Colhendo framboesas
Assim que o
matagal abrir
e te deixar entrar
e a primeira baga se desfizer na
tua língua,
*
nada lembrarás
da tua vida anterior. Podes
ficar
naquele país de sol e silêncio
o tempo que quiseres. Para
regressar,
*
tens apenas de olhar para os
braços
e descobrir as grandes marcas
vermelhas.
Terás inventado a dor,
que lá não tem lugar.
**
Meditação
Enquanto dactilografo aquilo
para que olho é um poster: Nighthawks de
Edward Hopper. Está lá para que eu não me esqueça de ser honesta. Olho
para um casal a tomar café num restaurante barato já tarde; a relação
entre eles é ambígua; ela parece frágil, vulnerável, já não muito nova;
a aba do chapéu dele faz -lhe sombra na
testa. As faces são descoradas pela luz implacável. O empregado,
de cara magra, inclina-se para a frente; quer falar-lhes sobre si. Eles
são alguém com quem conversar nesta casa com paredes em vidro, com os
pimenteiros e saleiros supérfluos, os recipientes cromados de
guardanapos cuidadosamente espaçados. O homem à parte, de costas para
mim, é um mistério. Há quarenta e cinco anos, quando Hopper pintou estas
figuras, saberia ele que elas iriam persistir? Vejo-as na baixa na zona
subterrânea sob o hotel envidraçado e o banco em granito e mármore,
naquela área fantasmagórica ladeada por lojas caríssimas que vendem
coisas baratas, e cafés sem
interesse que as luzes tentam animar. Lá estão eles,
a mesma idade, só que agora ele não usa chapéu. O empregado
tornado empregada tem ainda
cara magra e não consegue sustentar os filhos com o que ganha. E o homem
isolado está sentado
no canto, de frente para mim, mas a cara dele bem podia ser umas costas.
**
O jardim
Trago a minha mãe de novo à
vida,
os seus olhos ainda verdes,
a rir-se ainda,
contudo sem ser elegantemente
magra.
*
Passa por mim
na procura da rapariga
a quem deixou a velhice
Não a reconhece
em mim, uma mulher
mais velha do que ela alguma vez
será.
*
Que
estranho que no jardim
da memória onde ela vive
nunca nada mude;
a fruta pesada
não consegue puxar os ramos
para mais
próximo do chão.
**
Magnólia
Este ano a primavera e o verão
decidiram
despachar-se, enrolar-se numa
estação de três dias
e a todo o vapor sair do
inverno.
No pátio da frente
os relutantes
botões da magnólia
descontrolaram-se
e de repente estavam abertos.
Dois dias mais tarde as sua
sedas de um pálido cor de rosa
acumularam-se à volta do tronco
como
camisas de criança abandonadas.
*
Lembras-te de quanto durava a
primavera?
E de quanto tempo ia do primeiro
fechar de dedos
até ao primeiro beijo? E depois
disso
a outra eternidade, o movimento
sem fim
para o desapertar de um botão?
**
Há manhãs
Mesmo agora, quando o enredo
exige
que me torne em pedra,
o sol interfere. Algumas manhãs
no verão saio de casa
e o céu abre-se
e derrama-se para dentro de mim
como se fosse um santo
prestes a morrer. Mas o enredo
exige que viva,
seja vulgar, nada diga
a ninguém. Dentro de casa
os espelhos ardem quando passo.
**
De visita ao meu país natal com o meu marido
americano
No caso desta cidade
ela é tão
desconhecida para mim
como para ele. Mas quando
caminhamos
ao longo
do Neckar, vem-me à memória
uma velha canção popular e
canto-a para ele
sem me enganar. No restaurante
noto que a minha voz e os meus
gestos
são iguais aos das mulheres à
minha volta.
Observa-me a mudar de forma
na parte côncava e polida da sua
colher;
mexe o café e eu dissolvo-me.
Quando volto estou diferente,
enquanto ele permanece como é,
o que sempre foi.
**
Curriculum Vitae
1)
Nasci numa
Cidade Livre, perto do Mar do Norte.
2)
No ano em que nasci, fizeram confetes com o dinheiro. Um pão custava um
milhão de marcos. Claro que não me lembro destas coisas.
3)
Pais e avós
giravam à minha volta. O
mundo em que vivia tinha uma voz suave e não havia garras.
4)
Uma cornucópia cheia de coisas boas levou-me a um edifício
com sinos. Uma professora de
grandes seios tomou conta de mim.
5) Em casa as
estantes iam da terra ao céu.
6) Aos domingos
a criança da cidade avançava com dificuldade pelo meio de pinhas e
primaveras nos charcos, a uma curta distância de comboio.
7) O meu país
foi atingido mais implacavelmente pela história do que por terramotos ou
furacões.
8) O meu pai
ocupava-se a evitar os monstros. A minha mãe disse-me que as paredes
tinham ouvidos. Fiquei a conhecer o peso
dos
segredos.
9) Entrei nos
dias demasiadamente radiosos e nas noites demasiadamente escuras da
adolescência.
10) Dois pais,
duas filhas, nós seguimos sol e lua de um ao outro lado do oceano. Os
meus avós ficaram na escuridão.
11) Na nova
língua todos falavam muito depressa. Acabei por fim por acompanhá-los.
12) Quando te
encontrei, a nova língua tornou-se a linguagem do amor.
13) O sofrimento
causado pela morte da mãe levou a filha à poesia. A filha tornou-se uma
mãe de filhas.
14) Vida de
todos os dias: a sua extensão e a sua espessura. Nós a atarem fios a
toda a parte. O passado empurrado para longe, o futuro por imaginar por
causa do magnífico, difícil, apaixonado
presente.
15) Anos e anos
disto.
16) As crianças
já crescidas. A dor de um velho, a solidão de um velho.
17) E depois
também o meu pai desapareceu.
18) Tentei
voltar a casa. Estive à porta da minha infância, mas estava fechada ao
público.
19) Um dia, num
elevador apinhado de gente, todas as caras eram mais novas do que a
minha.
20) Até aqui,
tudo bem. Os dias e as noites estão sem fôlego
por causa da pressa. Nós acompanhamos, tu e eu.
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