|
|
|
REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
nova série | número 38 |
abril-maio | 2013
|
|
|
|
MARIA ESTELA GUEDES
Um bilhete para o Teatro do Céu
Peça escrita por sugestão de
Alexandra Soveral Dias e Lucília Valente, a quem é dedicada
Foto: Ed. Guimarães |
Maria Estela Guedes. Poeta, ficcionista,
cronista, dramaturga, historiadora da História Natural e da
Maçonaria Florestal Carbonária. Tem umas dezenas de títulos
publicados. |
|
|
|
EDITOR |
TRIPLOV |
|
ISSN 2182-147X |
|
Contacto: revista@triplov.com |
|
Dir. Maria Estela Guedes |
|
Página Principal |
|
Índice de Autores |
|
Série Anterior |
|
SÍTIOS ALIADOS |
|
TriploII - Blog do TriploV |
|
Apenas Livros
Editora |
|
O Bule |
|
Jornal de Poesia |
|
Domador de Sonhos |
|
Agulha - Revista
de Cultura |
|
Arte - Livros Editora |
|
Revista InComunidade (Porto) |
|
|
|
|
NOTAS MÍNIMAS
AÇÃO – Todas as personagens,
terrestres e extraterrestres, se encontram em situação de queda, por
isso aspiram à felicidade, imaginada como o Céu. No final, descobrem que
o Paraíso ainda é a Terra.
A Gravelina é uma figura realista. Os
extraterrestres são algo fantasmáticos e falam cantando, à maneira de
gregoriano.
CENA – Compreende três setores: o
palco divide-se em duas partes, uma, fechada, a outra em espaço aberto.
De um lado, uma eira. No outro, a sala de ensaios do Teatro do Céu. O
terceiro setor abrange o espaço do público.
Caso haja muitos atores, alguns podem
treinar-se na sala de ensaios, enquanto decorrem as conversas: saltam,
tocam instrumentos, dançam, fazem malabarismo, etc..
GUARDA-ROUPA – Os extraterrestres
vestem fatos metalizados, com pequenas asas nos ombros e nos tornozelos
e usam uma auréola nos capacetes, do mesmo material.
PERSONAGENS
NO TEATRO DO CÉU:
CENÓGRAFA, ENCENADORA, GRAVELINA,
RAFAEL, MIGUEL, LILI
Outros artistas, cantores e bailarinos
NA CÁPSULA :
BEL, KEZABEL, YEKUN
|
|
|
|
ENTRADAS PARA O TEATRO DO CÉU
Dez bilhetes para o Teatro do Céu | Isolina Lages
E o Céu, onde está? | Alexandra Soveral Dias
Bilhetes para o Teatro do Céu | Francisco
Chinita
Um bilhete para o Teatro do Céu | Maria Estela Guedes |
|
|
|
ENTRADA
NA SALA DE ENSAIOS DO TEATRO DO CÉU.
Um coro ou uma banda ensaiam. Erram e
repetem. Alguns bailarinos fazem exercícios.
|
|
|
|
|
|
MARIA ESTELA GUEDES
Um bilhete para o Teatro do Céu
Lisboa, Apenas Livros, col. Teatro no cordel, nº 14, 2013
http://www.apenas-livros.com/pagina/inicio |
|
|
|
PRIMEIRA CENA
NO TEATRO DO CÉU.
Montada num escadote, com um balde ao
lado, a cenógrafa pinta o cenário, numa zona acima da sua cabeça. Pinta
em tons de azul e começa a distinguir-se, na noite constelada, com Lua e
Sol lado a lado, o bilhete para a estreia da nova peça:
«AUTO DA BARCA DO INFERNO»
GIL VICENTE
TEATRO DO CÉU
Entra a encenadora, com as folhas da
peça na mão.
ENCENADORA (admira a pintura) – Belo
céu constelado, parece que anuncia bom tempo… Então, como vai esse
trabalho?
CENÓGRAFA – Mais os menos, mais ou
menos, tirando a dor que já sinto no braço, de tanto pintar ao alto…
ENCENADORA – Imagina agora Miguel
Ângelo a pintar o teto da Capela Sistina…
CENÓGRAFA – Muito obrigada pela
comparação, mas não mereço tanto…
ENCENADORA – Ora, ora, nem tanto ao
céu, nem tanto à terra… A cada um o seu próprio mérito, e até no esforço
físico ele se mede. O desgraçado passou uma eternidade deitado de
costas, num andaime, a pintar Moisés, Adão e Jeová nas cúpulas do céu…
Muito sofreu ele…
CENÓGRAFA – O que mais me apaixona no
que ele pintou é essa imagem de Deus e Adão a tocarem-se, dedo no dedo…
Lembram-me o ET…
ENCENADORA – Spielberg é que se deve
ter lembrado do toque dedo no dedo de Miguel Ângelo quando criou o ET…
Sopros e toques mágicos, símbolos da criação… (Olha para a entrada)
Estes atores são tão pouco profissionais, chegam sempre atrasados!
CENÓGRAFA – Estudantes, que querias?
Não respeitam nada, nem os professores, nem os pais, nem a disciplina,
nem pelos vistos a encenadora…
ENCENADORA – E dizem eles que gostam
de fazer teatro…
CENÓGRAFA (espreguiça os braços, pega
no balde e diz, descendo do escadote) – Se me acho em casa, numa bela
banheira, vou-me sentir no Paraíso…
ENCENADORA – Paraíso… Quem me dera…
Nem tenho dormido com tanta ralação…
|
|
|
|
SEGUNDA CENA
NO TEATRO DO CÉU.
A cenógrafa continua a pintar o céu,
montada no escadote, com o balde ao lado. A encenadora estuda a peça.
Entra uma camponesa, o avental dobrado com ovos dentro, pergunta à
encenadora:
GRAVELINA – Vocemecê compra-me uns
ovos?
