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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
nova série | número 39 | junho-julho | 2013
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LUIS DOLHNIKOFF
As rugosidades do caos |
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EDITOR |
TRIPLOV |
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ISSN 2182-147X |
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Contacto: revista@triplov.com |
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Dir. Maria Estela Guedes |
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Página Principal |
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Índice de Autores |
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SÍTIOS ALIADOS |
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TriploII - Blog do TriploV |
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Apenas Livros
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Jornal de Poesia |
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Domador de Sonhos |
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Agulha - Revista
de Cultura |
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Arte - Livros Editora |
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Revista InComunidade (Porto) |
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KMM
três
cilindros transparentes
cheios de
líquidos densos
e cores
compactas:
um vermelho
sangue
outro
amarelo ocre
o terceiro
puro creme
postos
e dispostos
em perfeita
gradação
de suas
cores mornas
pelo
morandi improvisado
do garçom
ou do acaso
a beleza
emerge da
ordem
no pequeno
caos
de copos
garrafas de
cerveja
guardanapos
usados
restos
de
hambúrguer
sobre um
prato
e se
derrama
para o
grande caos
da cidade
em volta da mesa
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PASSEIO NOTURNO
mulheres de burca escura
num cone de luz leitosa
falam em celulares
enquanto fazem sinal para
um táxi
um garoto de moletom
a cabeça baixa
coberta como uma muçulmana
caminha pela calçada
o rosto na sombra
os olhos sombrios
faróis
amarelo
explodem
silenciosamente
vigiam a noite
câmeras de lentes negras
a lua
uma lâmpada tênue
sobre a calçada
um mendigo
a cabeça baixa
coberta como um garoto
pernas esticadas
calças encardidas
escande um olhar opaco
para os carros que passam
para os carros que passam
em velocidade constante
vidros foscos fechados
a cidade
são coisas distantes
em denso silêncio
e velocidade constante
parados de pé
à porta de um bar
homens fumam lentos cigarros
um aramado
pendurado num poste
sustenta um saco
de plástico preto
oferecendo amostras grátis
do lixo da cidade
pedaços de papel
pedaços de plástico
pequenos cartões
com telefones de putas
maços de cigarro
pontas de cigarro
camisinhas amarrotadas
lascas de pão
cascas de banana
tampas de garrafas
garrafas plásticas
folhas secas
insetos mortos
uma lente de óculos
uma pilha de relógio
um papel de cocaína
uma unha azul postiça
fios de cabelo preto
lenços de papel amassados
pó empastado
cansaço
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CHIAROSCURO
a alegria
é branca
como pasta
de dente
em luz
fosforescente
uma parede
recém caiada
neve recém
caída
pedaço de
madrepérola perdido
na areia
clara
de um dia
claro
como um
azulejo limpo
calcinha de
algodão em pele bronzeada
um bando de
garças
névoa e
neblina
a espuma
do mar
contra as pedras
negras como
os olhos
da mulher
possuída
sobre um
lençol limpo
como a
calma
de uma
tarde calma
além da
cortina aberta
a
melancolia
é negra
como borra
de café
no fundo do
lixo
uma parede
pichada
neve
amanhecida
coágulo de
sangue ressequido
na areia
suja
de um dia
escuro
como um
muro molhado
calcinha
velha em pele pálida
urubus na
praia
nuvem e
fumaça
as sombras
do mar de
chumbo
longas como
o olhar
da mulher
relembrada
contra o
fundo fosco
da memória
cinza
de uma
noite de inverno
atrás da
cortina fechada
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ENSAIO
uma gaivota
grave
a cabeça baixa
vai e volta
à beira d´água
à procura
ou à espera
a espera
ou a procura
