REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 39 | junho-julho | 2013

 
 

 

 

 

LUIS DOLHNIKOFF

As rugosidades do caos

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
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KMM 

 

três cilindros transparentes

cheios de líquidos densos

e cores compactas:

um vermelho sangue

outro amarelo ocre

o terceiro puro creme

 

postos

e dispostos

em perfeita gradação

de suas cores mornas

pelo morandi improvisado

do garçom

ou do acaso

 

a beleza

emerge da ordem

no pequeno caos

de copos

garrafas de cerveja

guardanapos

usados

restos

de hambúrguer

sobre um prato

e se derrama

para o grande caos

da cidade em volta da mesa

 
 

PASSEIO NOTURNO 

 

mulheres de burca escura

num cone de luz leitosa

 

falam em celulares

enquanto fazem sinal para

um táxi

 

um garoto de moletom

a cabeça baixa

coberta como uma muçulmana

caminha pela calçada

o rosto na sombra

os olhos sombrios

 

faróis

amarelo

explodem

 

silenciosamente

vigiam a noite

câmeras de lentes negras

 

a lua

uma lâmpada tênue

 

sobre a calçada

um mendigo

a cabeça baixa

coberta como um garoto

pernas esticadas

calças encardidas

escande um olhar opaco

para os carros que passam

 

para os carros que passam

em velocidade constante

vidros foscos fechados

a cidade

são coisas distantes

em denso silêncio

e velocidade constante

 

parados de pé

à porta de um bar

homens fumam lentos cigarros

 

um aramado

pendurado num poste

sustenta um saco

de plástico preto

oferecendo amostras grátis

do lixo da cidade

 

pedaços de papel

pedaços de plástico

pequenos cartões

com telefones de putas

maços de cigarro

pontas de cigarro

camisinhas amarrotadas

lascas de pão

cascas de banana

tampas de garrafas

garrafas plásticas

folhas secas

insetos mortos

uma lente de óculos

uma pilha de relógio

um papel de cocaína

uma unha azul postiça

fios de cabelo preto

lenços de papel amassados

pó empastado

cansaço 

 
 

CHIAROSCURO 

 

a alegria

é branca

como pasta de dente

em luz fosforescente

uma parede recém caiada

neve recém caída

pedaço de madrepérola perdido

na areia clara

de um dia claro

como um azulejo limpo

calcinha de algodão em pele bronzeada

um bando de garças

névoa e neblina

a espuma

do mar contra as pedras

negras como os olhos

da mulher possuída

sobre um lençol limpo

como a calma

de uma tarde calma

além da cortina aberta

 

a melancolia

é negra

como borra de café

no fundo do lixo

uma parede pichada

neve amanhecida

coágulo de sangue ressequido

na areia suja

de um dia escuro

como um muro molhado

calcinha velha em pele pálida

urubus na praia

nuvem e fumaça

as sombras

do mar de chumbo

longas como o olhar

da mulher relembrada

contra o fundo fosco

da memória cinza

de uma noite de inverno

atrás da cortina fechada

 
 

ENSAIO 

 

uma gaivota

grave

a cabeça baixa

vai e volta

à beira d´água

à procura

ou à espera

 

a espera

ou a procura

atrai outras

aves

graves

ou tontas

como aquela

 

tantas

gaivotas

agora

vão e voltam

onda branca

e preta

paralela

às ondas brancas

e cinzentas

que vêm pousar na areia

 

por que vêm pousar na areia

o que esperam

o que procuram

as gaivotas

que vão e voltam

em vão

em volta

de si mesmas

os gritos

agudos

de seus bicos

amarelos

não explicam

 

não explicam

a renúncia

ansiosa

de voar

o vento

vindo

modorrento

do mar

e o mar

longo e lento

morrendo aos seus pés

 

correndo

de repente

ameaçam então voar

mas algo se passa

ou nada acontece

e as aves seguem

com pressa

a perseguição de um ponto

preciso

porém invisível

a partir do qual

é necessário voltar

 

é necessário voltar

porque prosseguir é inútil

 

tão inútil

quanto retornar

 

por isso retornam

apenas um pouco

e logo se voltam

de novo

 

um bando

de aves brancas

pretas

graves

vai e vem

à beira d´água

ou no fim da areia

 

indeciso

sobre a linha imprecisa

onde a gravidade termina

e o voo

repentino

se inicia 

 
 

