POEMA
1.
A antiga casa
não lhe mexam. Não procurem
desfazer-lhe os sinais que as sombras
lhe
deixaram. Os canteiros
que fiquem
com pedaços de cacos,
velhas
rugas sob
os alicerces. Plantas
que o
silêncio gerou anos e anos
às telhas
se misturem.
Os dedos,
não lhos marquem
com óleos,
tintas, cores
em toda a
frontaria e nas traseiras
E as
nódoas de musgo, a cansada ferrugem, as
flores
quase desfeitas
abandonem-lhas. Não lhe pintem
também a
luz
que o
tempo debaixo do cimento faz ficar
- o sol,
o vento, a chuva -
mágoas e
alegrias dum século
mais que
incolor e vago.
Absorto e
parado
que tudo
sempre idêntico
sepultado
nas crostas sem limites
fique
como os minutos da terra,
assim desfeitos.
A brisa,
como em sons
de vida e
morte
nas
janelas abertas
passe
- lamento
reflectindo a memória
lenta das
vozes.
Que as
asas lhe resguardem a quietude. Que o sol
a vele e
adormeça sua paz final. Que o Outono
lhe
acalente a ausência: porque
já nada pode
agora
transtornar
a velha
moradia
- os
campos, em redor,
são o disfarce
de
milhares de coisa já perdidas -
aranha
minúscula subindo
os tempos
invisíveis
laços para
sempre desmanchados, porta
que se
entreabre e une
finito e infinito.
2.
Não nos falta o sentido
que entre
inúmeras casas se tresmalha
um Agosto
ou um Fevereiro
supostamente
fugaz
quando o
cansaço cinge o Mundo
e encerra
em si
mesmo
o feroz
nome que os outros meses têm.
A guarida
final
conserva o
vestígio das mãos
e das
figuras
que as
casas erguem
ponto a ponto.
3.
A rua é mais a Sul
e tem por
dentro recordações
- velhos
lugares que um sopro desvelou -
o mar,
pessoas, pedras
acumulação
de signos e raízes
que de
mineral têm
apenas a
ausência. No ar se firmam
num quarto
ou numa sala
como
recantos cedo destroçado
algures e
em qualquer
latitude e
longitude
como
outrora entre a turba
alguém a
quem amámos.
As ondas
na manhã
nenhum som
ou sinal
erguem em
nós
na terra
que começa
- amora
opalescente
até ao
horizonte
entre
pedras e folhas entre
meridianos
cruzados -
e a
promessa que os troncos
anunciam
desfaz-se
(um bosque
bem real
mas que
desaparece
como em
“flashes” sucessivos)
como, no
Inverno, uma ave que passa
como uma
notícia num jornal antigo.
O dia vai
partir, parte
finalmente. O negrume parece
um
negrume disforme (
e é apenas
uma
penumbra excessiva
como um
soluço, como
o velho choro que os
Pais
sempre
conhecem). As sombras, na manhã
- nessa
manhã que a memória nos oferta
para que
mais soframos, ou então
para que o
riso frio se apresente -
renovam-se
e repousam
sobre os
muros desgastados. (No Café
que havia
a uma esquina
alguém
crava num tabique
um prego
onde alguém pendurará
o retrato
de alguém ou calendário
de dias
que alguém terá).
A noite,
ir-te-ás tu? Provavelmente sonhas
com as
chamas que sobre os rostos ruflam
diurnas
crispações
de
claridade ou de
recordação
e ao longe
como
fotografia
que a um
canto sobreviveu
o mar faz
pressentir
a mágoa
que docemente aflora
os nossos
dedos queimados.
4.
Assim, que ninguém trema. Digo
entredentes e apalpo
os papéis
onde luzes, corpos que zumbem, um combóio
cobram
existência. Um moscardo, mais leve
que a sua
própria efígie
recomeça,
na noite, o seu branco
ondear. O
suor
mancha
os lençóis, a camisa
que
usávamos a esmo e que
tão bem
acompanhou
visões e pensamentos. A cal
é como um
desejo
aberto, os muros
prolongam
o silêncio, como um dorso numa cama
apaziguado. Como um corpo entre duas
cidades,
aguardando em silêncio
o tempo
que não veio, o tempo
entre ruas
esperando para sempre.
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