ENCENADORA – Não… Ovos?! Não, muito
obrigada, não preciso…
GRAVELINA (volta-se para a cenógrafa)
- Compre-me estes ovos, são caseiros, fresquinhos…
CENÓGRAFA – Obrigada, obrigada, não
preciso de ovos… A menos que fosse o ovo cósmico…
GRAVELINA (ofendida) – Não é cómico, é
caseiro! Não diga mal dos meus ovos, olhe que as galinhas que os puseram
não comem ração! Só lhes dou milho, couves com farelos e restos da minha
comida!
CENÓGRAFA – Acredito, acredito, não
dizia mal dos seus ovos… A senhora quem é? Nós estamos a trabalhar…
GRAVELINA – A trabalhar?! (Faz um
gesto em volta) Lindo trabalho, não há dúvida… Uma festa, é o que é!
(Vira-se para a cenógrafa) Atão?! Não me conhece? Sou a Gravelina, da
casita ali ao lado, com quintal… Vende-me esse pincel?
CENÓGRAFA – Tenha paciência,
Gravelina, estamos a trabalhar! Não queremos comprar nem vender nada…
GRAVELINA – Ora o carago! Ninguém quer
comprar nem vender nada! Que inferno, como é que este país há de
progredir se ninguém quer vender nem comprar nada? (Sai por entre os
espectadores, com gestos dramáticos, aborrecida, quase deixando cair os
ovos, e pergunta ao primeiro que
apanha a jeito) Juro pelas alminhas que são frescos! Das minhas
galinhas! Compra-me meia dúzia? (Continua a perguntar, enquanto vai
saindo) Vende-me essa gravata? Ah, não? Inferno… Compra-me os ovos?
Fresquinhos… Não me quer vender essa bolsa? Diacho de vida, neste país
já ninguém quer comprar nem vender nada!
|
|
|
|
TERCEIRA
CENA
NA EIRA.
Cai uma cápsula de plástico
transparente no meio da eira, com grande splash! Dentro estão três ETs,
que se estampam no chão. Levantam-se, magoados, amparando-se às paredes.
Verificam se as auréolas não ficaram amolgadas.
KEZABEL (sacudindo o fato) – Temos
problemas graves, cara comandante Bel!
BEL (palpando o traseiro) - Pois
temos, bem os sinto…
YEKUN (olhando para os painéis de
comandos) – Ficámos sem comandos, sem instruções nenhumas… Lá terei
outra vez de vos ensinar a ler, e a escrever à mão, com tinta…
BEL – Não te deites a adivinhar, isso
seria o fim do mundo, um retrocesso de milhares de anos na civilização!
(Para os outros, que desmontam e remontam computadores) Já no planeta
Lugar eu tinha avisado, avisei durante toda a viagem... Que O Cintilante
nos livre de recuarmos a eras pré-ciberespaciais!
YEKUN (mexendo numa máquina) – O
gerador de signos não funciona. Não é por nada, mas lá terei de vos
ensinar…
BEL – Cala-me essa boca, Yekun! Tu não
digas um absurdo desses! Sem gerador de signos, voltávamos à era
pré-lugárica!
KEZABEL – Que desgraça, o
descodificador linguístico também se avariou…
BEL - O descodificador também não
funciona?! Não acredito, não é possível! Yekun, vê se consegues
recuperar alguns dados, não sei onde aportámos…
YEKUN (tentando abrir a porta) – Sim,
comandante. Certo é que estamos muito longe de casa, mesmo muito longe…
Se ao menos pudéssemos sair da cápsula para analisar o terreno
in loco… Ai, quem me dera ter
chegado a um planetazinho habitado, mesmo que fosse atrasado e pobre!
BEL – Às vezes, por um desses
fenómenos probabilísticos… (Tenta abrir a porta) A porta está encravada,
Yekun, e não me arrisco a deixar sair ninguém sem saber se o planeta
onde estamos é amigável. Precisamos de enviar a troika com um robô para
coligir amostras!
YEKUN – Não sei se a troika está a
funcionar, pode ter avariado também. Depois verifico se ainda tem rodas.
(Tenta de novo abrir a porta) Está encravada, eu já tinha tentado
abri-la e não consegui… Ai, quem me dera voltar para o céu!
BEL - Bem podes esquecer Lugar, não
existe retorno a casa…
KEZABEL – Não me conformo com o
exílio, a minha terra prometida ainda está lá em cima, apesar de
destruída.
YEKUN – Exílio? Não é exílio, é
expulsão… Fomos expulsos por nossa própria causa, demos cabo do planeta
com tanta ganância e tanta corrupção!
BEL – Nem exílio nem expulsão, sejamos
práticos e baixemos a grimpa: ainda me dói o rabo da queda.
E a porta que não abre…
KEZABEL – Seja queda, se preferes. Em
circunstâncias tão delicadas, não perderei o meu tempo a discutir
palavras… Importante é que em Lugar não deve ter ficado ninguém, a
atmosfera já estava irrespirável, não havia alimentos, nem água potável,
e as cidades costeiras já se tinham afundado todas.
Fomos dos últimos a sair.
BEL –
Fomos dos últimos a cair…
KEZABEL – Ou isso, ou isso… Pode ser
que nos píncaros mais altos das montanhas… Se este planeta onde
aportámos for habitado por alguma espécie idêntica à nossa, podemos
procriar com os indígenas.
YEKUN – Não pensas em mais nada, pela
corte divina!
BEL – Não pensas em mais nada,
Kezabel! A superpopulação foi o primeiro passo para a queda! Um planeta
tão pequeno como Lugar era lá capaz de suportar o desgaste agrícola para
alimentar tanta gente! Nem aquíferos havia já, secaram todos! Sabes
quantos litros de água se consomem para produzir uma simples alface? Vá,
vê lá se abres a porta, depois tratarás da sobrevivência da espécie.