atrai outras
aves
graves
ou tontas
como aquela
tantas
gaivotas
agora
vão e voltam
onda branca
e preta
paralela
às ondas brancas
e cinzentas
que vêm pousar na areia
por que vêm pousar na areia
o que esperam
o que procuram
as gaivotas
que vão e voltam
em vão
em volta
de si mesmas
os gritos
agudos
de seus bicos
amarelos
não explicam
não explicam
a renúncia
ansiosa
de voar
o vento
vindo
modorrento
do mar
e o mar
longo e lento
morrendo aos seus pés
correndo
de repente
ameaçam então voar
mas algo se passa
ou nada acontece
e as aves seguem
com pressa
a perseguição de um ponto
preciso
porém invisível
a partir do qual
é necessário voltar
é necessário voltar
porque prosseguir é inútil
tão inútil
quanto retornar
por isso retornam
apenas um pouco
e logo se voltam
de novo
um bando
de aves brancas
pretas
graves
vai e vem
à beira d´água
ou no fim da areia
indeciso
sobre a linha imprecisa
onde a gravidade termina
e o voo
repentino
se inicia
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NATUREZA MORTA
a cabeça de um peixe
balança na areia
bicada por uma gaivota
algum sangue
escurece a areia
branca
a cabeça cinza
de um peixe cor de prata
antes da pátina
as patas amarelas
da gaivota
dançam em volta
dançam em volta
outras gaivotas
ansiosas
algum sangue
seca na areia
úmida
a ave grita
como quem bica
o ar
a boca
aberta do peixe
outro corte seco
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MERCADO DE PEIXE NO INVERNO
caudas de lagosta
marrom-vermelhas
largas de ponta a ponta
mergulham em gelo azul
numa caixa de isopor sujo
como neve após a chuva
cardumes retangulares
de peixes cor de prata
patas de caranguejo
escamas cinza-aço
guelras cor de rosa
água ensanguentada
sangue diluído
o vidro amolecido
do gelo
adensa o vidro liquefeito
da água
cozinhar rabos de lagosta
para quem gosta
é muito fácil
(tudo é difícil
se feito com desgosto):
água sal e fogo
enquanto o
sol
pálido
cozinha devagar as horas frias
o ar azul-escuro
o mar de gelo sujo
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CINZAS
o dia cinza
o céu de mármore
o mar de chumbo
líquido
ou quase isso
quase tudo
calmo
caos quase adormecido
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A QUEDA
um avião caiu no mar:
os corpos não foram encontrados
porque mergulharam
devagar
na massa imensa de água
observados por olhos estúpidos
de peixes e moluscos
silenciosamente
chegam ao fundo
pousam e
repousam
corpos pálidos
parados
pesados
no largo leito de areia e frio
peixes, moluscos e crustáceos
mordiscam a pele frágil
das pálpebras
da borda dos lábios
da ponta estreita dos dedos
estavam vivos hoje cedo
saíram de casa mais leves
que de hábito
porque viajar reduz o peso
dos compromissos diários
à parte exata
que cabe numa pequena mala
estavam vivos agora há pouco
agora há muito pouco do que foram vivos
estavam vivos
e alguns sorriam
olhando o mar e a líquida
curva dos quadris da comissária
pensa-se muito em sexo no espaço escasso
de um avião
pensa-se um pouco em quase tudo no tempo largo
de um voo
menos em morrer daqui a pouco
menos em daqui a pouco estar morto
daqui a pouco estaremos mortos
atenção senhores passageiros
podem soltar os cintos
pois logo estaremos mortos
não fora isso o combinado
mas sim um longo voo
e um pouso seco
o combinado era seguir à tona
no frio mar do tempo
até perder devagar as forças
mas algo deu errado
atenção senhores passageiros
preparem-se para morrer
nos próximos segundos
crianças, gestantes e idosos
não terão prioridade:
todos morrerão juntos
todos morrerão próximos
mas separados:
morrer é coisa íntima
todos morrerão próximos
mas serão logo separados:
o mar envolve e dispersa
a queda
até a superfície
será rápida
até o limite
instransponível que separa
a grave leveza da vida
a leve gravidade da morte
será lenta
e infinda
até o fundo
do silêncio
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NOITE BRANCA
rente
à linha
sinuosamente nítida
da estrada
a névoa
rente
a nada
extenso
não estar
quase feito
de quase matéria
em meio
à quase estase
das coisas que estão
(montes, sombras, pedras, noite)
prenhes de solidez