NATUREZA MORTA 

 

a cabeça de um peixe

balança na areia

bicada por uma gaivota

 

algum sangue

escurece a areia

branca

 

a cabeça cinza

de um peixe cor de prata

antes da pátina

 

as patas amarelas

da gaivota

dançam em volta

 

dançam em volta

outras gaivotas

ansiosas

 

algum sangue

seca na areia

úmida

               

a ave grita

como quem bica

o ar

 

a boca

aberta do peixe

outro corte seco

 
 

MERCADO DE PEIXE NO INVERNO 

 

caudas de lagosta

marrom-vermelhas

largas de ponta a ponta

mergulham em gelo azul

numa caixa de isopor sujo

como neve após a chuva

 

cardumes retangulares

de peixes cor de prata

patas de caranguejo

escamas cinza-aço

guelras cor de rosa

água ensanguentada

sangue diluído

 

o vidro amolecido

do gelo

adensa o vidro liquefeito

da água

 

cozinhar rabos de lagosta

para quem gosta

é muito fácil

(tudo é difícil

se feito com desgosto):

água sal e fogo

 

enquanto o

sol

pálido

cozinha devagar as horas frias

o ar azul-escuro

o mar de gelo sujo

 
 

CINZAS 

 

 o dia cinza

o céu de mármore

o mar de chumbo

líquido

ou quase isso

 

quase tudo

calmo

caos quase adormecido 

 
 

A QUEDA 

 

um avião caiu no mar:

os corpos não foram encontrados

 

porque mergulharam

devagar

na massa imensa de água

observados por olhos estúpidos

de peixes e moluscos

 

silenciosamente

chegam ao fundo

 

pousam e

repousam

corpos pálidos

parados

pesados

no largo leito de areia e frio

 

peixes, moluscos e crustáceos

mordiscam a pele frágil

das pálpebras

da borda dos lábios

da ponta estreita dos dedos

 

estavam vivos hoje cedo

 

saíram de casa mais leves

que de hábito

porque viajar reduz o peso

dos compromissos diários

à parte exata

que cabe numa pequena mala

 

estavam vivos agora há pouco

 

agora há muito pouco do que foram vivos

 

estavam vivos

e alguns sorriam

olhando o mar e a líquida

curva dos quadris da comissária

 

pensa-se muito em sexo no espaço escasso

de um avião

 

pensa-se um pouco em quase tudo no tempo largo

de um voo

 

menos em morrer daqui a pouco

 

menos em daqui a pouco estar morto

 

daqui a pouco estaremos mortos

 

atenção senhores passageiros

podem soltar os cintos

pois logo estaremos mortos

 

não fora isso o combinado

mas sim um longo voo

e um pouso seco

 

o combinado era seguir à tona

no frio mar do tempo

até perder devagar as forças

 

mas algo deu errado

 

atenção senhores passageiros

preparem-se para morrer

nos próximos segundos

 

crianças, gestantes e idosos

não terão prioridade:

todos morrerão juntos

 

todos morrerão próximos

mas separados:

morrer é coisa íntima

 

todos morrerão próximos

mas serão logo separados:

o mar envolve e dispersa

 

a queda

até a superfície

será rápida

até o limite

instransponível que separa

a grave leveza da vida

a leve gravidade da morte

 

será lenta

e infinda

até o fundo

do silêncio 

 
 

NOITE BRANCA

 

rente

à linha

sinuosamente nítida

da estrada

a névoa

rente

a nada

 

extenso

não estar

 

quase feito

de quase matéria

 

em meio

à quase estase

das coisas que estão

(montes, sombras, pedras, noite)

prenhes de solidez

 

a névoa, densa

ausência

então se dissipa

 

o mundo quase

se condensa

 

(pétalas numa sebe escura)

 

turva, porém

a névoa torna

 

nítido

o borrão do mundo

 
 