(Tenta abrir a porta) Já em Lugar eu tinha reclamado que não íamos longe
numa cápsula hipergalática sem manutenção…
KEZABEL – Sorte ainda tivemos nós de
chegar a algum lado nela, depois de toda aquela devastação! O pior é a
porta estar encravada, temos de a abrir. Pelo Senhor de Lug!, temos de a
abrir para enviar a troika! Empurrem, empurrem, vamos todos fazer força
ao mesmo tempo: um, dois, três! (Fazem muita força para abrir a porta
mas ela não abre).
|
|
|
|
QUARTA CENA
NO TEATRO DO CÉU.
A cenógrafa continua em cima do
escadote a pintar o céu. Entra um grupo de estudantes. Diz a encenadora,
acolhendo-os com ar teatral, a declamar a peça:
ENCENADORA –
«À barca, à barca, houlá!
que temos gentil maré! »
LILI (continuando o texto de Gil
Vicente) – «- Ora venha o carro a ré!»
RAFAEL
- «Feito, feito! Bem está!
Vai tu muitieramá,
e atesa aquele palanco
e despeja aquele banco,
pera a gente que virá.»
GABRIEL - «À barca, à barca, hu-u!
Asinha, que se quer ir!
Oh, que tempo de partir,
louvores a Berzebu!»
ENCENADORA
- «Ora, sus! que fazes tu? Despeja todo esse leito!»
CENÓGRAFA – Ena, ena! Parece que
Mestre Gil Vicente já está todo decorado!
ENCENADORA – Parabéns, parabéns!
Estava aqui a resmonear contra vós, pois chegais sempre atrasados, mas
pelo menos já sabeis a entrada!
GABRIEL – Passámos a noite a decorar o
«Auto da Barca do Inferno», mas Gil Vicente é muito difícil, não se
percebe quase nada do que escreveu…
RAFAEL – E não é por ser em verso…
Aquilo que se percebe levanta problemas…
LILI (para o Rafael) – Fogo!, tens
problemas? Também eu! E ainda dizem que é teatro popular!
GABRIEL – Popular, uma ova! É do mais
erudito que há!
RAFAEL – Tem muitos palavrões…
CENÓGRAFA (advertindo o Rafael com o
pincel) – São as nossas raízes culturais!
ENCENADORA – Vá, a língua não é um
corpo inorgânico, inerte como um bloco de pedra. Vai mudando ao longo
dos tempos. Por isso o modo de falar de Gil Vicente já não corresponde
ao atual. No tempo dele, essa era a linguagem usada pelo povo. Hoje,
como o discurso de Gil Vicente se tornou difícil de decifrar, ganhou ar
erudito. Tudo depende do grau de conhecimentos. Se souberdes, é popular.
RAFAEL - «Muitieramá»! «Vai tu
muitieramá»! Precisamos de um descodificador para saber o que isto quer
dizer…
ENCENADORA – Má ocasião… Muitieramá:
muito má hora! Vai em muito má hora - é o que isso quer dizer…
LILI – Vai para as profundas dos
infernos…
ENCENADORA – Claro, Lili, a ideia é
mesmo essa. «Muitieramá» até pode ser um palavrão… A barca vai para o
Inferno, carregada de pecadores, e as personagens dizem muitas asneiras.
É natural, quando estamos exaltados. Mas olha que temos também a barca
da Glória, que vai para o Paraíso… Não leste? Uma das personagens que o
Anjo se recusa a levar para o Céu é especialista em palavrinhas! Lá
chegaremos, à alcoviteira. Ela tenta seduzir o Anjo, chamando-lhe «meu
amor, minhas boninas», gaba-lhe o «olho de perlinhas finas», mas o Anjo
não se deixa seduzir e manda-a para o Diabo.
LILI –
Ah, é? Cool!
GABRIEL - Bué de fixe!
ENCENADORA – Daqui a trezentos ou
quatrocentos anos, também vai ser preciso um descodificador para
sabermos o que significa o arcaísmo «bué de fixe»! E «cool», céus!
«Cool» é inglês, vejam se falam a nossa língua! «Cool» é que está tão
errado que nem figura no dicionário, agora os palavrões estão lá todos,
são bom português! Bem, vamos ao ensaio?
CENÓGRAFA – A palavra «cool» já foi
dicionarizada…
ENCENADORA – Não me digas!
CENÓGRAFA – Sim, por Houaiss…A
primeira edição saiu no Rio de Janeiro em 2001.
ENCENADORA – «Bué» figura nos
dicionários digitais. Se formos à Internet, ao «Dicionário Priberan», lá
está. Sem origem certa, talvez quimbundo. Deve ter sido contributo dos
angolanos. De qualquer modo, interessa é assimilar a ideia de que os
termos considerados grosseiros têm a sua função própria na língua e
operacionalidade estética na arte. Tal como as imagens obscenas, de
longuíssima tradição…
CENÓGRAFA – Ah, isso é uma coisa que
tenho atravessada na garganta! As imagens obscenas que ornavam o portal
da Sé de Lamego foram quase todas destruídas, por iniciativa dos padres!
Fulcanelli deve dar saltos na cova quando se fala do assunto, e mais não
foi na catedral de Notre Dame que se perpetrou tal sacrilégio!
ENCENADORA – A hipocrisia da Igreja
tem servido para se destruir a si mesma. Só gerou essa moral doentia em
que pululam padres pedófilos, beatas, e sobretudo ignorância dos valores
culturais. Reprimindo a sexualidade, o catolicismo só conseguiu gerar
vícios.
CENÓGRAFA – Li algures que um cardeal
teve a coragem de dizer que a Igreja está atrasada duzentos anos… E isto
foi há dias.
