REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 38 | abril-maio | 2013

 
 

 

 

FERNANDO GRADE

«Retirada estratégica da poesia» e outros trabalhos

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
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Título: série "Colagens Perversas / Esculturas de Papel".
Técnica: colagem recortada e "esculpida"
Dimensão: 0,70 x 0,50m.
Datada do Estoril -- 2001.
   
 
 
Título: série "Teoria das Multidões"
Técnica: pintura a guacho s/b papel
Dimensão: 0,70 x 0,50m
Datado de Oeiras -- 2001
   
 
 
Dois desenhos de pequeno formato.
Série "TEORIA DAS MULTUDÕES".
Datados de Estoril -- 1998.
Exposição colectiva na Voz do Operário
(Galeria João Hogan).
Foto do Autor, junto dos seus quadros.
 
 

RETIRADA ESTRATÉGICA DA POESIA 

Dizem que a poesia já começou a retirar-se para casas de chá,

que vai destruir a charrua e o martelo,

que vai deixar de ter filhos,

de distribuir panfletos pelas tabernas,

que vai deixar de ser parva.

 

Dizem ainda que a poesia comprou uma casa-fim-de-semana

com praia murada e nove coqueiros nove,

e sete adolescentes de vistosas pernas e dentes certos

para mostrar aos turistas (no caso de os haver).

 

Na aldeia, anteontem, os homens mais novos arranharam as coxas

                                                                                         [às mulheres

por estas aprenderem na poesia (mesmo agora) o perfume e a valsa

que dão fogo à vida.

Depois ouviu-se dizer em coretos de filarmónica pobre

que a poesia estava gasta,

não queria dar sangue,

que não passava de donzela pedante sem vintém para novos vestidos,

que ser poeta não dava de comer a quem o era,

enfim por causa dela tinham prendido Lorca a uma nora

(era tão bom rapaz!) e embrulhado Nijinsky, o bailarino voador,

numa bola de trapos e sementes outonais.

 

E o tempo corria num cavalo de espuma montado por jovens maus,

gritando a ventos e a moinhos sem jeito

que a poesia ia ser fuzilada por não querer ser gorda

(gordura é formosura toda a gente berra)

e por se ter transformado num rio secreto a favor dos magros.

Na noite em que escrevo e grito e me adormeço em castelos,

que mesmo assim vou guardando na relva e nos palácios e nas

                                                                                             [palavras,

não sei bem se a poesia está mais perto da libra

que separa a Mancha das tardes de gaivota,

nem sei se quer ainda ser mulher de negócios

para endireitar parvamente a Torre de Pisa

e ser bem vista na Bolsa de Londres.

 

Agora apenas sei que, se a quiserem engordar à força,

a poesia vai protestar decerto a sua baba:

de porto em porto,

pelos bosques franceses,

de corpo em corpo,

nos incêndios ateados em casas de penhores,

e nos rostos de todas as crianças que nasceram mortas e sem pai,

e de todos os bichos magníficos que se deitaram a afogar pela

                                                                                       [matemática   

-- NOSSA MÃE E NOSSO ÚNICO AMOR.

 

 

Luanda, Março de 1968 
(in livro de poemas "A+2= RAIVA".
Difusão Dilsar. Lisboa, Maio de 1970).
(in antologia "25 ANOS DE POESIA
ANTOLOGIA 1962-1987".
Desenhos da "TEORIA DAS MULTIDÕES", de Fernando Grade.
Edições Mic -- Colecção Salamandra/12.
Estoril, Janeiro de 1988. Esgotado). 

 
 

QUE NÃO ME FALEM DE TI

Tu foste a maior doença que entrou em minha casa

com as tuas ideias velhas o teu ódio aos morangos

às moças que trazem papoilas no olhar

e um vício secreto no pulmão direito

Tu foste um desastre uma granada nos meus nervos

um capilé nas veias uma toalha rota

Tu envenenaste a cerveja que escorria a toda a hora

de mim para os outros em circuito fechado

Nunca quiseste brincar ao jogo de estarmos vivos

nem prender nos teus cabelos qualquer cereja

Nenhuma gaivota te pousou sobre os ombros

e até as madressilvas murcharam no teu regaço

O nome que te dei era infalível como uma pedra

pois de ti a uma rosa de plástico vai um passo

-- mulher sem febre sem curvaturas fruta bichosa

apodrecendo há milénios na charneca

Dos teus braços nada me resta senão bolor

e um peixe translúcido que não aprendeu a desovar

pois já esqueci o teu gesto de incendiar searas

e o recorte de um coração de lata

Enfim estou livre das tuas narinas onde floria gelo

(in segundo livro de poemas de Fernando Grade,
"UM ARBUSTO ENTRE OS CALHAUS".
Edição do jornal "A Nossa Terra". Cascais, Abril de 1965).

