia, Holanda, Noruega, na antiga Iugoslávia (em croata) e em outros países.    

            Nenhum daqueles pormenores, porém, empana o brilho do trabalho de Baze, que, profundo conhecedor da realidade amazônica, soube como resgatar os anos verdes de Ferreira de Castro, suas primeiras dificuldades logo ao chegar a Belém, a aventura que foi a viagem para o seringal, as revoltas contra o trabalho (semi) escravo, a criminalidade, as fugas para o interior da floresta, a medicina caseira baseada na tradição indígena, a caça como sobrevivência, a politicagem, os mandões locais, as pragas, as doenças, os dramas individuais, os sonhos, as acomodações desumanas, os males da bebida alcoólica e a vizinhança turbulenta com os índios Parintintins.

 
 
III

           Para recuperar os primeiros passos de Ferreira de Castro, Baze visitou não só a casa onde o escritor nasceu e que hoje está transformada em museu, mas a escola de instrução primária que ele freqüentou e que lhe daria a base intelectual que lhe serviria para o resto da vida, seguindo uma tradição de autores autodidatas em Portugal que chegaria ao auge com o Prêmio Nobel de Literatura de 1998 atribuído a José Saramago (1922-2010). Aliás, Ferreira de Castro teve o seu nome proposto ao Prêmio Nobel em 1951 e em 1968, desta vez ao lado de Jorge Amado, indicado pela União Brasileira de Escritores.

            Na Amazônia, Baze saiu em busca de, praticamente, todos os passos de Ferreira de Castro, localizando até a hospedaria em que ele ficou em Belém, em frente ao cais do porto. Dessa época, o biógrafo teve ainda o cuidado de republicar velhos cartões-postais que mostram a Belém do começo do século XX e até do navio Justo Chermont que levou o futuro escritor para Manaus. Desta cidade, igualmente há fotografias de 1920, todas do acervo do próprio autor.

            Por fim, Baze reconstitui a chegada de Ferreira de Castro ao seringal Paraíso, que não existe mais desde a abertura da estrada Transamazônica na década de 1970, à época da ditadura militar (1964-1985), quando foi destruído, devastado e dividido em lotes pelo governo federal e vendido a agricultores e pecuaristas do Sul do Brasil.

            Na Amazônia, Ferreira de Castro vive o rescaldo da “febre” da borracha, quando os melhores tempos já se haviam ido e o trabalho dos seringalistas era desenvolvido em condições subumanas. No seringal, José Maria era apenas um rapazola precocemente amadurecido enviado para uma aventura por uma irresponsabilidade que só se justifica pela extrema miséria em que vivia sua família.

            Órfão de pai, era o primogênito que teria sido enviado ao Brasil com a esperança de que fosse mais um “brasileiro” a retornar enriquecido para sua vila natal. Que tenha obtido autorização para viajar sozinho, sendo menor de idade, e, mais ainda, que tenha sobrevivido em ambiente tão hostil são fatos que não se explicam e podem ser atribuídos apenas ao imponderável. No ensaio de Baze, tem especial relevo a família Teles Monteiro, proprietária do seringal Paraíso, e Juca Tristão, gerente, especialmente retratados em A Selva, que aqui ganham maiores contornos.

            De 1914 a 1918, época que coincide com a Primeira Guerra Mundial, Ferreira de Castro sobrevive em Belém e Manaus na mais completa miséria, embora em condições superiores à vida no seringal. Começa, então, a viver de sua pena, trabalhando no jornal A Cruzada, de Belém. Fundou com um amigo o Jornal Portugal, que era dedicado à numerosa colônia portuguesa da cidade. Publicou reportagens e até um folhetim. Trabalhou ainda no Jornal do Commercio, de Belém, como atesta cartão de identidade funcional reproduzido no livro.

 
 

IV

                Abrahim Baze (1949) é graduado em História pela Uninorte e pós-graduado lato sensu em Educação a Distância pelo Centro Universitário Uniseb COC, de Ribeirão Preto-SP. Dedicou boa parte de sua vida profissional a organizar museus no Amazonas. É jornalista, apresentador e documentarista de televisão, com vários trabalhos produzidos, em especial sobre temas amazônicos.

            É diretor do Museu da Rede Amazônica e do Memorial Senador Bernardo Cabral, membro da Academia Amazonense de Letras, do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas e apresentador dos programas Literatura em Foco e Documentos da Amazônia, no Amazon Sat. Publicou ainda os livros Luso Sporting Club – Memória da Sociedade Portuguesa no Amazonas, História da Rede Amazônica e Real e Benemérita Sociedade Portuguesa Beneficente do Amazonas.

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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