ENCENADORA – Pois, mas o problema é
que a Igreja não é constituída só pelo clero, Igreja é o mundo de todos
os católicos. Os católicos, na sua maioria, e não só provinciana, é que
estão atrasados duzentos anos. O seu discurso é completamente estranho à
experiência e às necessidades das pessoas que frequentam os serviços
religiosos. É lamentável, lamentável! Mas voltemos a Gil Vicente… Diz,
Gabriel…
GABRIEL – Dão-se louvores a Berzebu…
ENCENADORA – Oh, meus amigos, isto é o
Teatro do Céu, mas a peça é sobre os ladrões e outros criminosos, e já
se sabe que os maus vão para o Inferno, onde reinam os demónios,
comandados por Belzebu!
CENÓGRAFA (hasteia o pincel) – Acima
de Belzebu, o chefe máximo é Lúcifer, o que transporta a Luz!
ENCENADORA – Ah, sim… Ou ah, não…
Lúcifer, ao que se diz, não é nenhum demónio. Tudo não passou da
tradução errada de uma passagem do profeta Isaías, em que aparece a
palavra «lucifer», atribuída ao planeta Vénus, com o significado de
«aquele que transporta a luz». Nada mais.
CENÓGRAFA (exaltada) – Isso, más
traduções e manipulação, para demonizar as divindades antigas, como o
deus celta Bel, a que outros chamam Lug. E os ladrões vão mas é para as
Caraíbas e têm gordas contas nos bancos da Suíça… Quem se lixa sempre
somos nós! (Tropeça no balde, este cai do escadote) Poça! Poça que
entornei o caldo!
RAFAEL (aflito, apanha o pincel e
devolve-lho) – Cuidado! Cuidado!
ENCENADORA – Não desperdices tinta,
olha a política de austeridade! Estamos sem dinheiro. Quem se lixa somos
nós, claro, concordo. Depois nunca há verbas para a cultura. Ainda não
consegui patrocínio, por isso o cenário vai ser só o céu pintado. Como
não há dinheiro para barcas, resolve-se o problema com mímica. (Vira-se
para o Rafael) Rafael, finge que levantas a vela! (Vira-se para o
Miguel) E tu, faz de conta que estás dentro da barca, tira o saco de
cima do banco para as almas se sentarem! (Vira-se para a rapariga) Lili,
ensaia-me aí esses remos!
CENÓGRAFA – Olhem, para se perceber
bem que somos governados com política de austeridade, vou pintar dois
letreiros, um a dizer «Barca da Glória», outro a dizer «Barca do
Inferno».
ENCENADORA - O teatro é isso mesmo,
alegorias e representação! Os espectadores terão de imaginar o cenário e
os adereços!
|
|
|
|
QUINTA
CENA |
|
NO TEATRO DO CÉU.
A cenógrafa pinta, a encenadora estuda
as marcações, andando de cá para lá com os estudantes, a posicioná-los
nos lugares certos. Entra a Gravelina, com um cocho muito grande às
costas.
GRAVELINA (para a Lili)
– Vocemecê compra-me este cocho?
LILI (espantada) – Não, senhora! Não
quero cocho nenhum, obrigada, estamos a ensaiar a peça de Gil Vicente!
GRAVELINA (olha em redor) – E onde
está esse Gil Vicente, para me comprar o cocho ou vender a peça?
LILI – Tenha calma, eu explico…
GRAVELINA – Explica nada, eu não como
explicações, como açorda de coentros! Preciso de comprar e vender, quero
é fazer negócio! Compre-me o cocho, carago! Ainda está novo, nunca
serviu lá em casa! Nunca, que eu não o queria estragar!
RAFAEL – Para que queria o cocho se
nunca o usou?
GRAVELINA – Ai, menino! Atão? Se eu
fosse a usar as louças e a mobília, estragava-se tudo, depois ficava sem
nada! (Volta-se para a Lili) Vá lá, um cocho tão bonito… Cortiça da
melhor qualidade…
ENCENADORA – Acabou o recreio, vamos à
peça! Vamos à cena das palavrinhas, Rafael! O que vais reprovar são as
palavras sedutoras, carregadas de malícia, e não os palavrões! Vá, não
tenhas medo! Tu és o Anjo e vais levar os bons para o Paraíso na barca
da Glória. Lili, tu és Brízida Vaz, a Alcoviteira. Vendias virgens aos
padres! Apesar das tuas poucas vergonhas, agora, depois de morta, queres
ir para o Céu. Para isso, tentas seduzir o Anjo! Mas o Anjo dá-te com os
pés.
MIGUEL – Ah, boa! O Anjo vai-te mandar
para a barca do Inferno, hi-hi!
ENCENADORA – Haja disciplina, Miguel!
Não interfiras! Rafael, dá a deixa à Lili.
RAFAEL (ANJO) - «Eu não sei quem te cá
traz...»
LILI (BRÍZIDA) –
«Peço-vo-lo de giolhos!
Cuidais que trago piolhos,
anjo de Deos, minha rosa?
Eu sô aquela preciosa
que dava as moças a molhos,
a que criava as meninas
pera os cónegos da Sé...
Passai-me, por vossa fé,
meu amor, minhas boninas,
olho de perlinhas finas!
E eu som apostolada,
angelada e martelada,
e fiz cousas mui divinas.
Santa Úrsula nom converteu
tantas cachopas como eu:
todas salvas polo meu
que nenhüa se perdeu.
E prouve Àquele do Céu
que todas acharam dono.
Cuidais que dormia eu sono?
Nem ponto se me perdeu!»
ENCENADORA – Está perfeito, Lili,
perfeito!
GRAVELINA (para a Lili) – Pelas
alminhas lhe juro: cortiça da melhor qualidade, um cocho em estado novo!
LILI
– Obrigada, obrigada, os meus pais deixaram de me dar mesada, não
posso comprar cocho nenhum…
GRAVELINA – Atão vende-me o seu colar?