 
  QUEIJAS É TERRA NOVA

São casas que foram roubadas ao vento

ao sarro dos anjos, às oliveiras d’

enforcado ganhas ás urtigas e aos cardos,

casas a nascer da neve que não houve e

do frio rastejante: longínquo

mosco longuidão sonora vinda da

penugem dos cães, do cheiro alto que

os cães transportam nas patas, nas curtas virilhas

no sexo minúsculo que escondem dentro da barriga.

 
Queijas prova que
viver em Oeiras é um gesto militante.

 

Palm
2/VIII/2011

 
 
MARMA DOSSIER MOI
SENTADO EM ERVAS ROMÂNTICAS 

Sentado em ervas românticas,
visito o sol que sobrou, na tarda moída.
Estas ruas de pó e seda esperam por mim:
cada flor terá um mapa de uvas;
e sei que a vida é um número a arder,
um coração que poucos festejam.
Sentado mostro os meus olhos de lobo
e pareço um cão com dono,
infeliz talvez por ter alguma terra
núbil, a semear aqui, entre os goivos e a sidra.
Um vento de moscas passa
a caminho dos pinhais.
Sentado na luz crio as minhas personagens,
bocas de veludo e treva. A noite que
vier há-de trazer bolos misteriosos,
cabras que cantam nas urzes, chibos
afagados pelo sol em fúria
-- um bode à porta do paraíso.
 
 
 
 
 
Estou sentado nos meus vícios e peço tréguas.
 
 
A escrivã do Diabo
Marma
 
 
Catrapona
- 5 dc Agosto de 1987
 
 

ODES SINTRENSES
TRAGAM MAIS VINHO PARA OS ROMÂNTICOS

 

A maior morte que aconteceu na minha infância

foi Billy the Kid.

Por esse tempo há muito tempo passaram

frutos e pedras e, então, havia aves a descerem

para o mar, havia névoas da cor das uvas

moscatéis e, talvez, a salsugem

e as sestas saboreadas dormidas em cima da caruma

nos Capuchos; era uma altura

em que o teu corpo ainda não me ameaçara

com o mar dos feitiços.

Volto atrás e sou menino

tenho uma madrinha que era fanática

pela praia da Adraga:

os meus ainda estavam todos vivos,

não havia um verme lustroso

a roer a maçã,

foi numa noite de Verão com vento

que apareceu morto Billy the Kid

apunhalado na minha caixa de brinquedos.

Agora, quando vou aos Capuchos

são outros os meus fantasmas:

o teu corpo está à beira do tempo:

os segredos que nos uniram

a mim e à parte fumegante que de ti resta

são como trapos sangrentos;

olho para o retrato da tua boca

como se fosses feita de

lama,

nuvens que nunca vi.

Mas gostava da maneira como tratavas as plantas:

as plantas são crianças indefesas

que sentem as catástrofes

lambem a neve das estradas.

Vivi uma destas tardes a praia toda

o mar fulo, rebolei-me na areia velha onde cresci alguns verões:

encontrei mirones, decerto os filhos dos outros mirones,

o coxo sábio e o maneta,

tudo a cheirar a chuva e a muito sal,

as casas grandes eram sempre neuróticas

ter uma casa enorme aberta às brisas

era como sustentar uma rapariga neurótica.

Bem, havia sombras afugentadas por olhos de

pedra, lábios submersos por maçãs

vinhedos, o sabor bruxo dos pêssegos

a resina a escorrer para o rio de Colares.

A praia da Adraga

foi o vinho mais feliz da minha vida.

 
 

UM BARCO DE NÉVOAS VISITOU-ME O SANGUE
(Arte Maior)

 

Um barco de névoas visitou-me o sangue

e (cada vez mais nocturno) deixou marcas:

são limos, corais, potros, mel de monarcas,

asas de gaivota com que danço o tango.