a névoa, densa
ausência
então se dissipa
o mundo quase
se condensa
(pétalas numa sebe escura)
turva, porém
a névoa torna
nítido
o borrão do mundo
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BEIRAL
chove
mas não pode
encontrar a chave
que achava estar
no bolso esquerdo
não olha direito
olhando torto
culpa do vento
no outro bolso
no traseiro
a mão
no queixo
não se queixa
nem se deixa
parar para pensar
parado para procurar
nos bolsos da calça
nos bolsões da memória
embaixo do capacho
acho
que a perdi agora
quando
não achava
pensava sem pensar
estar à mão
mas está na mão
de mãos vazias
vazio o olhar
vazia a rua
a vida vazia
vazios os bolsos
os sapatos cheios de água
forma palpável do frio
mas ainda informe
mais ainda a fome
forma fria de calor
vazio líquido a dissolver
a mornidão compacta das vísceras
a escuridão compacta da noite
a vastidão compacta da chuva
o impacto
pac pac pac pac
das gotas gordas na calçada
explodem respingos de luz
minúsculos raios fluidos
agulhas de água espelhada
fagulhas
frias espalhadas pelo asfalto
da noite: estrelas
atrás da fumaça das nuvens
nuvens que se esfumaçam
se esgarçam
gaze rasgada pelo vento
desfazendo
a chuva
e em seu lugar o silêncio
evapora de cada poro
da cidade
onde se esconde
uma chave
pequena permanência metálica
duramente inútil
uma chave sem porta
uma porta sem chave
uma saída
para o infinito
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O RELÓGIO DE MONET
ritmo
é o tempo com sentido
pois dividido
em partes:
as partes
do mundo
submersas em seu fluxo
parecem organizar-se
em paralelismos
e sequências
encobrindo o caos
subjacente
se o mundo é feito
de paralelismos e sequências
em consequência
ele tem ritmo
não um tempo incompreensível
e tem sentido
porque tem ritmo
e um tempo compreensível
sobre as águas sombrias
de um rio profundo
ninfeias constantes
em forma e distância
tempo consentido
o rio assim oculto
não é porém o ritmo
que contém
nem o sentido
nele contido
massa amorfa
de água escura
a expor a flor sem forma
de uma superfície morta
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GREI
extremos de ternura
e fúria
aí se apoia o mundo
aí se apoia o mundo
não numa ideologia
sequer em todas as necessidades
extremos de ternura
e fúria
extremos de ternura
e fúria
em que se destrói o mundo
em que se destrói o mundo
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NO MERCADO
quando um homem de gênio se vende
seu próprio gênio o defende
de suas facilitações
quando um homem de talento não se vende
seu não se vender o defende
de suas limitações
quando um homem de talento se vende
o talento é insuficiente
para o proteger
quando um homem sem talento se vende
sua pequenez é suficiente
para o engrandecer
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A SEGUNDA VINDA
nossos ideais
eram mais altos que nossos prédios
aumentamos os prédios
antes de ruírem os ideais
quando derrubaram os prédios
alguns quiseram
realçar os ideais
eles, no entanto, eram antigos:
já não sabíamos reconstruí-los
entre o pensamento e a ação
pende a mão
porém refaremos os prédios
(nossas máquinas são ideais)
o que agora ali se ergue
vê, não sendo a esperança
é a poeira
pronto descerá a neve
já é outono
nos jardins do ocidente
longos serão os meses
cinzas as curtas vidas de homens curvados
desde pequenos no trabalho
para poder manter-se
a trabalhar e a adoecer:
olhos jamais erguidos
a se proteger da atenção
dos que estão no alto
enquanto sussurram pelo arbítrio
dos deuses distraídos
nos jardins do ocidente
suas sombras tão doces
para o desjejum e o ócio
já não encontrarão abrigo
as folhas estão caindo
estão caindo
as lágrimas
nos jardins do ocidente
onde plantamos fundo a ideia de abrigá-los
iluminamos o mundo
mas o mundo iluminado
é mais escuro
que a antiga ilusão sombria
somos menos injustos
mas é nossa injustiça
que mais injustiça o mundo
nossa força maior
que nossa crença em nós:
morreremos fortes
mas jamais o suficiente
para poder matar o inexistente:
não matamos deus, afinal
se, porém, não o fizéramos
deus não houvera
por que motivo outro
estaria morto?
