REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 38 | maio-junho | 2012

 
 

 

 

 

LISEL MUELLER

Curriculum vitae


Taduções de Francisco Craveiro

Lisel Mueller nasceu em Hamburgo, em 1924, mas foi obrigada a escapar ao terror nazi e emigrou para a América aos 15 anos. Largamente reconhecida, ganhou o Pulitzer Prize e o National Book Award entre outros prémios.
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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Dir. Maria Estela Guedes  
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Colhendo framboesas 

Assim que o  matagal abrir

e te deixar entrar

e a primeira baga se desfizer na tua língua, 

* 

nada lembrarás

da tua vida anterior. Podes ficar

naquele país de sol e silêncio

o tempo que quiseres. Para regressar, 

* 

tens apenas de olhar para os braços

e descobrir as grandes marcas vermelhas.

Terás inventado a dor,

que lá não tem lugar. 

** 

Meditação 

Enquanto dactilografo aquilo para que olho é um poster: Nighthawks de Edward Hopper. Está lá para que eu não me esqueça de ser honesta. Olho para um casal a tomar café num restaurante barato já tarde; a relação entre eles é ambígua; ela parece frágil, vulnerável, já não muito nova; a aba do chapéu dele faz -lhe sombra na  testa. As faces são descoradas pela luz implacável. O empregado, de cara magra, inclina-se para a frente; quer falar-lhes sobre si. Eles são alguém com quem conversar nesta casa com paredes em vidro, com os pimenteiros e saleiros supérfluos, os recipientes cromados de guardanapos cuidadosamente espaçados. O homem à parte, de costas para mim, é um mistério. Há quarenta e cinco anos, quando Hopper pintou estas figuras, saberia ele que elas iriam persistir? Vejo-as na baixa na zona subterrânea sob o hotel envidraçado e o banco em granito e mármore, naquela área fantasmagórica ladeada por lojas caríssimas que vendem coisas baratas,  e cafés sem interesse que as luzes tentam animar. Lá estão eles,  a mesma idade, só que agora ele não usa chapéu. O empregado tornado empregada  tem ainda cara magra e não consegue sustentar os filhos com o que ganha. E o homem   isolado  está sentado no canto, de frente para mim, mas a cara dele bem podia ser umas costas. 

**

 

O jardim 

Trago a minha mãe de novo à vida,

os seus olhos ainda verdes,  a rir-se ainda,

contudo sem ser elegantemente magra.

 

* 

Passa por mim

na procura da rapariga

a quem deixou a velhice

Não a reconhece

em mim, uma mulher

mais velha do que ela alguma vez será.

 

* 

 Que estranho que no jardim

da memória onde ela vive

nunca nada mude;

a fruta pesada

não consegue puxar os ramos

para mais  próximo do chão.

 

** 

Magnólia 

Este ano a primavera e o verão decidiram

despachar-se, enrolar-se numa

estação de três dias

e a todo o vapor sair do inverno.

No pátio da frente  os relutantes

botões da magnólia descontrolaram-se

e de repente estavam abertos.

Dois dias mais tarde as sua sedas de um pálido cor de rosa

acumularam-se à volta do tronco

 como camisas de criança abandonadas.

 

* 

Lembras-te de quanto durava a primavera?

E de quanto tempo ia do primeiro fechar  de dedos

até ao primeiro beijo? E depois disso

a outra eternidade, o movimento sem fim

para o desapertar de um botão?

 

** 

Há manhãs 

Mesmo agora, quando o enredo

exige  que me torne em pedra,

o sol interfere. Algumas manhãs

no verão saio de casa

e o céu abre-se

e derrama-se para dentro de mim

como se fosse um santo

prestes a morrer. Mas o enredo

exige que viva,

seja vulgar, nada diga

a ninguém. Dentro de casa

os espelhos ardem quando passo.

 

** 

De visita ao meu país natal com o meu marido americano 

No caso desta cidade

ela é tão  desconhecida para mim

como para ele. Mas quando caminhamos

ao longo  do Neckar, vem-me à memória

uma velha canção popular e canto-a para ele

sem me enganar. No restaurante

noto que a minha voz e os meus gestos

são iguais aos das mulheres à minha volta.

Observa-me a mudar de forma

na parte côncava e polida da sua colher;

mexe o café e eu dissolvo-me.

Quando volto estou diferente,

enquanto ele permanece como é,

o que sempre foi.

 

** 

Curriculum Vitae 

1) Nasci numa Cidade Livre, perto do Mar do Norte.  

2) No ano em que nasci, fizeram confetes com o dinheiro. Um pão custava um milhão de marcos. Claro que não me lembro destas coisas. 

3) Pais e avós giravam à minha volta.  O mundo em que vivia tinha uma voz suave e não havia garras. 

4) Uma cornucópia cheia de coisas boas levou-me a um edifício  com sinos. Uma professora de  grandes seios tomou conta de mim.  

5) Em casa as estantes iam da terra ao céu.  

6) Aos domingos a criança da cidade avançava com dificuldade pelo meio de pinhas e primaveras nos charcos, a uma curta distância de comboio. 

7) O meu país foi atingido mais implacavelmente pela história do que por terramotos ou furacões.  

8) O meu pai ocupava-se a evitar os monstros. A minha mãe disse-me que as paredes tinham ouvidos. Fiquei a conhecer o peso dos segredos. 

9) Entrei nos dias demasiadamente radiosos e nas noites demasiadamente escuras da adolescência. 

10) Dois pais, duas filhas, nós seguimos sol e lua de um ao outro lado do oceano. Os meus avós ficaram na escuridão.                                                         

11) Na nova língua todos falavam muito depressa. Acabei por fim por acompanhá-los.  

12) Quando te encontrei, a nova língua tornou-se a linguagem do amor.  

13) O sofrimento causado pela morte da mãe levou a filha à poesia. A filha tornou-se uma mãe de filhas. 

14) Vida de todos os dias: a sua extensão e a sua espessura. Nós a atarem fios a toda a parte. O passado empurrado para longe, o futuro por imaginar por causa do magnífico, difícil, apaixonado  presente. 

15) Anos e anos disto.

16) As crianças já crescidas. A dor de um velho, a solidão de um velho. 

17) E depois também o meu pai desapareceu. 

18) Tentei voltar a casa. Estive à porta da minha infância, mas estava fechada ao público. 

19) Um dia, num elevador apinhado de gente, todas as caras eram mais novas do que a minha. 

20) Até aqui, tudo bem. Os dias e as noites estão sem fôlego por causa da pressa. Nós acompanhamos, tu e eu. 

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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