LILI – Ai!, tenha paciência! Então não
sabe que não temos verba, por causa da política de austeridade? Não se
pode comprar nem vender nada!
GRAVELINA – Ora o carago!
RAFAEL – Ai, se a mamã ouvisse!
GRAVELINA – Já ninguém pode comprar
nem vender nada! Este país está de pernas para o ar, nunca tal se viu!
Putaça de vida, ninguém pode comprar nem vender nada! (Vai saindo de
cena por entre os espectadores, a perguntar, a um e outro) Vende-me essa
pulseira? Compra-me o cocho? Em estado novo, cortiça da melhor
qualidade… Caraças, neste país de miséria já ninguém pode comprar nem
vender nada!
|
|
|
|
SEXTA
CENA |
|
NA SALA DE ENSAIOS.
A cenógrafa pinta o céu. Um grupo de
estudantes recorta bilhetes azuis e mete-os numa caixa. A encenadora
vigia o trabalho.
GABRIEL – Quem ganhar o primeiro
prémio tem direito a três entradas para a estreia.
RAFAEL – Lotaria das Almas? Até diz
bem com o Teatro do Céu. Quem teve esta ideia tão original?
GABRIEL – A ideia não é original, já
existiu uma Lotaria das Almas, em tempos… Fui eu que me lembrei, estava
a consultar na biblioteca um número da
Revista Lusitana, para o meu
trabalho de pós-pós-doutoramento…
LILI – Como eu te entendo bem… A minha
irmã também acabou o curso há mais de cinco anos, não conseguiu
colocação em parte nenhuma, de maneira que tem andado a especializar-se
em projetos de pós-pós…
GABRIEL – Esperem aí, vou só buscar a
fotocópia…
LILI – Os prémios desta Lotaria das
Almas deviam dar direito a emprego…
RAFAEL – Eu era para acabar este ano,
mas já sei que vou viver de bolsas para projectos pós-pós o resto da
vida…
LILI – Isso, se te derem bolsa…
RAFAEL – Se não derem, que remédio
senão continuar a viver à custa da mamã! Ai, e nós no Teatro do Céu! É
que só mesmo em teatro, porque a vida vai por aí num inferno!
GABRIEL (volta com as fotocópias)
– Olhem, é um artigo do Visconde
de Vila Moura sobre a Lotaria das Almas, no século XVIII…
LILI – Ah!, Lotaria das Almas, Lotaria
das Almas! Só pode ser obra da Igreja a sacar dinheiro ao povo…
GABRIEL – Vou ler um pedacinho:
«Aos fiéis devotos das boas almas: Não
obstante ser tão grande a multidão de penas, aflições e trabalhos que o
pecado trouxe consigo ao Mundo; e sendo tão terríveis os tormentos que a
astúcia do demónio, e a crueldade dos tiranos inventaram para atormentar
os mártires com Cristo, sua cabeça: a tudo é superior e excede
incomparavelmente qualquer pena do Purgatório, ainda a mínima de todas
das que aí se padecem: assim o afirmam claramente Santo Agostinho e São
Bernardino de Sena. Daqui se infere, e claramente se conhece, que
aquelas Benditas Almas têm uma necessidade de sufrágios tão extrema que,
no sentir de São Boaventura, não pode ser mais extrema. Este o motivo
porque com pranto contínuo nos pedem e obrigam a que com o socorro das
boas obras as tiremos de tal abismo de penas…
Este é pois o meio mais eficaz para
mover a Divina Clemência ao alívio, e desejada liberdade daquelas
Benditas Almas; por ele se tem livrado das vorazes chamas mais de 600
almas.»
LILI – Só nos faltava o Purgatório, no
inferno já vivemos nós…
CENÓGRAFA – O que mais nos falta é a
felicidade…
LILI (irritada) – Acho uma
impertinência! Todos sacam e ninguém dá trabalho! O governo rouba, o
patrão rouba, todos roubam e até a Igreja saca o mais que pode! Que
futuro será o meu? A única saída é emigrar, tenho uns primos na
Austrália, vou para lá catar cangurus! (Dá um encontrão à caixa dos
bilhetes, que saltam no ar e voam, levados por uma rabanada de vento.
Ficam todos a olhar para o céu e a tentar agarrar os bilhetes).
ENCENADORA – Agora a Igreja já não
fala de Inferno nem de Purgatório. Calou-se com esse folclore.
RAFAEL – Credo!, se a mamã ouvisse!
LILI - Quem agora se ocupa de anjos e
demónios são os especialistas de ovnis. Dizem que são extraterrestres…
CENÓGRAFA – Ah, mas o mal existe, o
mal existe! (Acena com um dos bilhetes e desce do escadote, no último
degrau tropeça e atira-o ao chão). Diabos, eu não dizia?! O mal existe,
o mal existe!
ENCENADORA – Pois existe! O inferno
somos nós!
RAFAEL – O inferno são os outros…
LILI – E o Céu, onde está ele?
ENCENADORA (faz um gesto abarcar o
teatro todo) – Aqui.
CENÓGRAFA (aponta para a pintura) –
Ora essa, o céu está aqui!
|
|
|
|
SÉTIMA
CENA |
|
NA CÁPSULA.
Um bilhete azul da Lotaria das Almas
paira dentro da cápsula, acima das cabeças dos extraterrestres. Olham
para cima, tentam apanhá-lo.
KEZABEL – Pel’O Cintilante!, consegui
agarrar o objeto!
BEL – O que é?
KEZABEL – Não sei… Parece feito de
celulose.
YEKUN – Não é por nada, mas ainda
terei de vos ensinar de novo a escrever com tinta e a ler…
BEL – Cala-te com essa conversa, já
aborreces! Que teima! Kezabel, deixa ver esse objeto voador não
identificado. (Kezabel entrega-lhe o bilhete, ela volta-o de todos os
lados, intrigada) Parece feito de celulose… Não veio de Lugar, na nossa
cápsula intergalática.
