Quando Deus distribuiu a feiúra, ela entrou na
fila três vezes, e em todas foi agraciada com o maior quinhão.
Maria não era uma mulher que se podia chamar de
feia. Era horrorosa...
Não media mais que um metro e meio de altura.
Tinha os cabelos muito negros, mas terrivelmente anelados. Acima da boca
possuía um buço escuro, vulgarmente conhecido como bigode. Onde as
outras pessoas têm pintas, ela tinha verrugas, grandes, cabeludas. A do
queixo então...
Não é que Maria arrumou um marido?!
Ninguém entendeu muito o que Antônio viu de
interessante nela, mas alguma coisa devia ter.
Ele, por sua vez, não era nenhum galã,
principalmente se levarmos em conta o bócio que tinha no pescoço. Mas de
uma coisa ninguém duvidava, era a própria encarnação de Satanás.
Chato, implicante, ranzinza, não dava paz a
ninguém, muito menos à pobre Maria, que tornou-se sua vítima preferida.
A mulher vivia lavando, passando, cozinhando,
arrumando e mesmo assim o danado acabava achando um motivo para lhe
atazanar as idéias. Vasculhava a casa em busca do malfeito, era o vinco
da calça, o botão da camisa meio solto, passava o dedo em cada cantinho
dos móveis buscando uma poeirinha esquecida. Qualquer motivo servia para
acabar com a vida da infeliz.
Até os filhos, quando o viam chegar, se escondiam
na tentativa de escapar ao seu mau humor.
Era uma vidinha de cão a que se levava naquela
casa.
Maria, para esquecer um pouco a sua dor, passou a
se deliciar com a dor alheia. Era só Antônio sair e ela correr para a
janela a buscar informações que alimentassem sua língua ferina ou, se
tinha um tempinho maior, se refugiava na igreja.
Acabou se transformando na maior e melhor beata
fofoqueira da cidade.
O pároco não suportava mais o rosário de lamúrias
e maledicências que Maria desfiava todo santo dia no confessionário.
É claro que as lamúrias estavam relacionadas a
Antônio, o carrasco, o Satanás feito gente, o filho do demo que veio
direto das profundezas do inferno com a única intenção de acabar com
seus dias de vida. Certa vez chegou, em uma escorregadela, a confessar
ao vigário seu secreto desejo de ver Antônio morto.
E era assim, o tempo passando, a vidinha na mesma,
o ódio de Maria crescendo e Antônio cada vez mais irascível. Cada um se
acomodava por seu lado sem deixar de alimentar e fazer crescer o rancor
de um pelo outro. Mas as palavras nunca foram ditas e, com os anos, a
mulher chegou quase a ignorar o marido. Praticamente não lhe dirigia a
palavra, a não ser em casos de absoluta necessidade ou quando tinha que
lhe atender os caprichos de cama e mesa.
Nem mesmo Maria percebeu que seu ressentimento
havia se transformado em ódio, ódio velado, maior ainda que o ódio
propriamente dito, ou sentido.
Sem quê nem porquê, durante uma das tantas noites
iguais, em que Maria cumpria suas penitências no genuflexório, Antônio
acordou com fortes dores no peito. “É ar,” sentenciou a mulher. E com
muita má vontade foi lhe buscar um copo com bicarbonato trazendo junto
um leque de repreensões.
“É sempre assim, come como um condenado e depois
ronca como um porco, só podia passar mal mesmo, não tem idade para essas
extravagâncias. Torresmo antes de dormir é veneno certeiro.”
Mas Antônio não melhorava. Primeiro ela achou que
era fingimento, mas a certa altura resolveu acreditar no mal do marido e
apelou para a água benta, este sim era o remédio santo, que todos os
males. Nada. Antônio morreu naquela noite mesmo, coração.
“Que chateação, assim, no meio da semana, sem
aviso prévio nem nada, ia ser uma amolação...” Mas isso ela só pensou...
