RETIRADA ESTRATÉGICA DA POESIA
Dizem que a poesia já começou a retirar-se para casas de chá,
que vai destruir a charrua e o martelo,
que vai deixar de ter filhos,
de distribuir panfletos pelas tabernas,
que vai deixar de ser parva.
Dizem ainda que a poesia comprou uma casa-fim-de-semana
com praia murada e nove coqueiros nove,
e sete adolescentes de vistosas pernas e dentes certos
para mostrar aos turistas (no caso de os haver).
Na aldeia, anteontem, os homens mais novos arranharam as coxas
[às mulheres
por estas aprenderem na poesia (mesmo agora) o perfume e a valsa
que dão fogo à vida.
Depois ouviu-se dizer em coretos de filarmónica pobre
que a poesia estava gasta,
não queria dar sangue,
que não passava de donzela pedante sem vintém para novos vestidos,
que ser poeta não dava de comer a quem o era,
enfim por causa dela tinham prendido Lorca a uma nora
(era tão bom rapaz!) e embrulhado Nijinsky, o bailarino voador,
numa bola de trapos e sementes outonais.
E o tempo corria num cavalo de espuma montado por jovens maus,
gritando a ventos e a moinhos sem jeito
que a poesia ia ser fuzilada por não querer ser gorda
(gordura é formosura toda a gente berra)
e por se ter transformado num rio secreto a favor dos magros.
Na noite em que escrevo e grito e me adormeço em castelos,
que mesmo assim vou guardando na relva e nos palácios e nas
[palavras,
não sei bem se a poesia está mais perto da libra
que separa a Mancha das tardes de gaivota,
nem sei se quer ainda ser mulher de negócios
para endireitar parvamente a Torre de Pisa
e ser bem vista na Bolsa de Londres.
Agora apenas sei que, se a quiserem engordar à força,
a poesia vai protestar decerto a sua baba:
de porto em porto,
pelos bosques franceses,
de corpo em corpo,
nos incêndios ateados em casas de penhores,
e nos rostos de todas as crianças que nasceram mortas e sem pai,
e de todos os bichos magníficos que se deitaram a afogar pela
[matemática
-- NOSSA MÃE E NOSSO ÚNICO AMOR.
Luanda, Março de 1968
(in livro de poemas "A+2= RAIVA".
Difusão Dilsar. Lisboa, Maio de 1970).
(in antologia "25 ANOS DE POESIA
ANTOLOGIA 1962-1987".
Desenhos da "TEORIA DAS MULTIDÕES", de Fernando Grade.
Edições Mic -- Colecção Salamandra/12.
Estoril, Janeiro de 1988. Esgotado).
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