KEZABEL – Não, definitivamente. Que
estranho, nunca na minha vida tinha visto um objeto destes… (Chama)
Yekun, por gentileza…
YEKUN – Farto que estou de garantir
que ainda terei de vos ensinar de novo… E os métodos de ensino são
radicais…
BEL – Por Lug, o Senhor de Lugar!
Cala-te com essa redundância e tenta identificar!
YEKUN – Isto é um suporte de mensagem
em celulose, e entrou por aquele buraco da cápsula, lá em cima…
(Olham todos)
BEL – Se entrou, veio de fora… Por
conseguinte, em relação a nós, é um objeto alienígena… Se é de celulose,
quer dizer que este planeta tem florestas e é habitado por seres capazes
de as transformar…
KEZABEL – E se tem florestas e a
cápsula rebentou, aquilo que estamos a respirar é oxigénio… Ah,
valha-nos ao menos isso, só falta abrir a porta para podermos entrar no
Céu!
YEKUN – Sinto-me aliviado, é como se
não tivéssemos saído de casa… Uma viagem tão longa, tão longa, e partir
não passa afinal de um regresso… Enfim, quase… Um regresso a tempos
anteriores à queda…
BEL (palpando o rabo) – Identifica o
objeto, Yekun! Não te percas em considerações estranhas à conversa…
KEZABEL – Aconselho-vos sinceramente a
procriar com os indígenas… É o que vou fazer mal ponha o pé neste novo
mundo… A hibridação tem sido um recurso dos deuses desde os confins dos
tempos! Só espero não precisar de me disfarçar de cisne, de touro, nem
de…
BEL – Nem de dinossauro, não é?
Cala-te, Kezabel! Não pensarás tu em mais nada? (Volta-se para Yekun) E
dizes tu, Yekun, que neste suporte de celulose está impressa uma
mensagem? Uma mensagem para nós, Yekun?
YEKUN – Sim, pel’ O Cintilante! A
mensagem caiu do céu, logo é para nós.
BEL – O que diz?
YEKUN – Sem descodificador nem gerador
de signos, tereis vós de a decifrar… Disso depende a nossa salvação.
BEL – Não sei ler… (Volta-se para
Kezabel, dá-lhe o bilhete) Kezabel!
KEZABEL (olha para o bilhete, vira-o
de todos os lados, perplexo e desolado) – Por Lug, o Senhor de Lugar!,
não sei ler…
YEKUN – Tendes a salvação pendente de
uma insignificante mensagem e atreveis-vos a declarar que não sabeis
ler? (Ordena) Lê!
KEZABEL – Não sei ler…
YEKUN (furioso, estica o indicador e
toca na testa de Kezabel) – Em nome de Lug, o Senhor de Lugar, lê!
KEZABEL (vai tentando soletrar, erra
muito, até acabar por ler de forma perfeita):
LOTARIA DAS
ALMAS – PRIMEIRO PRÉMIO
Três entradas
para a estreia
«AUTO DA BARCA
DO INFERNO»
Teatro do Céu
YEKUN – Olha, este planeta é tão
minúsculo que a mensagem nem refere o nome do país…
BEL – País? Pelo que ouvimos, nem o
nome da cidade vem indicado…
KEZABEL – Querem ver? O teatro é mesmo
aqui ao lado, para a mensagem omitir sinais de referência que seriam
indispensáveis em qualquer informação global…
BEL (pega no bilhete e vira-o de todos
os lados) – Ainda não sei ler esta língua estranha, Yekun… E sou eu quem
comanda a nave! Quem havia de dizer que a nossa queda ia ser tão
apocalíptica? Sem gerador nem descodificador de signos, sou uma
verdadeira analfabeta. Concede-me o dom de falar esta língua…
YEKUN (toca-lhe na testa com o
indicador) – Em nome de Lug, o Senhor de Lugar, ordeno-te que leias!
BEL (palpando a auréola) – Ah, sinto a
cabeça rodeada por uma auréola de estrelas flamejantes! Agora, sim,
entendo… Auto da Barca do Inferno… Ganhámos três entradas para a estreia
de uma peça de teatro, o que é um bom augúrio! O planeta é habitado por
seres inteligentes e amigáveis. Até nos enviaram um anúncio de salvação,
a dizer que chegámos ao Céu! Estamos no Céu, amigos! No Céu! Mas ou o
planeta é minúsculo ou a mensagem é secreta, pois não diz onde se
localiza o Céu… Precisamos de comunicar com esta gente, Yekun! Vamos
tentar abrir a porta outra vez!
KEZABEL – Teremos voltado ao Céu?!
(espreita através do plástico) Não percebo, não se vê nada…
YEKUN – Mensagem mais selada que um
texto sagrado, é verdade… Vamos lá então tentar de novo, para podermos
enviar a troika. Um, dois, três! (Fazem força para abrir a porta mas ela
não abre).
|
|
|
|
OITAVA
CENA |
|
NA EIRA.
A Gravelina, com um molho de couves
nos braços, está espantada diante da cápsula. Estica o dedo, com
cuidado, e mal toca no plástico. Para
sua surpresa, abre-se uma porta. Entra a medo.
GRAVELINA – Ora o carago! Que barraca
é esta? E vocemecês são do teatro? Que fatiotas mais engraçadas…
Compra-me este molho de couves?
YEKUN – Muito obrigado, mas não temos
dinheiro… Acabou-se, lá em cima… E o Céu, sabe onde se localiza?
GRAVELINA (sem entender) – Onde se
localiza o Céu?! O Céu?! Onde fica o teatro, é isso? Atão, é ali! Ali,
onde estão os seus colegas! (Volta-se para a comandante) Compra-me as
couves? Couves tronchas, acabadas de apanhar na minha horta! Limpinhas,
sem bicho…
BEL – Sem bicho, curioso… Sabe a
senhora, acabou-se o dinheiro lá em cima, não havia mais alternativas…
GRAVELINA – E vendem-se, as
alternativas?