BEIRAL 

 

chove

 

mas não pode

encontrar a chave

que achava estar

no bolso esquerdo

não olha direito

olhando torto

culpa do vento

no outro bolso

no traseiro

a mão

no queixo

não se queixa

nem se deixa

parar para pensar

parado para procurar

nos bolsos da calça

nos bolsões da memória

embaixo do capacho

acho

que a perdi agora

quando

não achava

pensava sem pensar

estar à mão

mas está na mão

de mãos vazias

vazio o olhar

vazia a rua

a vida vazia

vazios os bolsos

os sapatos cheios de água

forma palpável do frio

mas ainda informe

mais ainda a fome

forma fria de calor

vazio líquido a dissolver

a mornidão compacta das vísceras

a escuridão compacta da noite

a vastidão compacta da chuva

o impacto

pac pac pac pac

das gotas gordas na calçada

explodem respingos de luz

minúsculos raios fluidos

agulhas de água espelhada

fagulhas

frias espalhadas pelo asfalto

da noite: estrelas

atrás da fumaça das nuvens

nuvens que se esfumaçam

se esgarçam

gaze rasgada pelo vento

desfazendo

a chuva

e em seu lugar o silêncio

evapora de cada poro

da cidade

onde se esconde

uma chave

pequena permanência metálica

duramente inútil

uma chave sem porta

uma porta sem chave

uma saída

para o infinito 

 
 

O RELÓGIO DE MONET 

 

ritmo

é o tempo com sentido

pois dividido

em partes:

as partes

do mundo

submersas em seu fluxo

parecem organizar-se

em paralelismos

e sequências

encobrindo o caos

subjacente

 

se o mundo é feito

de paralelismos e sequências

em consequência

ele tem ritmo

não um tempo incompreensível

e tem sentido

porque tem ritmo

e um tempo compreensível

 

sobre as águas sombrias

de um rio profundo

ninfeias constantes

em forma e distância

 

tempo consentido

 

o rio assim oculto

não é porém o ritmo

que contém

nem o sentido

nele contido

 

massa amorfa

de água escura

a expor a flor sem forma

de uma superfície morta

 
 

GREI 

 

extremos de ternura

e fúria

 

aí se apoia o mundo

aí se apoia o mundo

 

não numa ideologia

sequer em todas as necessidades

 

extremos de ternura

e fúria

 

extremos de ternura

e fúria

 

em que se destrói o mundo

em que se destrói o mundo 

 
 

NO MERCADO 

 

quando um homem de gênio se vende

seu próprio gênio o defende

de suas facilitações

 

quando um homem de talento não se vende

seu não se vender o defende

de suas limitações

 

quando um homem de talento se vende

o talento é insuficiente

para o proteger

 

quando um homem sem talento se vende

sua pequenez é suficiente

para o engrandecer

 
 

A SEGUNDA VINDA 

 

nossos ideais

eram mais altos que nossos prédios

 

aumentamos os prédios

antes de ruírem os ideais

 

quando derrubaram os prédios

alguns quiseram

realçar os ideais

 

eles, no entanto, eram antigos:

já não sabíamos reconstruí-los

 

entre o pensamento e a ação

pende a mão

 

porém refaremos os prédios

(nossas máquinas são ideais)

 

o que agora ali se ergue

vê, não sendo a esperança

é a poeira

 

pronto descerá a neve

 

já é outono

nos jardins do ocidente

 

longos serão os meses

 

cinzas as curtas vidas de homens curvados

desde pequenos no trabalho

para poder manter-se

a trabalhar e a adoecer:

olhos jamais erguidos

a se proteger da atenção

dos que estão no alto

enquanto sussurram pelo arbítrio

dos deuses distraídos

 

nos jardins do ocidente

suas sombras tão doces

para o desjejum e o ócio

já não encontrarão abrigo

 

as folhas estão caindo

estão caindo

as lágrimas

 

nos jardins do ocidente

onde plantamos fundo a ideia de abrigá-los

 

iluminamos o mundo

mas o mundo iluminado

é mais escuro

que a antiga ilusão sombria

 

somos menos injustos

mas é nossa injustiça

que mais injustiça o mundo

 

nossa força maior

que nossa crença em nós:

morreremos fortes

 

mas jamais o suficiente

para poder matar o inexistente:

não matamos deus, afinal

 

se, porém, não o fizéramos

deus não houvera

 

por que motivo outro

estaria morto?

