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TEXTO INSPIRADO NUMA
CRÓNICA DE GALOPIM DE CARVALHO
NOS QUINZE ANOS DA MORTE DO ESCRITOR ANTUNES DA
SILVA, EM DEZEMBRO DE 2012
Entrevistei Antunes da Silva quando, muito jovem
no ofício, dava os meus primeiros passos no diário República. Estávamos
no início dos anos sessenta e a conversa decorreu numa salinha contígua
à Redação. Antunes da Silva apareceu afogueado, pedindo desculpa pela
meia hora de atraso, pois viera de muito longe. O homem que tinha à
minha frente, retintamente alentejano e com o Alentejo em todos os seus
escritos, era um humilde "caixa" numa grande empresa fabril. Autor de
perto de uma dezena de livros, alguns traduzidos no estrangeiro, mas tão
discreto que muitos camaradas de trabalho desconheciam-lhe essa outra
vida de poeta e ficcionista. A iniciativa de o entrevistar
justificava-se porque o seu primeiro romance, Suão, um livro de uma
espantosa dimensão humana, esgotara-se em pouco tempo e fora lançada
entretanto segunda edição. Tarefa espinhosa para o entrevistador,
exigindo astúcia e arte em sopesar, na redação final, cada frase, cada
palavra. Os censores, lida a primeira vintena de linhas, supunham uma
perda de tempo prosseguir e numa só bruta penada cortavam de alto a
baixo. Predisposição tanto maior quanto era sabido que Antunes da Silva
já sofrera penosas esfregas nos cárceres políticos e um seu livro de
poesia, Esta Terra que é Nossa, fora apreendido poucos anos antes.
De pouco valeram as previdências. A entrevista
escapou ao gume a eito, todavia a Censura não deixou de desfigurar-lhe
as entranhas. Medonho. Apesar disso, o diretor Carvalhão Duarte e o
chefe de Redação Artur Inez manifestaram-se a favor da publicação do
texto sobrevivo, o que se fez após anuência de um atordoado Antunes da
Silva, soprando à minha frente palavras inaudíveis. Foi necessário
reformular o título original, porque o corte parcial no mesmo (um trecho
que incluía a palavra "liberdade", de impossível sinonímia) adulterava o
sentido da declaração. De entre os documentos da Censura que conservo,
reencontro um verbete rabiscado sobre esta entrevista, revelador da
especial embirração dos censores pela palavra "liberdade". Apetecia
desembestar assim: «É que não há sinónimo! Então não veem?! Não há!».
Desse modo, quando Antunes da Silva declarava «...um escritor digno não
pode nunca desinteressar-se da liberdade do seu povo», o censor manhoso
substituiu o vocábulo "liberdade" por "problemas". E o que o público
leu, em resultado desta martelada, foi: «...um escritor digno não pode
nunca desinteressar-se dos problemas do seu povo». De notar que o
próprio preceituado legal atinente ao "modus operandi" censório (o
célebre Decreto-Lei nº 26589, de 1936) não permitia intromissões ou
alterações redatoriais por parte do censor. Letra morta, como bem
testemunharam durante décadas os jornalistas democratas. (Há um caso
assombroso que um dia revelarei com a respetiva prova tipográfica: o
censor reescreveu todo um período de seis linhas, narrando o
acontecimento "à sua maneira"...).
Tempos depois, o historiador Augusto da Costa
Dias, que desempenhava a gestão literária de uma editora de referência —
a Portugália, indissociável da senda política de acolher «autores
portugueses socialmente comprometidos» —, disse-me pesaroso que novo
livro da casa havia sido apreendido: Terra do Nosso Pão, de Antunes da
Silva. Mais um.
Afligia saber que um autor com dois ou três
livros proibidos transitava para o limbo de "autor proibido". As
editoras não o publicavam. E se alguma tivesse a audácia de publicar-lhe
uma obra, qualquer que ela fosse, sofreria nas livrarias uma vida
efémera: um, dois, três dias. Com alguma ventura poderíamos adquiri-la
junto de livreiros intimoratos, exímios na prestidigitação do
escondimento e oportuna desocultação de livros malditos encafuados como
mercadoria pestilenta nos esconsos da loja. Parecia magia. Um espontâneo
feitiço. Era-o de certo modo. Prefiro, contudo, chamar-lhe coragem.
Antunes da Silva e muitos-muitos mais mereciam essa coragem.
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