BEL – Vender alternativas!? Não…
GRAVELINA – Putaça de vida,
já ninguém vende nem compra nada!
Atão, se não vende alternativas nem compra as couves, troca esse
capacete pelo meu avental? O capacete dava jeito ao meu filho, por causa
da mota…
BEL – Não posso, preciso dele…
GRAVELINA – Mundo de merda, já nem por
troca me sustento! (Sai por entre os espectadores a gritar) Não me
compra as couves? Pois vá para o inferno, também não lhe compro nada a
si! Ora a minha vida, como hei de pagar a renda e dar de comer aos
filhos, se já ninguém tem dinheiro para comprar nada? Eu bem me esforço
por aguentar o negócio, mas isto é um desgoverno! Ninguém tem dinheiro
para comprar nada! E aqueles ali a ensaiar prò teatro! Que rica vida,
não há dúvida! Aquilo é que é uma festa! E devem ganhar bem… Eu também
quero ir prò Teatro do Céu! (Volta para trás, entra em cena) Teatro?
Carago, se o teatro dá dinheiro,
também quero entrar nessa barca! Eu já vos canto a minha cantiga!
KEZABEL – Extraordinária espécie,
apesar de biologicamente idêntica à nossa. (Para o público) Preciso de
uma indígena boa em período fértil…
|
|
|
|
NONA
CENA |
|
NA SALA DE ENSAIOS.
Presentes todos os que entram na peça,
salvo os extraterrestres. Ocupam-se a dançar, sozinhos ou em pequenos
grupos. A cenógrafa continua a pintar o céu.
ENCENADORA – Vá, Rafael, é a tua vez.
Íamos na parte de Joane, que é o Parvo no «Auto da Barca do Inferno» e
morreu de caganeira. Vá lá, isso com energia! Joane está muito zangado
porque o Diabo o quer levar para o Inferno, mas ele recusa-se a entrar
na barca do cornudo, quer é ir com o Anjo na Barca da Glória. E o Anjo
concede-lhe a graça, porque Joane não tem malícia, por isso merece ir
para o Céu. Que diz ele ao arrais do Inferno? Vá, Rafael, descontrai-te!
(Para o Miguel) Dá a deixa do Diabo, Miguel.
MIGUEL - «Ó Inferno! Entra cá!»
RAFAEL (muito encolhido) – Não sou
capaz…
ENCENADORA – Não és capaz de entrar na
barca do Inferno ou não és capaz de dizer umas falas de Gil Vicente?!
Mas que teatro é este?
RAFAEL – A mamã não ia gostar…
ENCENADORA – A tua mãe não ia gostar?!
E de quê?
RAFAEL – Dos palavrões…
ENCENADORA – Não acredito nas minhas
orelhas! Que parolice é esta, Rafael?! E andas tu aqui em projectos
pós-pós!
RAFAEL – A mamã não ia gostar…
ENCENADORA – Outra vez a mesma
conversa? Ora, Rafael, já é mania! Os homens gostam de palavrões, até se
julgam no direito de os ter só para eles! Sentem-se uns machões! Olha,
Rafael, Gil Vicente é o mestre dos mestres, o ponto mais alto do nosso
teatro! Os palavrões são como as palavras e as palavrinhas, têm o seu
lugar próprio para ser usadas! Adequação de linguagem, a-de-qua-ção de
linguagem! A linguagem tem de estar adequada às personagens e às
situações! Não podes criar uma figura do povo sem asneirada, as pessoas
têm horizontes baixos, exprimem a sua materialidade com signos marcados
pela moral convencional, decorrente da visão limitada da vida! E às
vezes é preciso um palavrão como tratamento de choque, para despertar as
consciências! Farta que estou de explicar, Rafael: mais indecentes que
os palavrões, são as palavrinhas, quando usadas para seduzir, para
ludibriar! (Exemplifica) Não é, Rafaelinho? Queridinho, ele é tão
amoroso, o Rafa, tão maneirinho!
LILI – Tão basicozinho, tão menino da
mamã…
ENCENADORA – Já devias ter percebido
que Gil Vicente dá lições nessa matéria, Rafael! Quando as personagens
querem enganar outras, usam palavrinhas, diminutivos… Mentir, usar
linguagem hipócrita, sim, isso é que é condenável!
RAFAEL (envergonhado) – A mamã não ia
gostar…
CENÓGRAFA (ameaçando-o com o pincel do
alto do escadote) - Porra, Rafael, avança com Mestre Gil Vicente, ou nem
és homem nem és nada!
RAFAEL – Não consigo, a mamã não ia
gostar…
LILI - Este gajo é um anjinho… Fogo,
Rafael! Se não usarmos as palavras, as palavrinhas e os palavrões, a
língua apodrece na boca e faz-nos cair os dentes!
RAFAEL – Não, a mamã não ia gostar,
depois tirava-me a mesada!
LILI – Ah!, fez-se luz! Eureka, está
tudo explicado!
MIGUEL – Hi-hi, a mamã tira-lhe a
mesada!
RAFAEL
- E para cúmulo estamos na Universidade!
ENCENADORA – Pois estamos, Rafael!
Estamos na Universidade, e onde querias tu representar Gil Vicente? Na
casa paroquial da tua aldeia, com os putos da catequese? Ai a minha
vida, e agora? Nós quase-quase a estrear e não há quem te substitua!
RAFAEL – Desculpe, a mamã não ia
gostar…
GRAVELINA – Olha o pandorca! Caem-lhe
os parentes à lama por dizer as verdades? Eu digo, eu digo! Carago, a
verdadinha é comigo! Qual quer que diga? Ora o merdicas!, digo eu, digo
eu! Já chega de inferno, agora o povinho quer é paródia, quer riso! É
preciso espantar a desgraça com umas boas gargalhadas, e mandar esses
governantes de merda prò Inferno! Eu já não me consigo governar a
comprar e a vender, nem trocas já ninguém faz, há que mudar de vida.