somos culpados por matá-lo
e por não poder matá-lo
educadamente
nos recolhemos às nossas casas
(preferimos, agora, as construções baixas
e os ideais médios)
a torre eiffel não ficará abandonada:
será o minarete
da mais vasta mesquita
ressoarão alto os sermões
contra os animistas
a sombra divina do imperador
ilumina o reerguer da china
e as multidões de olhos no chão
para se proteger da atenção
dos que estão no topo
enquanto sussurram pelo abrigo
dos deuses distraídos
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SOBRE UM DITO DE PÉRET
tantos poetas foram fascistas
ou filofascistas
no século que termina
por ser inevitável
concordar ter sido
“o século da desonra dos poetas”
séculos da honra de ser poeta
– aquele que melhor traduz
as palavras da tribo –
sepultados sob o silêncio
espesso de poetas que se calam
como os cadáveres ao seu lado
pound, ungaretti, lugones
e o antissemita sem pudores
que foi eliot
entre tantos outros
mas um século morto
(por mais que seus mortos
pareçam os de um milênio)
outro século nascido
certa dignidade
da velha arte
há de ter renascido
não houvesse também remorrido
nas mãos mudas de poetas mortos-vivos
nova dignidade natimorta
não agora por calar-se
sobre as infâmias do poder
mas por não poder
com sua voz minguada
dizer, de fato, nada
uma voz bem intencionada
mas mal ouvida
na prática não se diferencia
de uma audível voz infame
pelo que se mantém calada
ouve-se o mesmo silêncio
entre as ruínas
(além do ruído terrível
que é saber da beleza gritante
de certa poesia, se não fascista
na forma – pois não tardo-classicista
monumentalista e burocrática –
filofascista na genealogia
moral)
anões sobre ombros de gigantes
veem ainda mais distante
que gigantes sem anões
que anões sem gigantes
(todos mortos no século dos mortos)
tenham a visão curta
e a voz pequena
não é de causar surpresa
que nada do que digam
valha a pena
se a alma do poeta
é do tamanho de sua voz
eis que todos
ou quase todos
os poetas, hoje
são gauches
não na vida
que ser gauche na vida
é coisa tão antiga
quanto um poeta poder ser fascista
(poetas ainda podem ser fascistas
mas só se não forem poetas
nem fascistas
ocidentais
e em vez da supremacia da raça
louvarem a supremacia da crença)
na vida os poetas
cansados de ser gauches
hoje descansam
em apartamentos bem mobiliados
todos são remunerados
por “atividades profissionais”
no lado mais moderno do mercado
que propagam como os antigos
ostentavam seus epítetos
adornando o nome quando ele sai
do conforto anônimo da casa
para as páginas sem confronto dos jornais:
“fulano é poeta, jornalista
ensaísta, tradutor
publicitário, professor
universitário e artista
multimídia”
só não é relevante
mas quem, adiante, o será?
diretores de cinema
armado em circo eletrônico?
compositores populares
popularizados pelo mercado?
artistas plásticos catatônicos
ante os “novos meios”?
novos idiotas que tartamudeiam
em blogs,
chats e
e-mails?
ser relevante, aliás
não é ser antidemocrático?
não é ser aliado
apesar da irrelevância
mercantil da poesia
dos que relevam o mercado
o grande relevador?
ao menos a poesia está a salvo
de ser infame
doravante será
e radicalmente
desimportante
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EM TEMPO DE GUERRA E BANALIDADE
já não há qualquer motivo
para o poeta ser expulso da cidade
os bárbaros há muito chegaram
mas os bárbaros não expulsam:
cortam pulsos
e alimentam cães
com coágulos
(se a poesia é uma espécie de mentira
ou uma forma formal da verdade
é afinal inofensiva)
o cadáver exangue sacia os ratos
bárbaros são econômicos
se a cidade desperdiça vidas
é por valerem pouco
esperança, merda e morte
enquanto um poeta canta
em silêncio
num canto do seu apartamento
mas se a poesia
herdou das nove deidades
que a deram
o doce dom da beleza
(musséon
eráthon dóron...)
não poderia se apropriar da indiferença
da cidade senil
à sua não-incômoda presença?
