REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 36-37 | fevereiro-março | 2013

 
 

 

 

 

RUY VENTURA

Mal de canga, pior de arado

RUY VENTURA (Portugal, 1973). Poeta e ensaísta.   www.ruyventura.blogspot.com 
 

EDITOR | TRIPLOV

 
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         Estávamos sentados à mesa de um restaurante, de um belo restaurante que escolhera para sala de refeições um daqueles pátios floridos que só existem na Andaluzia. Falávamos sobre a influência da cultura semita na Península Ibérica. Às tantas, Ahmad resolveu perguntar-me palavras que, do árabe, haviam ficado na nossa língua. Dei-lhe vários exemplos, entre eles “alcofa”. Riu-se. E, no seu inglês cultivado nas margens do Nilo, explicou-me: “É o nome que damos no Cairo aos seguidores da Irmandade Muçulmana: têm orelhas grandes como asas, mas não ouvem nada, só as arengas dos fanáticos que os chefiam. São muito perigosos. Sei do que falo. Apesar de ser filho de uma figura importante nos meios religiosos egípcios, já por duas vezes me ameaçaram de morte, por ter escrito algo de inconveniente no jornal onde trabalho.” E explicou mais: “Mubarak era um monstro, um assassino. Mas quem lhe sucede foi feito num molde muito pior.

         Quantas asneiras não se têm feito por esse mundo fora devido à impaciência… Querendo livrar-se, o mais rapidamente possível, de facínoras e de corruptos, quantos povos não têm instalado no poder figuras sinistras ou fanáticas que mais não fazem do que acentuar o sofrimento dos seres humanos que os rodeiam.

         O feudalismo da monarquia russa não foi substituído por setenta e tal anos de comunismo sem escrúpulos e sem ética? A ditadura de Baptista, em Cuba, não foi apagada pela tirania “revolucionária” dos irmãos Castro? À imperfeita monarquia constitucional não sucedeu em Portugal um regime republicano fanático, caótico e caceteiro? A balbúrdia anti-democrática dessa Primeira República portuguesa não foi “salva” por uma Ditadura Militar – aplaudida por tantos compatriotas nossos – que abriu as portas a quatro décadas de autocracia salazarista? O luminoso 25 de Abril de 1974 não ia trazendo uma “democracia popular”… estalinista? Um certo Pinto de Sousa, de má memória, não foi removido, sem que o soubéssemos, por um trio de criados da agiotagem internacional que vê como seu principal obstáculo a Constituição da nossa pátria?

         É importante, nestes nossos tempos conturbados, que não sejamos como os “alcofas” egípcios: com orelhas grandes (quiçá, com línguas demasiado compridas), mas sem capacidade de audição e de atenção. Quem esteja atento, já assistiu decerto nalguns lugares públicos, físicos e virtuais, à ressurreição de frases de António de Oliveira Salazar e de outros “santos” com o mesmo quilate, embora doutros quadrantes político-sociais, a prometerem o “ressurgimento” e outras acções purificadoras e, decerto, cegas e fanáticas. Sejamos simples como as pombas e astutos como as serpentes. Não nos deixemos enganar pelo canto das sereias, por mais belas e atraentes que sejam, pois a sua face verdadeira é monstruosa. A História já provou desse veneno várias vezes.

         Sejamos com a velha da história tradicional. Um dia encontrou-se com o seu rei, sem que o conhecesse (estava disfarçado). Procurava o monarca ouvir a opinião verdadeira do seu povo sobre o seu governo (ainda não existiam sondagens nem assessores naquele tempo…). “Que diz a senhora do rei?”, perguntou-lhe. “Deus o guarde por muito tempo!”, retorquiu a idosa sem demora. “Como pode dizer isso?... Dizem que ele é mau…”, inquiriu o governante, desconfiado. “Olhe, eu já sou velha. Já conheci o avô deste. Era mau como tudo. Pedimos a Deus que morresse e Ele fez-nos a vontade. Veio o pai dele. Pior ainda, como o pecado… Rezámos outra vez e fomos atendidos. Veio o rei de agora. Muito, muito pior que os dois anteriores. Portanto, Deus o conserve… Quanto vier outro, não vamos ficar melhor.

         A narrativa não conta que consequência teve esta resposta. Ensina-nos contudo que a impaciência nem sempre é boa conselheira. A democracia representativa tem decerto muitos defeitos. Alguns insanáveis. Mas, na sua imperfeição, é ainda a forma de governo mais equilibrada que o homem até hoje pôde inventar.

 

Ruy Ventura

 

 

© Maria Estela Guedes
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