Corro nesse barco em noites de morango

ilhas onde o sémen se esconde nas arcas,

par'cendo maçãs velhas em vez de farpas,

ó poetas veros de Bocage a Anto.

Se o barco fugir, perdido no escuro

(o meu olhar seco em forma de pão duro),

venham outras sinas dar-me as mãos em fúria...

Vou ficar no mar, a ver moças de areia,

coberto de sal nas mamas das sereias,

farrapo de génio, de sol e luxúria...

(In "OS MELHORES SONETOS DE FERNANDO GRADE"
-- Selecção de poemas por ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO
-- 4 ilustrações do pintor ARTUR BUAL
-- Livro comenorativo dos 30 anos de Vida Literária de Fernando Grade -- 1962-1992
-- Edição nº. 72 de Edições Mic: Colecção Salamandra/16
-- Estoril -- Novembro de 1992).
-- Esgotado.

 
 
PIER PAOLO PASOLINI FOI ASSASSINADO
NUMA VIVENDA DO ALTO ESTORIL
Pier Paolo Pasolini foi assassinado numa vivenda
do Alto Estoril.
Jamais em desértica praia italiana
ou nos olhos de quem passa contente
objecto sexual da Via Venetto
foi aqui nesta rua que desce dos Bombeiros
para a praia da Poça da minha infância.
A casa está rodeada de relva por todos os lados
como se fora um barco de cal
uma cisterna pouco nocturna
e então chegaram os bastardos (foram muitos)
com facas
guizos sangrentos serpentes amestradas
pela boca
todos devagar diante do espelho que
estava quebrado no meio da erva
e desferiram sobre o corpo de Pier Paolo Pasolini
uma flecha venenosa. Mataram-no a sangue frio.
Ao cair da madrugada.
Numa vivenda do Alto Estoril.
Notícias muitas correram mundo
davam-no morto algures em Itália:
tinha sido esmigalhado por uma rapariga vestida de rapaz.
Penso que os jornais e as televisões endoidecem
de uma doença réptil como a magia dos trópicos:
porque Pier Paolo Pasolini morreu e
morre ainda todos os dias aqui
na minha terra (um pouco acima do Tamariz)
numa rua que desce dos Bombeiros
para a doméstica praia da Poça.
Não se esqueçam:
ao sapo coloca-se-lhe um cigarro na boca
até rebentar.

(Alguma história sobre o poema
"PIER PAOLO PASOLINI FOI ASSASSINADO
NUMA VIVENDA DO ALTO ESTORIL,"
publicado primeiramente por Fernando Grade
no seu livro "SERENATA AO DIABO",
Edições Mic, 1978:
o poema foi recitado pelo Autor, em homenagem
ao Pintor e grande amigo EDUARDO ZINK,
aquando do seu funeral, no cemitério de Oeiras).
 
 

FERNANDO José da Costa GRADE (Portugal, 1943)
Poeta, pintor, cronista, ficcionista, crítico de arte, jornalista, escultor e dinamizador cultural. Poeta com vasta obra publicada, constituída por 29 títulos, de onde sobressaem "O VINHO DOS MORTOS" (em 5ª. edição), "SAUDADES DE SER ÍNDIO" e a antologia "25 ANOS DE POESIA" (1962,1987).
Como artista plástico -- desenhador, pintor, colagista, escultor e ilustrador --, expõe desde 1965. Participou em 388 exposições colectivas e realizou 16 individuais. Foi três vezes premiado, em Desenho, com primeiras medalhas de prata, nos salões da Junta de Turismo da Costa do Sol (XI e XV Salão de Outono e no VIII Salão de Arte Moderna), e obteve, conjuntamente com Carlos Calvet, o PRÉMIO DE AQUISIÇÃO do VI Salão de Arte Moderna de Luanda. Foi critico de arte do "Jornal de Letras e Artes", "Século Ilustrado"e "Diário de Notícias". Assinou balanços anuais de artes plásticas para o jornal "O Século". É o presidente do Comité Directivo do Movimento de Intervenção Cultural (MIC/Edições Mic), desde  o inicio -- 1976/1977.

www.fernando.grade.webnode.pt

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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