REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 38 | abril-maio | 2013

 
 

 

 

 

 

MANUEL ALMEIDA E SOUSA

A fumaça diz-me que sim

 

 

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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Dir. Maria Estela Guedes  
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o ciúme corroía-lhe as paredes do estômago. não, não tenho ciúmes!...

dizia-o sem pensar.

mas... doía

muito.

doía no estômago e no ruído ensurdecedor da verdade.

ah!... o ciúme...

o ciúme é como um homem cansado.

o ciúme tem barba e cabelos brancos

e

senta-se muitas vezes na estação de caminhos de ferro.

um dia ainda morre triturado sobre os carris.

 

 

 

tudo podia começar assim, mas não.

a cena representa um espaço rectangular flanqueado por enormes lápides, alinhadas e apoiadas sobre um muro lateral... não demasiado alto.

as da esquerda, brilhantes e metálicas;

as da direita, de um leitoso branco marmóreo.

no passeio central, fragmentos de ossos e uma cadeira onde estou sentado a fumar este cigarro

há um jornal no chão.

já o li.

esse jornal possui o gérmen da luz...

é uma semente que, para frutificar... terá de morrer.

 

só depois direi:

 

o ciúme corroía-lhe as paredes do estômago. não, não tenho ciúmes!...

dizia-o sem pensar.

mas... doía

muito.

doía no estômago e no ruído ensurdecedor da verdade.

ah!... o ciúme...

o ciúme é como um homem cansado.

o ciúme tem barba e cabelos brancos

e

senta-se muitas vezes na estação de caminhos de ferro.

um dia ainda morre triturado sobre os carris...

 

que digo eu...?

pois...

o ciúme.

na última vez que sentiu ciúmes confessou-me uma história intrigante. uma história que adiantou o meu relógio

 

não me deixou dormir.

 

as histórias que me conta resvalam, sempre, por desejos escondidos.

                                                                                    profundamente escondidos.

são histórias sigilosas.

 

são palavras em desassossego.

tremendas.

depois não.

depois passam-se dias e nada me diz.

melhor...

diz.

diz outras palavras que soam sem importância.

diz:

- daqui a bruxelas... quantas são as horas no comboio?

e

eu respondo sempre

ainda que não obtenha a resposta dos seus pensamentos.

ainda que as minhas palavras soem como um...

                                       caer el rompecabezas en el suelo

 

porquê o ciúme?

nem eu sei.

não.

acho que sei.

contei-lhe uma história passada. uma história minha...

intima.

intima como guarda-chuvas em êxtase profundo num qualquer quarto de hotel.

 

terá sido assim...?

terá sido por isso?

não.

talvez não.

 

caigo

vuelvo a caer incluso más fuerte que la vez anterior

miro

miro todo desde mi pequeña parcela de suelo y...

 

pergunto-lhe se me ama

e

a resposta vem como um jacto

como um

                                                        não

vermelho.

depois tornou-se suavemente num

                                                        não

azul.

ou terá sido verde?

 

na sequência

veio um cigarro de pausa.

e

a fumaça disse-me que sim.

                                                        que me amava muito

como nos filmes.

então sonhei aquela noite de amor que escorregou de mim ao ritmo do saxofone

 

uma voz faz-se ouvir para dizer que o espaço está escorregadio e é muito perigoso não seguir as indicações cénicas do senhor encenador

 

ontem

corri ao longe apoiado na beata

ela

com o peito descoberto

                            conduziu-me a uma fonte rodeada de janelas

e

portas entreabertas.

agora

                            um ramo de flores com uma nota escrevinhada num papel.

pensei

repensei...

não.

não pensei

                            continuei rua abaixo

e

a minha memória voou como um planador entre montes e cavalos...

                                     por entre horizontes indeterminados.

 

uma mulher passa, agora, à minha frente e deus desperta. a mão de deus cresce do chão e uma voz rouca faz-se ouvir com violência: - pecadora! cresci rodeado de selvas!...

a mão extingue-se num disparo.

 

aqui é que fico imóvel.

a economia aperta

e

o forno não está para bolos.

 

a hora é rápida e veloz

e

naquele banco com vista para a auto-estrada

                              contemplam-se ausências

as possíveis

e

raios de sol cada vez mais frios...

 

será grave?

                              bom, não será.

cuando ames no me muerdas con sigilo

 

para os noctívagos do virtual recomendamos a leitura da “geopolítica da má fé”

a que consagra as premonições religiosas

uma espécie de auto-sugestão mediante repetição - mui próximo do minimalismo espiritual.

li isto no velho “livro dos loucos” parágrafo 3 do capítulo 21

 

perguntaram-lhe:

- que se sente ao viver com um lobisomem?

e

ela só disse:

 responder é complexo. mas posso adiantar que:...

a minha beleza é um troféu

e

a minha carne...

foi a vitima ao largo da vida. mas

com ele é diferente

ele é solicito. educado. em tudo contrário a um perturbado.

ele compreende, como ninguém, a minha tendência para o suicídio...

 

foi na cozinha

que encontrei uma formula para amar distancias curtas

                            estava no frasco dos alhos

no frasco do macarrão apenas uma mensagem:...

- quando amo

                            os colchões voam sobre a varanda

e

por entre os espelhos de narciso desenterras-me

é facto...

a percepção é já pensamento...