 

somos culpados por matá-lo

e por não poder matá-lo

 

educadamente

nos recolhemos às nossas casas

(preferimos, agora, as construções baixas

e os ideais médios)

 

a torre eiffel não ficará abandonada:

será o minarete

da mais vasta mesquita

 

ressoarão alto os sermões

contra os animistas

 

a sombra divina do imperador

ilumina o reerguer da china

 

e as multidões de olhos no chão

para se proteger da atenção

dos que estão no topo

enquanto sussurram pelo abrigo

dos deuses distraídos

 
 

SOBRE UM DITO DE PÉRET 

 

tantos poetas foram fascistas

ou filofascistas

no século que termina

por ser inevitável

concordar ter sido

“o século da desonra dos poetas”

 

séculos da honra de ser poeta

– aquele que melhor traduz

as palavras da tribo –

sepultados sob o silêncio

espesso de poetas que se calam

como os cadáveres ao seu lado

 

pound, ungaretti, lugones

e o antissemita sem pudores

que foi eliot

entre tantos outros

 

mas um século morto

(por mais que seus mortos

pareçam os de um milênio)

outro século nascido

certa dignidade

da velha arte

há de ter renascido

não houvesse também remorrido

nas mãos mudas de poetas mortos-vivos

 

nova dignidade natimorta

 

não agora por calar-se

sobre as infâmias do poder

mas por não poder

com sua voz minguada

dizer, de fato, nada

 

uma voz bem intencionada

mas mal ouvida

na prática não se diferencia

de uma audível voz infame

pelo que se mantém calada

 

ouve-se o mesmo silêncio

entre as ruínas

 

(além do ruído terrível

que é saber da beleza gritante

de certa poesia, se não fascista

na forma – pois não tardo-classicista

monumentalista e burocrática –

filofascista na genealogia

moral)

 

anões sobre ombros de gigantes

veem ainda mais distante

que gigantes sem anões

 

que anões sem gigantes

(todos mortos no século dos mortos)

tenham a visão curta

e a voz pequena

não é de causar surpresa

que nada do que digam

valha a pena

se a alma do poeta

é do tamanho de sua voz

 

eis que todos

ou quase todos

os poetas, hoje

são gauches

 

não na vida

que ser gauche na vida

é coisa tão antiga

quanto um poeta poder ser fascista

 

(poetas ainda podem ser fascistas

mas só se não forem poetas

nem fascistas

ocidentais

e em vez da supremacia da raça

louvarem a supremacia da crença)

 

na vida os poetas

cansados de ser gauches

hoje descansam

em apartamentos bem mobiliados

 

todos são remunerados

por “atividades profissionais”

no lado mais moderno do mercado

que propagam como os antigos

ostentavam seus epítetos

adornando o nome quando ele sai

do conforto anônimo da casa

para as páginas sem confronto dos jornais:

“fulano é poeta, jornalista

ensaísta, tradutor

publicitário, professor

universitário e artista

multimídia”

 

só não é relevante

 

mas quem, adiante, o será?

 

diretores de cinema

armado em circo eletrônico?

compositores populares

popularizados pelo mercado?

artistas plásticos catatônicos

ante os “novos meios”?

novos idiotas que tartamudeiam

em blogs, chats e e-mails?

 

ser relevante, aliás

não é ser antidemocrático?

 

não é ser aliado

apesar da irrelevância

mercantil da poesia

dos que relevam o mercado

o grande relevador?

 

ao menos a poesia está a salvo

de ser infame

 

doravante será

e radicalmente

desimportante

 
 

EM TEMPO DE GUERRA E BANALIDADE

já não há qualquer motivo

para o poeta ser expulso da cidade

 

os bárbaros há muito chegaram

 

mas os bárbaros não expulsam:

cortam pulsos

e alimentam cães

com coágulos

 

(se a poesia é uma espécie de mentira

ou uma forma formal da verdade

é afinal inofensiva)

 

o cadáver exangue sacia os ratos

 

bárbaros são econômicos

 

se a cidade desperdiça vidas

é por valerem pouco

 

esperança, merda e morte

 

enquanto um poeta canta

em silêncio

num canto do seu apartamento

 

mas se a poesia

herdou das nove deidades

que a deram

o doce dom da beleza

(musséon eráthon dóron...)

não poderia se apropriar da indiferença

da cidade senil

à sua não-incômoda presença?