doam-se pequenas porções de beleza
grandes sombras se alongam
por ruas
pontes
avenidas
não há saídas
por isso os poetas
não são mais expulsos da cidade
da cidade fechada
pela neblina e o frio
haveria porém menos música
na cidade sem poesia:
a voz é o instrumento mais barato
na cidade sem música
de multidões intermináveis de ruídos
na cidade de ruínas
e silêncios sujos
ruínas e silêncios sujos
que gestam e ocultam
recantos onde submergir
nos olhos de uma mulher
o espelho negro
das palavras
poemas
embelezam a beleza
se não a da cidade
obesa de ser feia
a de alguns seres que abriga
ao desabrigo
de sua fúria, feiura e frieza
a vida não semeia no deserto
no deserto da cidade
a vida floresce
a vida fenece na cidade
na cidade onde a morte floresce
flores negras por toda parte
a flor mais negra
a da terra tenra
entre suas pernas
flor negra que da morte abriga
no pior momento
como uma porta aberta
da chuva repentina
febricitante
esquecimento
que dura extensamente
por um instante
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NÃO DEU
a revolução
não deu em nada
a poesia
não deu em nada
a televisão
não deu em nada
o rock´n roll
não deu em nada
cair na estrada
não deu em nada
matar o papa
não deu em nada
encher a cara
não deu em nada
encarar a ressaca
não deu em nada
atravessar os mares
não deu em nada
descobrir a américa
não deu em nada
ir até a lua
não deu em nada
tentar a acupuntura
não deu em nada
o fim da pintura
não deu em nada
começar de novo
não deu em nada
comprar outro carro
não deu em nada
assinar a tv a cabo
não deu em nada
saber onde o mundo acaba
não deu em nada
a luta armada
não deu em nada
a cultura de massa
não deu em nada
o cinema francês
não deu em nada
mais uma amigo no face
não deu em nada
o novo romance
não deu em nada
a esperança perdida
não deu em nada
a luta de classe
não deu em nada
o sol da tarde
não deu em nada
o primeiro amor
não deu em nada
a última safra
não deu em nada
afiar a faca
não deu em nada
não morrer cedo
não deu em nada
acordar tarde
não deu em nada
tratar as cáries
não deu em nada
tentar a sorte
não deu em nada
mais um dia ameno
não deu em nada
ter mais um filho
não deu em nada
trabalhar menos
não deu em nada
ter mais dinheiro
não deu em nada
tecer a teia da internet
não deu em nada
o novo sabor de sorvete
não deu em nada
estar conectado
não deu em nada
viver isolado
não deu em nada
percorrer a cidade
não deu em nada
cuidar da casa
não deu em nada
passear pela praia
não deu em nada
tirar o sapato
não deu em nada
esquecer o passado
não deu em nada
saber do holocausto
não deu em nada
o fim do espetáculo
não deu em nada
o novo formato
não deu em nada
o cinema 3d
não deu em nada
o lance de dados
não deu em nada
a mudança de hábitos
não deu em nada
a reforma política
não deu em nada
o fim do socialismo
não deu em nada
o tropicalismo
não deu em nada
morar em copacabana
não deu em nada
a revolução cubana
não deu em nada
a bossa-nova
não deu em nada
a velha guarda
não deu em nada
a cerveja em lata
não deu em nada
o welfare state
não deu em nada
a sopa em pacote
não deu em nada
chegar ao polo norte
não deu em nada
a arte pop
não deu em nada
criar mais um blog
não deu em nada
chorar pelos mortos
não deu em nada
abrir mais estradas
não deu em nada
a nova dieta
não deu em nada
vacinar contra a gripe
não em nada
o verão em recife
não deu em nada
assistir mais um filme
não deu em nada
fundar uma ong
não deu em nada
criar a onu
não deu em nada
fazer a américa
não deu em nada
desfazer o império
não deu em nada
o fim da história
não deu em nada
o fim da metafísica
não deu em nada
a queda da bastilha
não deu em nada
a criação de brasília
não deu em nada
o casamento da filha
não deu em nada
o novo esporte
não deu em nada
o medo da morte
não deu em nada
ter dado tudo certo
não deu em nada
a terra prometida
não deu em nada
a palavra divina
não deu em nada
saldar a dívida
não deu em nada
o fim da infância
não deu em nada
a alegria a alegria
não deu em nada
a esperança e a glória
não deu em nada
cuidar das feridas
não deu em nada
o jantar em família
