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Em 2003 escrevi a seguinte definição: «(...) A
arquitectura é a possível humanização da geometria que tem origem na
tentativa de definir os limites de um vazio espacial (...)» Creio,
portanto, que é da natureza da arquitectura ser objecto híbrido cuja
busca conceptual deve aceitar que a pureza das ideias é sempre
contaminada por uma realidade externa resultando, assim, numa construção
geométrica na qual se manifesta uma gestão de contingências internas e
externas de diversa ordem. À luz daquela definição o arquitecto seria o
artista que tenta definir os limites de vazios espaciais através do uso
consciente da geometria, tendo o Homem como referência e medida. Os seus
desafios ético e estético são enormes porque lhe é exigido que no seu
trabalho nenhum dos dois se evidencie sobre o outro. Se o arquitecto
pertence a uma categoria de artistas diferente das demais é, sobretudo,
devido a esta exigência e não por ser habitualmente apontado como um
técnico-artista (ou artista-técnico). Toda a disciplina artística, com
maior ou menor grau, se debate com problemas de ordem técnica e
burocrática e não é devido à suposta maior complexidade das suas
especificidades técnicas e burocráticas que a arquitectura coloca o
arquitecto num patamar diferente do dos outros artistas. O que, de
facto, torna o arquitecto distinto é a matéria com que lida associada ao
modo como transforma o real e às características da realidade que
efectiva.
Ao confrontar estes conceitos, aqui ao de leve
explanados, com os espaços e edifícios que resultaram do meu trabalho de
arquitecto, não posso deixar de assinalar, talvez com desencanto, alguns
sentimentos contraditórios. A noção de autoria, no sentido que
habitualmente vemos aplicada à criação artística mas, sobretudo, à
criação arquitectónica dita erudita, nunca foi para mim clara, e por
diversas ordens de razão raramente tive oportunidade de ver o todo do
meu pensamento acerca de um problema espacial efectivado em obra
arquitectónica. Entendo, por isso, que embora seja o legítimo autor das
obras que resultaram dos projectos de arquitectura por mim
desenvolvidos, muito do que há nelas não me permite chegar sequer
próximo da aspiração traduzida pela locução latina ne varietur,
isto é, «para que nada seja mudado». A sua contaminação, promovida pelos
mais diversos agentes, pode ocorrer em fases distintas da concepção
arquitectónica, tanto durante o estudo prévio e anteprojecto, como
durante o projecto de execução e a obra. Sempre entendi que, quando isso
acontece, o meu dever é o de caracterizar a conformação da contaminação
e trabalhar para a fundir nos conceitos base, mesmo que, para tal, seja
necessário transformá-los. As condições básicas para se dar início à
execução de um projecto de arquitectura são a existência de um programa,
de um orçamento e de uma vontade do «cliente» que promove e paga a
construção do edifício. É uma obra inevitavelmente participada e, em
certa medida, sempre imperfeita. Obrigando esta acepção à reflexão sobre
o limiar de estética e ética, a noção de autoria em arquitectura tende
para deixar de ser resultado de pensamento individual, passando antes a
reflectir o modo como o autor gere uma miríade de influências que são
amiúde contraditórias. Quando o arquitecto trabalha em obras públicas
esta dificuldade agudiza-se. Por um lado, debate-se ainda mais com o
dever do serviço público; por outro, com o desejo, legítimo ou nem
tanto, dos dirigentes políticos se identificarem com a obra promovida e
edificada sob o seu mandato. Resta saber também se é mais legítimo, ou
não, o desejo do próprio arquitecto em se identificar com a obra da qual
é autor e da qual lhe advém responsabilidade profissional, legal e
artística. Corresponderá, como muitos arquitectos querem fazer crer, à
plena satisfação desse seu desejo o cumprimento do serviço público?
Residirá aí o garante de uma espécie de continuidade cultural em
arquitectura? Por outras palavras: até que ponto é legítima a liberdade
do arquitecto na sua proposta de transformação estética do mundo e do
quotidiano dos cidadãos? E qual o limite para aceitar a participação
externa?
No que respeita a estas duas últimas questões,
estou convicto de que estes tempos de fácil e rápida comunicação vêm
baralhar um pouco esta discussão e se, por um lado, proporcionam
ferramentas extraordinárias para comunicar através de imagens, por
outro, são um convite à proliferação do facilitismo consubstanciado na
ideia de que cada obra arquitectónica, para ser relevante, deverá ter um
cunho fortemente icónico que traduz o seu conceptualismo. Esta atitude
pode facilmente conduzir a práticas arquitectónicas distorcidas, pese
embora dos pontos de vista promocional e do sucesso político, popular e
comercial, possam efectivamente ser úteis a muita da arquitectura dita
erudita que é hoje considerada «de qualidade». A meu ver, o que quase
sempre sucede com este tipo de obras é proporem espaços pobres (embora
por vezes espalhafatosos) que se vergam conceptualmente à fímbria do
pensamento arquitectónico que se desenvolve tomando como objectivo
principal o estabelecer de uma ideia fácil de comunicar em poucas
imagens. O jogo estético da arquitectura vê-se assim reduzido a um
conjunto de pré-conceitos compilados num léxico diminuto de imagens e de
combinações imagéticas acreditadas, que se apoiam numa «ideia forte». A
necessidade de uma «ideia forte» é talvez uma defesa instintiva contra a
percepção fragmentada que temos do real. A «ideia forte» induz em nós a
noção de sentido e, consequentemente, de orientação, focando-nos num
referente. Em todo o caso julgo que é errado considerar que a obra
arquitectónica relevante tem de ser necessariamente traduzida por uma
«ideia forte». Mesmo com maiores dificuldades em se fazer notar por
outros meios que não os da própria vivência da obra, um edifício notável
pode perfeitamente prescindir desse correspondente óbvio em favor de um
intrincado soberbo na orquestração de várias ideias fortes, ou menos
fortes, simpáticas e/ou contraditórias entre si. Em princípio, não
parecer haver justificação lógica para que os referentes que orientam a
percepção do espaço urbano se constituam em todos coerentes com
correspondência exacta no conjunto de elementos físicos que resultaram
de uma encomenda a um determinado arquitecto em determinada
circunstância. Essa leitura é irrelevante para o cidadão. Por muito
polémica que seja esta afirmação, a verdade é que nada obriga o
arquitecto a forçar uma coerência conceptual interna (do ponto de vista
estético) da obra, ao responder a uma encomenda, uma vez que a
arquitectura é uma arte que se efectiva como realidade e não como
ficção. O mundo que se cria com o acto da encomenda não tem de se fechar
conceptualmente sobre si porque não deve ser essa a aspiração do
pensamento arquitectónico. Pelo contrário, a aspiração do pensamento
arquitectónico deveria ser a abertura ao exterior, pois é seu dever
constituir-se como resposta transformadora que dá continuidade a uma
realidade preexistente, mudando-lhe uns aspectos, negando-lhe outros e
reforçando outros ainda. O que parece natural é, em face da realidade
díspar que formula um problema espacial concreto, o arquitecto conceber
conceitos híbridos e complexos, pois de outra forma estará talvez mais
atento ao seu ego, ao desejo de ser visível (publicamente e inter pares)
como autor, do que à intervenção estética que nasce do confronto com a
necessidade de transformar o real.
Lisboa / Ponte de Sor, Fevereiro de 2011
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