 

doam-se pequenas porções de beleza

 

grandes sombras se alongam

por ruas

pontes

avenidas

 

não há saídas

 

por isso os poetas

não são mais expulsos da cidade

 

da cidade fechada

pela neblina e o frio

 

haveria porém menos música

na cidade sem poesia:

a voz é o instrumento mais barato

 

na cidade sem música

de multidões intermináveis de ruídos

 

na cidade de ruínas

e silêncios sujos

 

ruínas e silêncios sujos

que gestam e ocultam

recantos onde submergir

nos olhos de uma mulher

 

o espelho negro

das palavras

 

poemas

embelezam a beleza

 

se não a da cidade

obesa de ser feia

a de alguns seres que abriga

ao desabrigo

de sua fúria, feiura e frieza

 

a vida não semeia no deserto

 

no deserto da cidade

a vida floresce

 

a vida fenece na cidade

 

na cidade onde a morte floresce

 

flores negras por toda parte

 

a flor mais negra

a da terra tenra

entre suas pernas

 

flor negra que da morte abriga

no pior momento

como uma porta aberta

da chuva repentina

 

febricitante

esquecimento

que dura extensamente

por um instante

 
 

NÃO DEU 

 

a revolução

não deu em nada

 

a poesia

não deu em nada

a televisão

não deu em nada

o rock´n roll

não deu em nada

cair na estrada

não deu em nada

matar o papa

não deu em nada

encher a cara

não deu em nada

encarar a ressaca

não deu em nada

atravessar os mares

não deu em nada

descobrir a américa

não deu em nada

ir até a lua

não deu em nada

tentar a acupuntura

não deu em nada

o fim da pintura

não deu em nada

começar de novo

não deu em nada

comprar outro carro

não deu em nada

assinar a tv a cabo

não deu em nada

saber onde o mundo acaba

não deu em nada

a luta armada

não deu em nada

a cultura de massa

não deu em nada

o cinema francês

não deu em nada

mais uma amigo no face

não deu em nada

o novo romance

não deu em nada

a esperança perdida

não deu em nada

a luta de classe

não deu em nada

o sol da tarde

não deu em nada

o primeiro amor

não deu em nada

a última safra

não deu em nada

afiar a faca

não deu em nada

não morrer cedo

não deu em nada

acordar tarde

não deu em nada

tratar as cáries

não deu em nada

tentar a sorte

não deu em nada

mais um dia ameno

não deu em nada

ter mais um filho

não deu em nada

trabalhar menos

não deu em nada

ter mais dinheiro

não deu em nada

tecer a teia da internet

não deu em nada

o novo sabor de sorvete

não deu em nada

estar conectado

não deu em nada

viver isolado

não deu em nada

percorrer a cidade

não deu em nada

cuidar da casa

não deu em nada

passear pela praia

não deu em nada

tirar o sapato

não deu em nada

esquecer o passado

não deu em nada

saber do holocausto

não deu em nada

o fim do espetáculo

não deu em nada

o novo formato

não deu em nada

o cinema 3d

não deu em nada

o lance de dados

não deu em nada

a mudança de hábitos

não deu em nada

a reforma política

não deu em nada

o fim do socialismo

não deu em nada

o tropicalismo

não deu em nada

morar em copacabana

não deu em nada

a revolução cubana

não deu em nada

a bossa-nova

não deu em nada

a velha guarda

não deu em nada

a cerveja em lata

não deu em nada

o welfare state

não deu em nada

a sopa em pacote

não deu em nada

chegar ao polo norte

não deu em nada

a arte pop

não deu em nada

criar mais um blog

não deu em nada

chorar pelos mortos

não deu em nada

abrir mais estradas

não deu em nada

a nova dieta

não deu em nada

vacinar contra a gripe

não em nada

o verão em recife

não deu em nada

assistir mais um filme

não deu em nada

fundar uma ong

não deu em nada

criar a onu

não deu em nada

fazer a américa

não deu em nada

desfazer o império

não deu em nada

o fim da história

não deu em nada

o fim da metafísica

não deu em nada

a queda da bastilha

não deu em nada

a criação de brasília

não deu em nada

o casamento da filha

não deu em nada

o novo esporte

não deu em nada

o medo da morte

não deu em nada

ter dado tudo certo

não deu em nada

a terra prometida

não deu em nada

a palavra divina

não deu em nada

saldar a dívida

não deu em nada