(Para a encenadora) Dê-me vocemecê trabalho!
ENCENADORA (entrega-lhe uma folha de
papel) – Se acha que é capaz…
GRAVELINA – Eu sei ler, o que é que
julga? Leio muito bem até, fiz a quarta classe com uma boa professora!
(Estuda o papel) Oh, até pareço eu a falar, hi-hi!
ENCENADORA - Dá-lhe a deixa, Miguel.
Vamos lá a ver…
MIGUEL - «Ó Inferno! Entra cá!»
GRAVELINA – Eu?! Ir prò inferno?
T’arrenego, Satanás! (interpela todos)
«Ò Inferno?... Eramá... Hiu! Hiu!
Barca do cornudo.
Pêro Vinagre, beiçudo,
rachador d'Alverca, huhá!
Sapateiro da Candosa!
Antrecosto de carrapato!
Hiu! Hiu! Caga no sapato,
filho da grande aleivosa!
Tua mulher é tinhosa
e há-de parir um sapo
chantado no guardanapo!
Neto de cagarrinhosa!
Furta cebolas! Hiu! Hiu!
Excomungado nas erguejas!
Burrela, cornudo sejas!
Toma o pão que te caiu!
A mulher que te fugiu
per'a Ilha da Madeira!
Cornudo atá mangueira,
toma o pão que te caiu!
Hiu! Hiu! Lanço-te uma pulha!
Dê-dê! Pica nàquela!
Hump! Hump! Caga na vela!
Hio, cabeça de grulha!
Perna de cigarra velha,
caganita de coelha,
pelourinho da Pampulha!
Mija n'agulha, mija n'agulha!»
RAFAEL (tapa as orelhas) – Basta!
Basta!
GRAVELINA (para o Rafael) – O que
basta é a miséria em que nos pôs a porcaria do governo! (Respira fundo,
orgulhosa, e dirige-se à encenadora) Carago, disse tudo num fôlego!
Atão, consegui ou não consegui?
ENCENADORA – Maravilhoso! Quem diria?
Esta mulher até parece saída do auto de Gil Vicente! Então quer entrar
na peça, Gravelina?
GRAVELINA – Quero, sim senhores! Vá a
crise pròs infernos, que eu no Paraíso estou!
|
|
|
|
DÉCIMA E APOTEÓTICA
CENA |
|
NA SALA DE ENSAIOS.
Todos os intervenientes. A cenógrafa
continua montada no escadote a pintar o céu. Entram os extraterrestres,
tímidos, a puxar pela corda uma carreta de tábuas, cheia de luzinhas e
de arames no ar, com «Troika de Luz» escrito nos dois lados. A Bel traz
o bilhete azul na mão. A cena deve ser quase toda rezada em cantochão e
remata com um fandango bem sapateado e bem dançado por todos.
ENCENADORA – Não tinha conhecimento da
vossa participação na peça! Isto assim é uma desorganização total, um
caos, o Apocalipse! Estamos quase-quase a estrear, e à última hora
aparecem-me aqui três anjinhos de asas a abanar?
CENÓGRAFA – Calma, calma, tudo se há
de compor!
ENCENADORA – Que hei de eu fazer com
eles? E já trazem fatos prontos?! De onde é que vocês vieram?
BEL, KEZABEL e YEKUN (coro) – Caímos
do céu! Caímos do céu!
CENÓGRAFA (do alto do escadote) – Já
chegou o fim do mundo?
BEL, KEZABEL e YEKUN (coro) – Sim, já
chegou o fim do mundo!
TODOS – Já chegou o fim do mundo!
BEL, KEZABEL e YEKUN (coro) – Já
chegou o fim do mundo!
ENCENADORA (para a Bel, apontando o
bilhete azul) – Essa mensagem é
para nós? O que diz?
BEL – Diz que neste planeta há água,
ar, florestas e animais.
ENCENADORA – E então?
BEL
– Então?! No nosso planeta já não há nada disso!
ENCENADORA – E aqui ainda há?
YEKUN – Aqui ainda há, por isso
estamos no Céu!
TODOS – Estamos no Céu!
ENCENADORA – E essa «Troika de Luz» é
a carreta do futuro?
GRAVELINA – Bonito carro, bonito
carro, para que serve?
KEZABEL – A troika? A troika avariou,
não serve para nada!
TODOS – A troika não serve para nada!
A troika não serve para nada!
ENCENADORA – Isto assim não pode ser,
isto assim é um inferno! Ai, ai, ai, temos a peça ameaçada!
TODOS – Ai, ai, ai, temos a peça
ameaçada!
ENCENADORA – Bem, caluda! Um minuto de
silêncio e vamos ao sapateado final!
TODOS – Vamos ao sapateado final!
KEZABEL (para a Lili, muito
delicodoce) – A indígena dança? Está em período fértil? Deseja procriar
comigo? (Agarra-se a ela, faz-lhe festas, encosta-se, etc.. Todos cantam
e dançam a «Apoteose» com música de fandango).
APOTEOSE
Aliviados da riqueza
Cantamos no Céu de tanga
Oh, que grande gentileza
A dos gerais governantes!
Bué! Bué! Bué!
Sem dinheiro pra funerais
Vamos muito mais discretos
Sem massinha pra esponsais
Aprendemos a ser espertos!
Bué! Bué! Bué!
Não temos cama nem mesa
Que bom o frio do inverno!
Dancemos na barca da Glória
Que a outra vá prò Inferno!
Bué! Bué! Bué!
FIM
Casa dos Banhos, 3 de novembro de 2012
|
|
|
|
© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL |
|
|
|
|
|
|