não deu em nada
sair de casa
não deu em nada
a noite passada
não deu em nada
iluminar a cidade
não deu em nada
voltar mais tarde
não deu em nada
esperar pelo messias
não deu em nada
a nova profecia
não deu em nada
a morte do verso
não deu em nada
o nascimento do filho
não deu em nada
chorar sozinho
não deu em nada
adotar o budismo
não deu em nada
fazer exercícios
não deu em nada
a morte de deus
não deu em nada
o fim da razão
não deu em nada
a nova medicação
não deu em nada
mais uma eleição
não deu em nada
a boa educação
não deu em nada
o fim da madrugada
não deu em nada
a aldeia global
não deu em nada
comer mais salada
não deu em nada
a paz mundial
não deu em nada
a lágrima amarga
não deu em nada
o beijo da mulher amada
não deu em nada
o orgasmo quando acaba
não deu em nada
a queda do muro
não deu em nada
a busca no google
não deu em nada
o tiro no escuro
não deu em nada
lançar mais um livro
não deu em nada
tentar o suicídio
não deu em nada
ter sobrevivido
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Luis Dolhnikoff (São Paulo, 1961) estudou Medicina e Letras Clássicas na
USP. É autor de Pãnico
(poesia), São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski;
Impressões digitais (poesia, 1990);
Microcosmo (poesia, 1991), Os
homens de ferro (contos, 1992), os três pela editora Olavobrás (São
Paulo), que criou em 1989 com Marcelo Tápia, e de
Lodo (poesia), São Paulo,
Ateliê, 2009, além do livro infantil
A menina que media as palavras (Mirabilia, 2008) e do inédito
As rugosidades do caos
(poesia, 2012). Tem poemas publicados em
Atlas Almanak 88, São Paulo,
Kraft, 1988, organização Arnaldo Antunes;
Tsé=tsé 7/8 (número especial
com 30 poetas brasileiros contemporâneos), Buenos Aires, outono 2000;
Medusa 10, Curitiba, abr.-mai.
2000; “Moradas provisórias (antologia de poesia brasileira
contemporânea)”, in
Hipnerotomaquia, Cidade do México, Aldus, 2001, organização Josely
V. Baptista; Folhinha, Folha de S. Paulo, 27/07/2002; e nas revistas
Cult 61, SP, out. 2002;
Sibila 3, SP, out. 2002;
18 IV, SP, Centro de Cultura
Judaica, jun.-ago. 2003; Coyote
5, Londrina, outono 2003; Babel
6, Campinas, dez. 2003; Ciência & Cultura 56, SP, Imprensa
Oficial, abri.-jun. 2004;
Ratapallax 11, New York,
spring 2004; Mandorla – New writing from
Américas 8, Illinois, Illinois State University, 2005;
Mnemozine 3 (revista online,
www.cronopios.com.br/mnemozine,
2006), além dos sites
www.sibila.com.br,
www.jornaldepoesia.jor.br,www.germinaliteratura.com.br,
www.bestiario.com.br/maquinadomundo,
www.cronopios.com.br
e
ablogando
(ab-logando.blogspot.com).
Integrou a exposição de poesia visual A Palavra Extrapolada, São Paulo,
SESC Pompeia, ago.-set. 2003, curadoria Inês Raphaelian, e a mostra
Desenhos, de Francisco Faria, ao lado de Josely V. Baptista, Curitiba,
Museu Oscar Niemeyer, mar. 2005 / SP, Instituto Tomie Ohtake, set.-dez.
2005. Traduziu Arquíloco (Fragmentos,
São Paulo, Expressão, 1987), Joyce (Poemas,
São Paulo, Olavobrás, 1992, colaboração Marcelo Tápia), Auden, (Mais!,
Folha de S. Paulo,
06/07/2003), Cervantes (Mais!,
Folha de S. Paulo, 14/11/2004,
colaboração Josely V. Baptista), Yeats
(Etc, Curitiba,
jan. 2005), William Carlos Williams (Sibila,
www.sibila.com.br,
2011) e Ginsberg (Uivo, São
Paulo, Globo, 2012). Entre 1991 e 1994, coorganizou, ao lado de Haroldo
de Campos, o Bloomsday de São Paulo (homenagem anual a James Joyce).
Como crítico literário, colaborou, a partir de 1997, com os jornais
O Estado de S. Paulo,
A Notícia,
Diário Catarinense,
Gazeta do Povo, Clarín e
Folha de S. Paulo, além das revistas
Sibila e Babel e dos sites Cronópios e
Sibila. Recebeu, em 2005, uma Bolsa Vitae de Artes para desenvolver
estudo crítico sobre a obra de Pedro Xisto. Entre 2003 e 2008, foi
colaborador de política internacional, com destaque para as relações
entre política e religião, da
Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo.
luisdkf@uol.com.br
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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