o fim da infância

não deu em nada

a alegria a alegria

não deu em nada

a esperança e a glória

não deu em nada

cuidar das feridas

não deu em nada

o jantar em família

não deu em nada

sair de casa

não deu em nada

a noite passada

não deu em nada

iluminar a cidade

não deu em nada

voltar mais tarde

não deu em nada

esperar pelo messias

não deu em nada

a nova profecia

não deu em nada

a morte do verso

não deu em nada

o nascimento do filho

não deu em nada

chorar sozinho

não deu em nada

adotar o budismo

não deu em nada

fazer exercícios

não deu em nada

a morte de deus

não deu em nada

o fim da razão

não deu em nada

a nova medicação

não deu em nada

mais uma eleição

não deu em nada

a boa educação

não deu em nada

o fim da madrugada

não deu em nada

a aldeia global

não deu em nada

comer mais salada

não deu em nada

a paz mundial

não deu em nada

a lágrima amarga

não deu em nada

o beijo da mulher amada

não deu em nada

o orgasmo quando acaba

não deu em nada

a queda do muro

não deu em nada

a busca no google

não deu em nada

o tiro no escuro

não deu em nada

lançar mais um livro

não deu em nada

tentar o suicídio

não deu em nada

ter sobrevivido

 
 

Luis Dolhnikoff (São Paulo, 1961) estudou Medicina e Letras Clássicas na USP. É autor de Pãnico (poesia), São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski; Impressões digitais (poesia, 1990); Microcosmo (poesia, 1991), Os homens de ferro (contos, 1992), os três pela editora Olavobrás (São Paulo), que criou em 1989 com Marcelo Tápia, e de Lodo (poesia), São Paulo, Ateliê, 2009, além do livro infantil A menina que media as palavras (Mirabilia, 2008) e do inédito As rugosidades do caos (poesia, 2012). Tem poemas publicados em Atlas Almanak 88, São Paulo, Kraft, 1988, organização Arnaldo Antunes; Tsé=tsé 7/8 (número especial com 30 poetas brasileiros contemporâneos), Buenos Aires, outono 2000; Medusa 10, Curitiba, abr.-mai. 2000; “Moradas provisórias (antologia de poesia brasileira contemporânea)”, in Hipnerotomaquia, Cidade do México, Aldus, 2001, organização Josely V. Baptista; Folhinha, Folha de S. Paulo, 27/07/2002; e nas revistas Cult 61, SP, out. 2002; Sibila 3, SP, out. 2002; 18 IV, SP, Centro de Cultura Judaica, jun.-ago. 2003; Coyote 5, Londrina, outono 2003; Babel 6, Campinas, dez. 2003; Ciência & Cultura 56, SP, Imprensa Oficial, abri.-jun. 2004; Ratapallax 11, New York, spring 2004; MandorlaNew writing from Américas 8, Illinois, Illinois State University, 2005; Mnemozine 3 (revista online, www.cronopios.com.br/mnemozine, 2006), além dos sites www.sibila.com.br, www.jornaldepoesia.jor.br,www.germinaliteratura.com.br,
www.bestiario.com.br/maquinadomundo, www.cronopios.com.br e ablogando (ab-logando.blogspot.com). Integrou a exposição de poesia visual A Palavra Extrapolada, São Paulo, SESC Pompeia, ago.-set. 2003, curadoria Inês Raphaelian, e a mostra Desenhos, de Francisco Faria, ao lado de Josely V. Baptista, Curitiba, Museu Oscar Niemeyer, mar. 2005 / SP, Instituto Tomie Ohtake, set.-dez. 2005. Traduziu Arquíloco (Fragmentos, São Paulo, Expressão, 1987), Joyce (Poemas, São Paulo, Olavobrás, 1992, colaboração Marcelo Tápia), Auden, (Mais!, Folha de S. Paulo, 06/07/2003), Cervantes (Mais!, Folha de S. Paulo, 14/11/2004, colaboração Josely V. Baptista), Yeats (Etc, Curitiba, jan. 2005), William Carlos Williams (Sibila, www.sibila.com.br, 2011) e Ginsberg (Uivo, São Paulo, Globo, 2012). Entre 1991 e 1994, coorganizou, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday de São Paulo (homenagem anual a James Joyce). Como crítico literário, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e Folha de S. Paulo, além das revistas Sibila e Babel e dos sites Cronópios e Sibila. Recebeu, em 2005, uma Bolsa Vitae de Artes para desenvolver estudo crítico sobre a obra de Pedro Xisto. Entre 2003 e 2008, foi colaborador de política internacional, com destaque para as relações entre política e religião, da Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo.
luisdkf@uol.com.br

 

 

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