As coisas acabaram se resolvendo com rapidez,
chamou os filhos, avisou aos parentes, pois agora a autoridade ali era
ela. O velório seria em casa mesmo, na sala.
Enquanto Maria esperava chegar o caixão, fechou a
porta do quarto para se preparar para a ocasião. Então pela última vez,
se viu sozinha com o marido morto. Com pudor lhe cobriu o rosto, para
que ele não a visse se trocando.
Vestiu seu melhor vestido preto, muito discreto,
calçou as meias, o sapato preto de trecê. Colocou os brincos de coco e
ouro, davam uma certa classe, apanhou na gaveta da cômoda um lencinho de
cambraia e o colocou dentro do sutiã, apesar do cheiro de naftalina.
Jogou sobre a cabeça seu véu preto e deixou na cama, ao lado de Antônio,
um grande xale de lã.
Tirou o lençol do rosto do marido e saiu. Seria
preciso passar um café, fazer uns biscoitinhos, quem sabe uma broa...
A cozinha já fervilhava de mulheres, as vizinhas,
as amigas, as parentas, prestavam solidariedade à viúva e preparavam as
quitandas do velório. Recebeu com humildade as manifestações das amigas,
mas assumiu o controle do fogão.
Quando voltou para a sala o corpo de Antônio já se
encontrava dentro do caixão, sobre a mesa, velas acesas, terço na mão,
conferiu o sapato do morto, tudo estava a contento.
Naquele momento Maria tocou as mãos de Antônio com
uma certa ternura, sentiu que ele estava gelado. Estava morto mesmo.
Mortinho da Silva.
Tudo estava na maior ordenança,
o café, as quitandas, o entra e sai dos amigos, da família, as conversas
ao pé de ouvido...
E Maria ali, firmona ao lado do
caixão. Às vezes lhe corria pelo rosto uma lágrima furtiva.
Eram duas horas da tarde quando
o padre chegou para celebrar a missa de corpo presente, depois o
enterro. O padre ficou atento à sua ovelha mais dedicada, que parecia
administrar tudo com um olhar arguto. Ele tentava adivinhar-lhe o
pensamento, mas ela era impenetrável naquele momento.
A verdade é que depois de morto
todo mundo vira santo, pensou o vigário.
“Coitado, um homem tão bom,
morreu como um passarinho, Deus sabe o que faz...”. E lá vão as maiores
falsidades...
Afinal chegou a hora do enterro.
A caminhada até o cemitério era longa, cansativa, os amigos se
revezariam na alça do caixão.
E lá ia o cortejo rua à fora, o
padre na frente, puxando a ladainha, e a viúva atrás seguindo e
chorando. Era a própria imagem da dor.
A cerimônia transcorreu sem
transtornos. O caixão baixou sepultura e Maria jogou a primeira pá de
cal. Depois foi a vez dos dois filhos.
Acabou. Nada mais a fazer ali.
As pessoas saiam devagar e falavam baixo em sinal de respeito, falavam
de tudo, política, moda, maledicências, menos do defunto, esse estava
morto e enterrado. E, claro, devidamente esquecido.
Agora só Maria chorava.
Caminhava lentamente e as lágrimas lhe turvavam a visão. Agora chorava
de verdade, um filho lhe apoiava o caminhar.
Na porta do cemitério Maria
parou. As pessoas olhavam para ela. Ela olhava a sepultura do marido.
Naquele rosto as marcas de tantos anos juntos, mais a certeza do dever
cumprido.
De repente, abriu a pequena
bolsa de miçangas pretas que trazia nas mãos, guardou o rosário e o
lencinho, e ainda sem tirar os olhos da sepultura do marido, arrancou de
dentro da bolsa, um rojão, um foguete de três tiros.
Não teve dúvidas, riscou o
fogo e, diante do pasmo geral, comemorou ali mesmo a morte desejada há
tantos anos.
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