 

porque no meio

há portas

 

só no regresso

se solta a curiosidade

e

remiro a nota.

                            que diz...?

não consigo ler.

está escrita numa língua desconhecida

                            uma língua de lugar nenhum

                            uma língua...

suicidária.

caída de um edifício

         de muitos andares.

 

agrada-me discursar sobre a colagem de objectos obstinadamente agregados ao mundo

 

hay un número que quiere decirnos algo

e

quando desperto entre bolas de sabão

                                     quando fico descalço

a minha natureza dificilmente percebe quão formosos são os seus longos e saborosos... olhos

estou a falar

                                     dum breve olhar

                                     duma silhueta à luz de velas

                                      duma barriga farta de pecado

                                     de tragédias gregas onde os jardineiros dão corda aos seus relógios de bolso

 

a minha vida é como caroços de azeitona agitando-se na panela

deslizam lá dentro

                            mas continuam crus.

 

saí de casa com a roupa que tinha vestida.

na mão, uma mala quase vazia. apenas um livro. não mais que isso.

a humidade doía-me nos ossos.

então...

a luz da vela rompe as sombras e, com seu vestido de noite, veio até mim

e

disse-me: - Só tu, para me fazer ficar.

 

então resolvi quedar-me

          por ali.

         

cruzamo-nos à pressa

nas ruas

cada qual encerrando em si a incerteza

do princípio

e

do fim

 

o sinal estava aberto

para todos

mas ninguém ousava atravessar

não se ouviam buzinas

reclamações

 

a economia do fluxo nas vias

                   caracteriza-se pelo congestionamento estático e pelo sentido único

 

e           

                   a clorofila?

                   o progresso?

                   o cheiro no nariz?

                   o gosto amargo na boca?

ah...!

                                               imagens que se escapam

para fora da janela

 

com os cotovelos apoiados

                                     num sonho

 

despertei

e

um calafrio sobrevoou os meus sentidos como um espanta-pássaros

um calafrio instantâneo apoderou-se do meu corpo

 

um calafrio suicida

que se lançou do quinto andar num voo

                                               espectacular

de manhã

logo pela manhã... somos despertos pela novidade

o mundo não dorme

quando

ouço o mar nas minhas insónias

                            ao sabor de ansiolíticos

 

assomei meio corpo pela varanda

e

vi um homem lançar-se da janela.

 

                   não foi a primeira vez que fantasiei a minha própria morte.

 

mas...

ninguém morre hoje

não é permitido.

a menos que atravessem a porta

 

ninguém morre hoje...

 

despertei às quatro da manhã

e

às cinco caiu o corpo.

morto.

 

para me segurar pendurei-me no estendal com as molas da roupa

e

nesse instante imaginei-me...

 

eu.

estatelado lá em baixo

                            na calçada.

 

sim

com a sonolência perde-se o equilíbrio

e

caímos sete pisos...

                            ou algo assim

como se nos convertêssemos

                            de repente

                                     na imagem do nosso próprio funeral.

há um mar de dúvidas

dúvidas viúvas.

há um campo que irrita a pele...

então

só então 

se perfilam os triciclos dispostos a regatear com senhoras de meia idade

e...

 

é.

posso dizer

                                     houve um tempo em que

desejei

                                     ainda desejo

                                     continuo a desejar

e

pergunto-me se aquele corpo não fantasiou a minha morte 

 

o morto serei eu...?

não

                                     não fui eu quem saltou no vazio.

fui?

                                     nunca saberei o porquê de tal loucura... 

 

matou-se?

ou

matei-me...?

desapareci deste mundo?...

 

                                     confuso

                                     despedi-me da vida

e

                                     tomei o caminho do ascensor

ainda tive tempo para olhar o ramo de flores.

 

antes

                            as flores cumpriam a sua função

 

as flores mascaram o odor da decomposição dos corpos

mas ali não havia nenhum corpo

só uma suposta alma

e

frio.

 

pois

                            as almas têm frio

                            as almas perdem-se no meio da rua como pássaros

como borboletas...

depois morrem

as almas morrem

as almas morrem

as almas morrem

as almas morrem

com a chegada do inverno

 

cala-te!...

ela está ali

atrás da porta.

a ouvir-te

a seguir os teus movimentos...

não descola.

 

não te deixes dormir

se adormeces...

ela mata-te com a faca da cozinha

e

os teus planos de suicídio voam

                            abrem espaço a um crime.

 

crime...?

não.

   
 

 2012

   
 
   
 
 

MANUEL ALMEIDA E SOUSA (PORTUGAL)
Enquanto "actor" na acção plástica expôs em várias galerias do país e criou a sua própria galeria no BAIRRO ALTO (anos 70) - Galeria Elefante Circular na travessa da Cara (Lisboa). Nos últimos anos tem-se limitado a actividades na área da arte postal, performance e artes gráficas - mais concretamente na criação de publicações como "Bicicleta" e grafismos de alguns números da revista "Utopia". Está representado em várias publicações de poesia visual (Espanha, Portugal, Polónia, Republica Checa, Itália, França e Brasil). Ainda nesta área tem colaborado na criação de espaços teatrais e, mais recentemente, desenvolve projectos com marionetas por si criadas.
CONTACTO:
utopikuscirkus@aim.com

 

 

© Maria Estela Guedes
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